Sim, o Senhor se compadece
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Joel 2.1-2,12-17
Leituras: Mateus 6.1-6, 16-21 e 2 Coríntios 5.20b – 6.10
Autoria: Carlos Arthur Dreher
Data Litúrgica: Quarta-Feira de Cinzas
Data da Pregação: 02/03/2022
1. Introdução
Cinzas
A tradição das cinzas como sinal de penitência remonta à Bíblia Hebraica. No Livro de Jonas (3.5-8), o ritual é descrito com detalhes. Em sinal de arrependimento, o rei de Nínive proclama um jejum. Ele e as pessoas em Nínive rasgam as vestimentas bonitas, vestem-se de panos de saco e sentam-se sobre cinzas. Até os animais domésticos devem seguir esse rito.
No Primeiro Livro dos Reis (21.27) ocorre um rito semelhante: em sinal de arrependimento, o rei Acabe rasga suas vestes, cobre-se de pano de saco, jejua e dorme sobre panos de saco. Aqui, porém, as cinzas não são mencionadas. Também Jó (1.20), após perder tudo o que tinha, rasga seu manto, raspa a cabeça e se lança em terra. Mais adiante (2.8), senta-se em cinzas. Aqui não se trata de arrependimento, mas de uma espécie de luto pelo que se perdeu.
A igreja assumiu essa tradição. A partir do século VII, já se conhece a Quarta-Feira de Cinzas como o início da Quaresma, o período de jejum que antecede a Páscoa. É tempo de penitência, em preparação à festa da ressurreição.
Na Quarta-Feira de Cinzas, os penitentes são vestidos com roupas penitenciais, cobertos de cinzas. A partir do século X, passa-se a consagrar as cinzas. Mais tarde, em torno de 1090, clérigos e leigos são marcados na testa com uma cruz feita de cinzas obtidas de ramos guardados desde o Domingo de Ramos do ano anterior.
O tempo de penitência e de jejum durará quarenta dias, a contar da Quarta–Feira de Cinzas, terminando no Sábado de Aleluia. Não se contam os domingos, pois cada um deles lembra a ressurreição de Jesus. Não se pode jejuar no dia da maior alegria cristã.
Pela tradição israelita, assumida pelos cristãos, o domingo começa às 18h de sábado, estendendo-se até às 18h de domingo. Assim, o jejum é suspenso no sábado à noite e retomado ao anoitecer de domingo. Não há, pois, nada de errado em alegrar-se e festejar no sábado à noite e no dia de domingo.
Por último, vale lembrar o significado do jejum. Não se trata de dieta para emagrecer ou desintoxicar, ainda que isso seja um benefício adicional. Trata-se mesmo de deixar de comer algo que se irá dar para quem nada tem de comer. O que eu não como beneficiará alguém que passa fome constantemente.
É interessante que, até hoje, algumas famílias negras fazem churrasco na Sexta-Feira Santa. É que, no passado, senhores brancos cristãos deixavam de comer carne naquele dia e a davam a seus escravos, que, então, podiam alegrar-se com aquele presente, fruto do jejum.
Os textos
No que diz respeito à relação entre os textos previstos para a celebração desta data, percebo o seguinte: o texto previsto para a pregação, Joel 2.1-2,12-17, chama à conversão e conclama a um jejum com a intenção de aplacar a ira do Senhor e alcançar sua misericórdia. O evangelho do dia, Mateus 6. 1-6,16-21, nos fala da prática do crente em dar esmolas, na oração e na prática do jejum, que não devem servir à exaltação e à exibição do praticante, mas devem ser praticadas sem ostentação e em segredo. Em 2 Coríntios 5.20 – 6.10, Paulo já não fala em jejum, mas nas atitudes que o crente deve assumir após se reconciliar com Deus e feito justiça de Deus em Jesus Cristo.
Jejum, pois, sem exaltação própria ou soberba, deve levar a novas atitudes na piedade do cristão.
2. Joel e o texto de pregação
Joel
Pouco ou quase nada sabemos desse personagem. Diferente de outros livros de profetas, o cabeçalho do livro não traz mais do que a nota: Palavra do Senhor que foi dirigida a Joel, filho de Petuel (Jl 1.1). Não há qualquer indicação histórica, também não no interior do livro. Hans Walter Wolff, num amplo estudo sobre o autor e a época, em seu comentário, conclui, após longo estudo literário de livro, que a comunidade de fé intacta que transparece no texto nos aponta a época após Esdras e Neemias, portanto para a primeira metade do século IV a.C.
Por sua linguagem e seu conteúdo, o livro de Joel encontra-se no limiar entre escatologia profética e apocalíptica.
O texto de pregação
V. 1-2 [3-11]) – A passagem inicia com uma ordem para tocar em Sião o shofar, a trombeta de chifre de carneiro, comumente utilizada para chamar a atenção para um perigo iminente. Sião, o santo monte de Deus, está localizado em Jerusalém, de onde deve partir o alarme para toda a população da terra.
Por que o alarme? Porque o dia de Javé se aproxima!
O conceito do dia de Javé é, em sua origem, um conceito contra os inimigos de Israel. Provém do período tribal e se situa no contexto da Guerra Santa. O dia de Javé é o dia em que o Senhor se volta contra os inimigos de seu povo, destroçando-os.
Contudo, na profecia clássica, o conceito se altera, passando a significar praticamente o seu oposto. O dia de Javé é agora o dia em que o Senhor se volta contra o próprio povo, ou melhor, contra o seu segmento governante. Isso já pode ser percebido em Amós:
Ai de vós que desejais o Dia do Senhor! Para que desejais vós o Dia do Senhor? É dia de trevas e não de luz. Como se um homem fugisse de diante do leão, e se encontrasse com ele o urso; ou como se, entrando em casa, encostando a mão à parede, fosse mordido de uma cobra. Não será, pois, o Dia do Senhor trevas e não luz? Não será completa escuridão, sem nenhuma claridade? (Am 5.18-20).
Também em Sofonias, entre outros:
Naquele dia, não te envergonharás de nenhuma das tuas obras, com que te rebelaste contra mim; então tirarei do meio de ti os que exultam na sua soberba, e tu nunca mais te ensoberbecerás no meu santo monte. Mas deixarei no meio de ti um povo humilhado e fraco (ani vadal), que confia no nome do Senhor (Sf 3.11-12).
Também é assim em Joel. O dia de Javé é dia de escuridade e densas trevas (v. 2) em que surge um povo grande e poderoso. Que esse povo é assustador e avassalador que vai destruindo tudo só se depreende do trecho seguinte (v. 3-11), totalmente suprimido por quem propôs esse texto para a pregação. Há que fazer menção a isso na pregação, ainda que não se leia a parte. Contudo, estranho esse recorte, que parece ter sido feito por quem não conhece exegese (!).
V. 12-14 – Em meio a esse terror da destruição, o Senhor mesmo fala, chamando à conversão (v. 12). Tal conversão não deve ocorrer com cinzas e pano de saco, mas deve ser uma conversão de todo o coração, com jejum, choro e pranto. Embora jejum e lamento ainda representem rito, o que Deus quer é a transformação do fiel.
É preciso rasgar o coração, e não as vestes! Mais uma vez um não ao rito! Um sim ao interior, ao íntimo! É necessário converter-se totalmente ao Senhor. É a única possibilidade de escapar à catástrofe. Por quê? Porque o Senhor é bom! Porque é misericordioso, compassivo, tardio em irar-se, grande em benignidade. Os muitos adjetivos quase não bastam para explicar o amor de Deus pelo pecador!
E aí o texto afirma algo incompreensível em grande medida para nós: Deus se arrepende! O tema é recorrente no Antigo Testamento. Cito apenas Jonas 3.10, o que tanto irrita o profetinha. Mas há também Jeremias 26.3,13; Amós 7.3 e Gênesis 6.6, entre outros.
Sim, a palavra de Deus volta atrás diante do arrependimento do pecador e da pecadora. A suspenção do castigo vai além, até a morte de seu Filho, por nós!
Por isso, “quem sabe?”, talvez, diante de nosso arrependimento, o Senhor suspenda o seu juízo. De fato, não há certeza de que o jejum de arrependimento tenha sucesso. Porém há esperança!
V. 15-17 – Retoma-se a convocação através da trombeta tocada em Sião, agora promulgando um jejum e proclamando uma assembleia solene. O povo deve reunir-se para jejum e culto, do maior ao menor, do mais velho até o recém-nascido. Ninguém deve faltar, nem mesmo o noivo e a noiva recém- casados!
Nessa assembleia solene toda essa congregação deve ser santificada, abstendo-se de trabalho, comida e sexo (Wolff). À frente dela, no interior do templo, entre o pórtico e o altar, os sacerdotes, os ministros do Senhor, são chamados a chorar e a orar, implorando: Poupa o teu povo, Senhor! Não permitas que a tua herança – aqueles que são teus – passem vergonha diante das nações, que escarnecerão deles e desfazendo de seu Deus, dizendo: “Onde está o seu Deus?”.
Nosso recorte termina em suspense. Qual será a resposta do Senhor diante de tanta comoção, assembleia solene, consagração do povo, do maior ao menor, intercessão de sacerdotes?
Isso só será dito no versículo seguinte, v. 18. Sim, o Senhor se compadece. O “talvez” se concretiza. O povo do Senhor está salvo!
3. Refletindo em direção à prédica
Escrevo em meio à pandemia da Covid-19, um inimigo devastador, composto não por um exército sanguinário, mas por um vírus temível. Hoje, 15 de junho de 2021, atingimos as catastróficas marcas de 490.696 mortes no país, desde seu início, e 2.468 óbitos apenas no dia de hoje. Ocorreram hoje 80.609 novos casos da doença, e o total de infecções chega a 17.533.221. Além disso, anuncia-se a chegada de uma terceira onda de agravamento da pandemia. O governo federal ainda reporta 15.944.646 pessoas recuperadas da Covid-19 e 1.097.879 pacientes em acompanhamento.
Desde quando começou a pandemia no Brasil, em fins de fevereiro de 2020, autoridades sanitárias alertaram para a necessidade de medidas preventivas contra a doença, como uso de máscaras, distanciamento social e principalmente a utilização de vacinas já fabricadas na Europa e na China. Autoridades políticas, porém, minimizaram o fato, dizendo que se tratava apenas de uma “gripezinha” e que, sim, “algumas pessoas iriam morrer”, mas que tudo passaria rapidamente. Tais autoridades também evitaram ostensivamente as medidas propostas e deixaram, inclusive, de comprar as vacinas oferecidas no início.
A trombeta havia soado, dando o alerta, mas quem devia tomar a frente inclusive zombava da maneira como pessoas morriam.
Pessoas sensatas levaram a sério a proposta das autoridades sanitárias e, junto a isso, uniram-se em oração, pedindo que Deus fizesse passar a pandemia, intercedendo pelas pessoas infectadas e buscando consolar as pessoas enlutadas por tantos familiares queridos cuja vida fora ceifada pela doença. Foram assembleias congregadas na fé que, além de orar, buscaram e ainda buscam exercer a solidariedade, arrecadando alimentos e, inclusive, dinheiro para pagar as despesas médicas que se avultavam.
Catástrofes como secas prolongadas, enchentes desmedidas, brutais acidentes aéreos, entre outras, como essa pandemia, são tidas por muitas pessoas como castigo divino, consequência do pecado de muita gente, senão da humanidade toda. Não creio nisso. Muito menos consigo imaginar que Deus faça vir tais castigos indistintamente sobre justos e injustos, sobre bons e maus.
Sim, há catástrofes que são provocadas pelo próprio ser humano no mau trato da natureza ou em conflitos sociais. Porém isso não se trata de males mandados por Deus para nos castigar. Sim, o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna (Rm 6.23).
Não se trata de buscar culpados, a fim de execrá-los ou até mesmo de linchá-los. Trata-se de buscar o Senhor e clamar por sua infinita bondade e misericórdia que nos livre do mal!
Com base nessas reflexões, proponho duas possibilidades para a pregação:
1) Abordar o texto de Joel enfatizando o aspecto da penitência diante de uma catástrofe. Importante seria relacionar a ideia de catástrofe com a situação de pandemia que estamos vivenciando (que talvez já tenha passado por ocasião da pregação) e salientar a importância de oração e súplica por parte da comunidade reunida. O jejum como parte da penitência – não como dieta ou regime alimentar – deveria ser ressaltado, relacionando-o com a Quarta-Feira de Cinzas e com a Quaresma. Aqui se poderia relacionar o texto de Joel com o Evangelho de Mateus 6.1-6,16-21 e a epístola de 2 Coríntios 5.20b – 6.10. O acento principal da pregação deveria recair sobre a fé na benignidade e na misericórdia de Deus – não como certeza de uma salvação mágica, mas na perspectiva do “talvez”, da esperança de que Deus nos conceda o fim do mal que nos aflige.
2) Partindo do texto de Joel, abordar o tema da Quarta-Feira de Cinzas, apontando para o jejum na Quaresma como penitência – não como flagelação de si próprio, buscando suscitar a dó ou a pena do Senhor, mas como abstinência do muito em benefício do muito pouco ou quase nada de outras pessoas, como descrito no início deste auxílio homilético.
4. Subsídio litúrgico
Como subsídio litúrgico, proponho apenas o poema de Gregório de Matos (1636-1696):
Pequei, Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado
Da vossa alta clemência me despido;
Antes, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória
Bibliografia
MENDES FILHO, José Ribamar. O arrependimento de Deus no Antigo Testamento: um estudo do verbo Nacham. 2017. Dissertação (Mestrado) – Faculdades EST, São Leopoldo, 2017.
NIEWÖHNER, Stefani. O “dia de Javé” em Sofonias: uma leitura intertextual. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, São Leopoldo, 2016.
WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2. Joel und Amos. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1969. (Biblischer Kommentar Altes Testament, v. XIV/5).
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).