31 de outubro: dia de renovação?
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: João 8.31-36
Leituras: Jeremias 31.31-34 e Romanos 3.19-28
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 23° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/10/2021
1. Introdução
O Dia da Reforma é um dia difícil. Pois que é que estamos celebrando? Quando em 2017 preparamos os festejos alusivos aos quinhentos anos da Reforma luterana, houve quem solicitasse não falar em “jubileu”. Não haveria motivos para “júbilo”. Pois a Reforma provocou a divisão da igreja. Conduziu a guerras religiosas. É essa a imagem que se preservou até os dias atuais. Embora houvesse outros reformadores além de Lutero, é ele o principal protagonista do movimento que então teve início e que mudou a face da terra. Carrega o estigma de um dos maiores hereges da história. Essa conceituação de modo algum está superada.
E, no entanto, um juízo puramente negativo passa ao largo da realidade. O Dia da Reforma oferece a chance para recuperar uma visão desapaixonada daquele movimento. Certamente, ele não se presta a ufanismo luterano. Não é oportunidade para indevidamente cultuar a pessoa de Lutero. Esse homem teve um enorme carisma, do qual a igreja de Cristo é devedora. Mas também ele teve limitações. Não foi pessoa perfeita. Mesmo assim, a humanidade tem motivos para ser grata. Para tanto apenas um exemplo: o escritor Laurentino Gomes, ao analisar o processo da independência do Brasil no século 19, lamenta o estado de precariedade em que na época se encontrava o povo brasileiro. Era inculto, ignorante, atrasado, diferente daquele dos EUA, onde “a cultura protestante havia criado uma colônia alfabetizada, empreendedora, habituada a participar das decisões comunitárias […]”1. O Brasil colônia pagou caro ao fechar suas fronteiras para o espírito da Reforma. Educação era e continua sendo uma das bandeiras do protestantismo, com destaque ao de matiz luterano. Desleixo costuma acarretar gravíssimos prejuízos.
E há outros aspetos a destacar. Aliás, a Reforma, seja em sua versão luterana, reformada ou calvinista, teve enormes reflexos na própria Igreja Católica. Sob o impacto desse terremoto, ela foi obrigada a, por sua vez, proceder a reformas. Hoje, a igreja papal é outra do que séculos atrás. Por isso mesmo seria anacrônico celebrar o Dia da Reforma como dia “anticatólico”. O ecumenismo possibilitou uma caminhada, do que a Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça e Fé, solenemente assinada em 1999, é bonito exemplo. Não menos instrutivo é o relatório elaborado pela Comissão Luterana / Católico-Romana acerca da unidade com o título: “Do Conflito à Comunhão” (Editora Sinodal, 2015). Refere-se à possibilidade da comemoração conjunta católico/luterana da Reforma em 2017. Nós nos alegramos com os avanços, mesmo que permaneçam divergências. A Igreja Católica ainda não reconhece em seus companheiros protestantes igreja “em sentido próprio”, nem revogou a excomunhão de Lutero. Nós, da nossa parte, não podemos acompanhar o celibato obrigatório dos sacerdotes nem a estrutura rigidamente episcopal da Igreja Católica e a infalibilidade do papa. Portanto permanecem questões a trabalhar. E, no entanto, não queremos celebrar o “Dia da Reforma” contra (!) a Igreja Católica. Procuramos imprimir-lhe espírito ecumênico. Ele é relevante para toda a cristandade.
Para tanto ajuda o texto previsto para a pregação neste domingo, já várias vezes tratado nesta série de auxílios. Vale a pena comparar. Aliás, sugiro desconsiderar as leituras paralelas do profeta Jeremias e da Carta aos Romanos. Elas colocam em pauta outras temáticas, importantes demais para serem tratadas apenas superficialmente em observações marginais. É preferível que nos concentremos no texto indicado.
Ele reproduz parte de uma feroz controvérsia entre Jesus e alguns judeus que abrange os versículos 30 a 59 do oitavo capítulo do Evangelho de João. Está aí mais outra dificuldade deste “Dia da Reforma”. Como evitar que a prédica reforce o espírito antijudaico muito presente na sociedade do século 21? Inicialmente é dito que se trata de judeus que haviam crido em Jesus. Possivelmente fossem fariseus (7.32). Mas essa fé não deve ter passado de fugaz entusiasmo. Pois logo mais interpretam as palavras de Jesus como insuportável agressão. Se alguém questiona a filiação de Abraão como garantia da liberdade, os judeus reagem alergicamente. A oposição provoca até mesmo sua raiva, que chega a ponto de tramar contra a vida de Jesus. É o que Jesus lhes atesta. Eles querem matá-lo. Com isso eles provam que não têm Abraão por pai, e sim o diabo. Pois esse é assassino. Consequentemente a polêmica termina com a tentativa de um atentado. Os oponentes de Jesus querem apedrejá-lo. Mas Jesus se ocultou e saiu do templo (v. 59).
Pelo que tudo indica, o texto é reflexo de determinado momento da história da igreja. A comunidade cristã se sabe separada dos judeus e sofre perseguição por parte deles. Mais tarde, ela daria o troco em proporção igual ou mesmo superior, lamentavelmente. O antisemitismo está na raiz de muito sofrimento do povo judaico, sendo o ápice o crime do holocausto. Por isso talvez seja providencial a limitação da prédica aos v. 31 a 36. Ficam excluídas as palavras mais contundentes de Jesus a seus adversários e a reação violenta dos judeus. Mesmo assim, o pano de fundo é o litígio com representantes do povo, do qual Jesus é natural e do qual paradoxalmente provém a salvação (Jo 4.22). Não se trata de peculiaridade desse texto. No quarto evangelho os judeus são apregoados como exemplos do mundo incrédulo. A pregação cristã deve precaver-se contra o perigo de fazer coro com tais vozes. O Dia da Reforma não é oportunidade de pregação antijudaica. Também nesse caso o ecumenismo trouxe bons frutos, apesar da enorme culpa acumulada pela igreja nesse povo. De qualquer maneira, o confronto de épocas passadas entre judeus e cristãos cedeu espaço para o encontro. É esse o espírito a pautar a exegese.
2. O texto
São dois os conceitos que sobressaem em João 8.31-36, a saber, “verdade” e “liberdade”. Esta se torna ilusória sem aquela. Jesus convida seus ouvintes a permanecer na sua palavra. É a condição de conhecer a verdade que liberta. Que significa “verdade” nesse caso? Ora, Jesus revela a identidade das pessoas que se aventuram a lhe dar crédito. Na companhia de Jesus ficamos sabendo quem realmente somos. Exemplifica-o o diálogo entre Jesus e a mulher samaritana (Jo 4.1s). Ela se surpreende ao perceber que Jesus a conhece melhor do que ela a si mesma. Ele lhe diz a “verdade” com o que muda sua vida. Muda também sua visão da realidade em geral. Isso porque em Jesus se manifesta a palavra do próprio Deus. Sim, ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6). Faz ver as coisas em nova luz. Percebemos que somos pecadores e que não podemos justificar-nos por próprias forças. Não podemos nem devemos produzir nossa salvação por nós mesmos. Tal tentativa conduz forçosamente a fracasso e frustração. Foi exatamente essa a experiência de Lutero. A verdade do evangelho lhe revelou que o ser humano vive da graça de Deus. Não são os pretensos méritos que salvam. Também os sacramentos da igreja não têm esse efeito. O que importa é a fé.
Foi o que libertou Lutero de suas angústias. Concedeu-lhe nova coragem de viver. Denunciou a igreja de seu tempo de manter os fiéis em terrível cativeiro. A verdade o libertou e desencadeou um movimento de extraordinária dinâmica. O drama foi bem descrito por Lutero em seu hino “Cristãos, alegres jubilai…” (nº 484 do Livro de Canto da IECLB). A Reforma teve efeitos libertadores para além das fronteiras da Alemanha, da Suíça e mesmo da Europa, justamente devido à verdade que os reformadores e as reformadoras tiveram a coragem de manifestar. Não foi somente a Reforma que dividiu a cristandade. Não menos escandalosa foi a resistência do papa e das demais autoridades eclesiásticas às reformas julgadas urgentes pelo povo cristão. O Dia da Reforma articula o imperativo para lembrar a cristandade dessa verdade.
Em comparação com ela, outras coisas se tornam irrelevantes. Os interlocutores de Jesus alegam sua descendência de Abraão. Ora, ela não é nenhuma garantia de liberdade. Algo semelhante vale para outras filiações, seja a da raça branca, a do sexo masculino, seja a pertença à classe alta ou outro privilégio qualquer. Somente quem se submete ao “teste da verdade” tem a promessa de se ver livre das amarras que o prendem às ilusões do mundo, ao poder do pecado, ao egoísmo que busca o proveito próprio às custas do bem alheio. Libertação articula-se em muitas variantes. Implica combate à injustiça, defesa dos direitos dos oprimidos, luta pela paz. Da mesma forma, porém, se expressa em perdão dos pecados, em desprendimento de si e na aprendizagem do amor que se dispõe a servir a Deus e à pessoa que sofre.
A verdade de que o texto fala é a verdade do evangelho. É ela que deve estar no centro de uma prédica no Dia da Reforma. De acordo com o texto, essa verdade permanece vinculada ao nome de Jesus Cristo, ou seja, ao permanecer em sua palavra. Pergunta-se de imediato: e as outras religiões? Em contexto plurirreligioso tal pergunta é inevitável. Existe algo comparável à verdade do evangelho fora do cristianismo? Uma verdade que não prende, e, sim, liberta? Não podemos responder em lugar de outros. O assunto deverá constar na agenda do diálogo inter-religioso. De qualquer maneira, para nós existe somente a verdade cristã. É esse o caminho que a fé indica. O Dia da Reforma não tem a licença de relativizar o credo e sugerir uma opção do “tanto faz”. Com tal posição, a igreja luterana iria perder sua credibilidade.
Então, há uma série de cuidados a tomar na celebração condigna desse dia. Acrescentamos que “reforma” costuma ser palavra suspeita, até mesmo antipática. Basta lembrar a “reforma da previdência” em nosso país. Sempre há quem tema perder privilégios e saia perdendo no jogo de interesses. E, no entanto, reformas podem ser necessárias. Sem elas a sociedade periga afundar em mortal estagnação. Algo semelhante vale para a Igreja de Jesus Cristo. Também ela deve atualizar-se, corrigir seu curso, reavaliar seu discurso e sua prática. Como igreja da Reforma, somos gratos à renovação que teve lugar no século 16. Nós a devemos à ação de pessoas destemidas que por ela se engajaram, às vezes sob risco de sua vida. Com elas nós nos sabemos comprometidos. Queremos ser igreja semper reformanda. Não tememos as reformas. Claro, não queremos reformas a qualquer preço. Queremos reformas justas. Queremos renovação (!). Infelizmente o Dia da Reforma corre o risco de ser substituído pelo dia das bruxas e dos bruxos. Deste modo o anseio por renovação fica de antemão abortado. Pois bruxos não produzem mudanças. Isso foi diferente no movimento da Reforma do século 16. Acarretou benefícios, dos quais nos orgulhamos ainda quinhentos anos depois. Inspiram a arriscar reformas em nossos dias, embora saibamos que as reformas necessárias hoje devem ser outras do que aquelas de séculos atrás. Eis porque o Dia da Reforma não pode limitar-se a evocar memórias saudosistas. Quer não menos desafiar-nos a identificar reformas urgentes na atualidade, adequando igreja e sociedade a seu contexto específico – que no nosso caso é brasileiro – sempre em fidelidade ao nosso Senhor Jesus Cristo.
3. Imagens para a prédica
Se vocês permanecerem na minha palavra […] Com essas palavras Jesus distribui seu “cartão de fidelidade”. Ele convida a comprometer-se com ele e a qualificar-se como seu discípulo. E ele tem promessa. Fidelidade a esse mestre vale a pena. Ele ensina uma verdade que liberta. A natureza dessa liberdade foi descrita magistralmente por Lutero em seu tratado “Da Liberdade Cristã”. Remetemos a esse escrito. Quem explica muito bem é Joachim H. Fischer em seu tratado “Reforma – renovação da Igreja pelo evangelho”2. Nós acrescentamos um só exemplo: a verdade do evangelho liberta do ódio e ensina o empenho pela paz. A prédica poderá explorar esses temas, ambos de extraordinária relevância nas ondas de violência que sacodem a humanidade. Conclamamos a marcar pontos no “cartão de fidelidade” de Jesus, com o que cumprimos mais um dever do Dia da Reforma.
4. Subsídios litúrgicos
Oração do dia
Senhor! Nós te agradecemos por este dia que comemora um dos eventos marcantes da história da igreja. Ele reconduziu a igreja ao caminho da verdade e inaugurou processos de libertação. Dá que nossa atenção não permaneça presa ao que aconteceu no passado. Dá que sejamos animados pelo exemplo dado por Martim Lutero e outros reformadores a igualmente revisar estruturas e condutas obsoletas e promover as reformas necessárias hoje. Para tanto, rogamos por teu Espírito, para que nos oriente e capacite. Amém.
Confissão dos pecados
Senhor! O ser humano costuma resistir a reformas. Não gosta de corrigir–se nem a si mesmo nem ao mundo ao qual está habituado. Por isso, às vezes, não percebe quando as coisas correm mal e estamos ameaçados por perigos. O Dia da Reforma coloca um sinal de alerta. Chama atenção a coisas que precisam mudar. Perdoa-nos nossa cegueira, bem como a alergia a verdades incômodas, e todavia salutares. Tem piedade de nós, Senhor!
Intercessão
Senhor! Nós recomendamos a teus cuidados pessoas em situação difícil. Mencionamos especialmente pessoas desempregadas e vítimas da violência que grassa em nosso país. Consola as pessoas aflitas e elimina as causas de seu sofrimento. Nós nos lembramos das pessoas cristãs perseguidas em muitos países de nosso globo. Pertencem aos grupos religiosos mais hostilizados em pleno século 21. Também outras minorias sofrem agressões por fanatismo ou autoritarismo estatal. Queiras protegê-los da fúria de seus inimigos. Faça com que tua igreja seja um espaço de paz e justiça e que te louve justamente assim. Amém.
Notas:
1 GOMES, Laurentino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 50.
2 FISCHER, Joachim H. Reforma – renovação da Igreja pelo evangelho. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2006. p. 26.
Bibliografia
LÖWE, Hartmut. Meditation. Johannes 8, 31-36. In: Neue Calwer Predigthilfen. 5. Jahrgang. Stuttgart: Calwer Verlag, 1982. Bd. A. p. 79s.
SCHULZ, Siegfried. Das Evangelium nach Johannes. Das Neue Testament Deutsch. Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1972. v. 4.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).