Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: João 9.1-11
Leituras: 1 Samuel 16.1-13 e Efésios 5.8-14
Autor: Ramona Weisheimer
Data Litúrgica: 4º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 30/03/2014
O Evangelho de João não é para meros curiosos.
É para quem quer participar.
J. Konings
1. Introdução
O capítulo 9 de João já foi estudado seis vezes no PL, com delimitações diferentes: 9.1-7 – PL VIII e XIV; 9.1-41 – PL XXXII; 9.13-17,34-39 – PL XXI e XXVII; 9.35-41 – VIII. Boa parte desses subsídios estão disponíveis no Portal Luteranos. Quase todos os estudos propostos preocupam-se com a delimitação na tentativa de não isolar o milagre como um acontecimento em si, mas deixá-lo em sua função de sinal visível e palpável, que tem a finalidade de colocar as pessoas diante da decisão entre a fé e a descrença (Malschitzky, p. 1). É importante, então,
ter em mente o todo e não desrespeitar o contexto.
O texto de 1 Samuel trata da unção de Davi, escolhido por Deus para ser rei, apesar de tão jovem, apesar de seus irmãos serem maiores, mais fortes, de ter tão boa aparência. As pessoas olham a aparência, mas Deus olha o coração. E “O Espírito do Senhor dominou Davi e daquele dia em diante ficou com ele” (v. 13). Já Efésios lembra que aqueles que pertencem ao Senhor não são mais da escuridão. Qualquer coisa trazida à luz revela sua verdadeira natureza. Por isso “você que está dormindo, acorde! Levante-se da morte, e Cristo o iluminará” (v. 4). Portanto o Senhor que envia, que olha o coração, dá o seu Espírito e chama para a luz.
2. Exegese
O texto proposto abrange a reação dos discípulos e de Jesus diante do cego de nascença, a cura dele, o primeiro interrogatório, feito por aqueles que o conheciam e estavam acostumados a vê-lo mendigar, e a primeira resposta sobre quem seria aquele que o curou: “o homem chamado Jesus” (v. 11).
V. 1 – Jesus viu o homem. Há uma mudança de cena. Jesus estivera conversando com líderes judeus depois de impedi-los de apedrejar uma mulher acusada de adultério (8. 1-11). Jesus apresentara-se como “luz do mundo” (8.12-20), mas eles preferiram acreditar que Jesus estava dominado por um demônio, agarrando-se em sua filiação a Abraão. Quando pegaram em pedras, Jesus saiu do pátio do templo. Caminhava pelos arredores quando viu o homem “que tinha nascido cego”.
V. 2 – A pergunta dos discípulos (quem pecou, o cego ou os seus pais?) dá, por assim dizer, início à conversa. Se foi apenas curiosidade ou se os discípulos queriam obter uma resposta definitiva para assunto tão complicado, não saberemos. A ideia corrente da época relacionava doença com pecado. Principalmente os fariseus se empenhavam para estabelecer essa relação. Na tradição judaica, não é comum falar de pecado cometido ainda no útero. Enfim, interessa menos saber a motivação da pergunta. Importante é que ela se presta a introduzir o sinal e a fala de Jesus sobre sua missão. Não há relatos de cura de cegos no Antigo Testamento, mas os profetas apontam para o tempo messiânico, quando os cegos terão seus olhos abertos. O Novo Testamento fala, mais de uma vez, na visão restituída a cegos.
V. 3 – Jesus responde que nem os pais do cego pecaram tampouco ele mesmo. A doença não é vista como castigo pelo pecado de alguém. Mas Jesus diz que aquela situação servirá para que o poder de Deus se mostre.
V. 4 – Jesus prossegue dizendo que é preciso aproveitar o tempo oportuno. Ele estabelece um confronto entre luz e trevas: enquanto é dia, é preciso trabalhar para fazer as obras daquele que o enviou.
V. 5 – Enquanto está no mundo, Jesus é a luz do mundo. É o enviado pelo Pai. Quem rejeita essa luz vive na escuridão (confira também o texto de Efésios).
V. 6 – Do diálogo Jesus passa para a ação através de um sinal bem visível: ele faz uma lama, misturando saliva e terra, e passa nos olhos do cego. Ao fazer isso, transgride a lei do sábado. Mas essa transgressão não acontece por acaso.
V. 7 – Jesus manda que o cego vá lavar o rosto no tanque de Siloé, e o homem volta vendo. O tanque faz parte do sistema de suprimento de água de Jerusalém. Pelas águas de Siloé (a palavra significa o enviado ou aquele que foi enviado) o cego recupera a visão. Agora pode ver.
V. 8 e 9 – A cegueira tornava aquele homem incapaz de entrar no templo. Ele não via e era visto apenas em sua limitação e falta. Quando passa a ver, os que estavam acostumados a vê-lo mendigar têm dificuldade em reconhecê-lo.
V. 10 – Como é que agora pode ver? São seus vizinhos conhecidos que fazem a primeira pergunta/ inquirição.
V. 11 – O cego conta em detalhes tudo o que aconteceu, desde a lama feita, o lavar do rosto até obter a visão. E sobre quem fez isso responde: “O homem chamado Jesus”.
3. Meditação
J. Konings sugere algumas chaves de leitura para o Evangelho de João, que nos ajudam a meditar sobre o nosso texto. Entre elas, o olhar de João, segundo o qual o evangelista veria ao mesmo tempo o passado, isto é, o tempo de Jesus, e o presente, ou o tempo da comunidade a quem escreve. Seria uma releitura do evangelho, apresentando os gestos e as palavras de Jesus sobre um duplo pano de fundo: o tempo histórico de Jesus, nos anos 30, e o da comunidade, nos anos 90. A questão diz respeito à forma como o evangelista lida com a memória de Jesus: consoante João 20.29, João narra aquilo que Jesus fez “para os que devem crer sem ter visto” (p. 71). Sem a memória da práxis de Jesus (superação de barreiras, aceitação, doação), nossa fé não atingiria o chão. Na assimilação da identidade cristã, é lembrado que ser cristão é professar a fé em Jesus, proclamando o Cristo, o Messias, o Filho de Deus. E sempre de novo transparece no evangelho a ideia de que “o rosto de Deus, o Pai de Jesus, se manifesta no amor do Filho” (p. 74).
O momento vivido pela comunidade de João é o embate com a tradição judaica, especialmente com algumas leis e tradições que aparecem no texto, como a correlação entre doença e pecado, a observância irrestrita da lei do sábado, que acabava marginalizando muitos. O medo de ser expulso da sinagoga também fica evidente quando os fariseus começam a fazer perguntas. João escreve para fortalecer a fé dos fiéis contra a apostasia e para que a comunidade continue vivendo o amor que Jesus lhe ensinou, enxergando nele o rosto do Pai e mostrando esse rosto ao mundo através de sua prática, amparada pelo Espírito Santo.
Olhando as tantas delimitações propostas para a meditação deste capítulo, vê-se que não é possível isolar alguma parte. Ainda que nem tudo seja lido na celebração, é importante pensar no todo do texto. O texto vai crescendo a partir do milagre. Isso vale para a compreensão do ex-cego em relação àquele que o curou (“o homem chamado Jesus” [v. 11] para “ um profeta” [v. 17]); vale para o enfado de ter que repetir o que está tão patente, ou seja, que não é possível a um pecador fazer tais sinais; vale para a compreensão de que aquele que não via enxergava mais do que os que se julgavam guias. Enfim, o homem foi expulso da sinagoga (o que na época significava bem mais do que o simples ser posto para fora), mas não ficou só. Jesus foi a seu encontro. Há coisas que os olhos não veem, mas o coração sente. Ter um belo par de olhos abertos não dá garantia de ver aquilo que o coração não quer.
Interessante lembrar que J. Konings, assim como a Bíblia de Jerusalém encontram alusões batismais no texto da cura do cego de nascença: “Jesus abre os olhos do cego porque ele é a luz do mundo”; “os olhos veem a aparência, o coração vê o que está escondido” (p. 75). Assim, lavar-se no tanque de Siloé, abrir os olhos e o acolhimento na comunidade seriam indicativos batismais. Mas há controvérsias sobre isso. Para H. Malschitzky, a simples ligação com a água não seria sufi ciente.
Assim como o evangelista João, com muita propriedade, faz uma leitura atualizada, também nós podemos enxergar o agora com os olhos do texto, os olhos da fé. Tomando de empréstimo as palavras de H. Malschitzky: “Nunca é demais chamar a atenção para a relação íntima entre as questões espirituais e a vida concreta de cada dia, duas grandezas que repetidamente se tenta separar, também com a argumentação, por vezes refinada, em favor de mais espiritualidade” (p. 1). Quais as grandes questões que nos acompanham nestes dias? Se olharmos os noticiários, os boatos sobre o fim do Bolsa Família, o programa governamental de transferência de renda aos mais carentes da sociedade levaram muitos ao desespero. Cristovam Buarque disse: “Seria uma tragédia se o Brasil de hoje não tivesse o Bolsa Família. E será uma tragédia se, daqui a 20 anos, a gente continuar precisando do Bolsa Família” (IstoÉ, 15/05/2013, p. 32). Mas que pensam nossas comunidades sobre os beneficiários do Bolsa Família? Que outros costumes, conceitos e preconceitos, enfeitados de pretensa espiritualidade, acabam, em nossas comunidades, por marginalizar ainda mais aqueles que deveriam encontrar acolhida nelas? O ex-cego tornou-se instrumento de Deus. Com coragem enfrentou aqueles que se achavam donos da verdade. Não ficou quieto nem acovardado. Pagou o preço, pois não dava para ficar quieto e fazer de conta que nada mudara. Não foram somente os seus olhos que se abriram. Até que ponto temos coragem de dizer que da igreja não se é sócio, mas membro, chamado por Cristo à luz?
4. Imagens
Imagens sobre luz e visão não faltam. Desde o belo texto “O saguão de luz” – há várias indicações com esse título na internet – a propagandas de TV e filmes. Há uma propaganda na TV que fala de perder a visão. Duas pessoas estão sentadas no banco de um jardim: um homem cego e uma criança que vai descrevendo o que há naquele jardim: árvores, pássaros, florzinhas. Ele pergunta à menina se é bonito ali, e a propaganda prossegue falando de tudo o que envolve perder a visão e das possibilidades de prevenção e cura. Interessante o juízo de valor que ele pede à menina (“você acha esse lugar bonito?”), que mostra a vontade de também enxergar, ver o mundo. Também vale a pena comentar o filme “O amor é cego”. É uma comédia romântica, mas nela o apaixonado vê sua amada apenas com os olhos do coração.
5. Subsídios litúrgicos
Cânticos:
Os seguintes cânticos poderiam ser cantados na celebração: O Lucernário (Livro de Culto, Cânticos Litúrgicos, p. 337); Que a luz de Cristo brilhe (Grupo Anima); Dá-nos esperança e paz (Coleção Miriã).
Confissão de pecados:
Bondoso Deus, nosso criador. Em amor formaste cada um e cada uma de nós e nos deste o sopro da vida. E nós pretendemos decidir quem merece viver e quem deverá apenas acumular os dias. Em amor deste a todos a luz. E nós pretendemos aprisioná-la aos nossos pequenos propósitos. Abre verdadeiramente nossos olhos, Senhor, para que o brilho do mundo não nos cegue, mas a tua luz nos indique o caminho por onde andar. Perdoa-nos, Senhor. Somos teus. Amém.
Oração final:
Que a palavra do Senhor, que é luz na escuridão, abra os nossos olhos e os nossos corações para ver os que estão sentados no lado de fora, sem encontrar lugar; os que sobrevivem apenas de esperança; os que já estão cansados de lutar. Que a luz de Cristo nos dê a força para testemunhar, para não calar, e a inocência para continuar insistindo, mesmo quando a escuridão teimar. Que o Espírito Santo de vida e luz nos conduza, no presente e futuro, sem jamais desanimar. Amém.
Bibliografia
KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
MALSCHITZKY, Harald. Meditação sobre João 9.1-7. In: Proclamar Libertação VIII. São Leopoldo: Sinodal, 1982 (acessível no Portal Luteranos).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).