Justificação por graça e fé
P. Albrecht Baeske
Aproximar das pessoas a fé em Jesus Cristo
Não apenas o apóstolo Paulo é devedor tanto a sábios como a ignorantes (cf. Rm 1.14), nós também o somos. Ora, é possível aproximar das pessoas a verdade da fé em Jesus Cristo. Verdade, naturalmente, não entendida como cabedal científico para entender as coisas. Mas verdade como aquela compreensão que revela às pessoas que procuram entender as coisas, o que elas próprias são.
Não se trata de um método de conversão. Através da sua aplicação as pessoas não chegam a confiar — na vida e na morte — na verdade que a fé em Jesus Cristo traz. Para que isso aconteça, Deus precisa abrir o coração delas (cf. At 16.14c). Ainda assim, o referido aproximar é capaz de mostrar que a verdade cristã (P. Althaus) não é boba nem insensata. Ao contrário, ela pensa. É conclusiva e lógica em si — se bem que na fé com a qual Deus agracia onde e quando lhe apraz.
Lindolfo Weingärtner está engajado na tarefa de aproximar das pessoas a fé em Jesus Cristo; como tal nos questiona a quantas anda esta tarefa em nosso serviço diário, sejamos obreiros eclesiásticos ou não.
Interpretar de jeito não-religioso
Deus pode dar a fé via dita aproximação. Pois esta faz parte da pregação — um dos instrumentos de que Deus lança mão para operar a fé. D. Bonhoeffer chamou a aproximação em tela de interpretação não-religiosa de conceitos bíblicos. Ela envolve coração, cabeça e braços dos hermeneutas. Se Deus concede a sua graça, tal interpretação consegue encurtar o caminho para ele. Não o torna mais rápido, nem mais fácil, mas menos longo.
Quanto mais os mencionados conceitos são complicados e retocados, ou gastos e sem relação com a vida concreta, tanto mais cumpre a sua interpretação não-religiosa. A mesma fica imprescindível a fim de que a fé em Jesus Cristo se comunique com os nossos contemporâneos. Urge que a fé em Jesus Cristo seja puxada para dentro da vida nua e crua, pois bem aí Jesus Cristo se deixa apreender. Ele pode ser reconhecido somente por experiência própria. Lutero ensaiou o trabalho penoso de puxar a fé para a vida e o estimula no povo que aprende com ele.
Por um lado, a interpretação não-religiosa arrefece a crescente embriaguez religiosa, que se esconde na transcendência (F. Carpinejar), possibilitando o gosto de querer saber mais. Por outro, aliena, de modo catártico, termos cristãos chaves que viraram chavões, constituindo desafio e opção existenciais, renovados e surpreendentes, para os que se consideram inteirados deles.
Interpretar de jeito não-religioso a justificação por graça e fé
Um dos conceitos que clamam por interpretação não-religiosa é o da justificação por graça e fé. Termo que representa um resumo dúbio do artigo IV da Confissão de Augsburgo [CA] por não colocar justiça diante de quem e justificação através de quem.
Seja como for, o conceito tenta abarcar o primeiro e principal artigo [da fé em Jesus Cristo] do qual, conforme Lutero, a gente não se pode afastar ou fazer alguma concessão, ainda que se desmoronem céu e terra ou qualquer outra coisa . Trata-se do afamado artigo com o que a Igreja fica de pé ou cai.
Dito diferente: o conceito pretende indicar para o albume da noz, o germe do trigo e o tutano dos ossos da fé em Jesus Cristo. Razão para instar que seja desdobrado seu intuito e, concomitantemente, pedido a Deus que tal escopo atinja, envolva e transforme as pessoas que estão sendo informadas a respeito do centro ativo da fé em Jesus Cristo.
Pessoas indagam acerca de si próprias
Uma possibilidade de aproximar das pessoas o centro ativo da fé em Jesus Cristo parte da observação de que elas perguntam a respeito de si. As formas de fazer isso são tão incontáveis quantas são as pessoas. Giram ao redor de questões como: quem sou eu? tenho valor? minha vida tem sentido?
Isso ocorre antes num entusiasmo otimista, propulsor da auto-verificação pessoal e da estratificação afirmativa do ambiente, do que num espírito pessimista, derrotista, lamuriante.
Indagar a respeito de si é afirmação do ser humano e experiência geral altiva de nós todos. Independe de nossa origem, cultura e formação. Simplesmente caracteriza a condição humana. É-nos inerente e nos diferencia dos animais.
Sempre vale: O ser humano é aquele ser que se questiona porque não tem certeza a seu respeito (Chr. Dietzfelbinger). No ser humano, tal fato é igual ao volante no relógio: mantém-lo em continuo movimento. Agora, este movimento é guiado pela reflexão e não pelo instinto. É sinal da liberdade do ser humano, é sua festa, coroa e estrela.
Pessoas respondem, indicando para seus feitos
As pessoas reagem ao questionamento inato nelas sobre seu valor. Sabem que são alguém. A pergunta as lembra desta realidade. Já que são cônscias dela, passam a comprová-la, apresentando seus feitos.
As configurações dos feitos são igualmente tão incontáveis quantas são as pessoas que os produzem e as circunstâncias que os facilitam. Qualquer hierarquização dos feitos sob aspecto moral, ou o que valha, enuvia a percepção do pulsar da vida humana. Sua inspiração é aquela indagação inerente e sua aspiração é esta resposta comprobatória.
Problematizar ou melindrar a conjuntura humana dada significa denegrir as pessoas. Por princípio, não há nenhum motivo para tal atitude. Ela corre o risco de rejeitar a realidade de o ser humano ter sido criado. Gente cristã afoita deve cuidar aí. Dificilmente se coopera com a conversão de pessoas, arrasando-as. Antes de tudo, convém ter cristalino: não caluniar o nosso próximo ou fazer acusação falsa contra ele; mas… desculpa-lo, falar bem dele e interpretar tudo da melhor maneira.
A indagação acerca de si mesmo ameaça
A pergunta peculiar nas pessoas sobre o seu valor é insistente. Nunca fica satisfeita com as respostas e as prestações de contas daquilo que se realiza. Também quando estas se avolumam, talvez se qualifiquem ininterruptamente, ela segue instigadora, incansável e insaciável. O que não exclui que, volta e meia, silencie e parece desaparecer. Não obstante regressa assaltando a gente com violência ainda maior — em regra, nas épocas menos apropriadas da nossa vida.
É possível que a pessoa se esquive da indagação acerca de si — durante um bom tempo. Ou que a pessoa a responda com tamanho desembaraço e esforço ou verdor inteligente que a pergunta indagadora se retraia — por certo período. Contudo, a pessoa não o consegue a vida inteira. Percebe, no fim das contas, que está entregue àquela indagação, faça o que quiser. A pessoa está submetida a ela, seja para o bem, seja para o mal.
Diante disto a indagação a respeito de nós que, no início, desafia e faz desabrochar, torna-se incômoda, pior: um fardo sufocante. O que se experimentou alguma vez como manifestação de liberdade, vira ameaça. Antes experimentada como amiga animadora, experiencia-se agora a indagação acerca de si mesmo como tribunal íntimo para nos tiranizar.
Na revolta contra a indagação a respeito de si, pessoas se comprovam
O ser humano jamais se conforma com o fato de que o auto-questionamento o ameaça. Ele se rebela contra ele; resiste a virar seu saco de pancada. O ser humano anseia ser livre dele ou, ao menos, garantir-se perante ele, melhor: triunfar diante dele. Nesta determinação, entra de corpo e alma na luta por auto-afirmação, tão necessária quanto o seu alimento diário.
Eis a contingência que pessoas com aguçada reflexão almejam para se comprovar. É a hora aguardada da sua verdade. Elas se consideram efetivamente seres humanos apenas se enfronhadas na batalha acirrada por auto-afirmação. Para elas, reside aí a singularidade abissal da existência humana. A nossa vida, segundo elas, não é divertimento, brincadeira, enfim, ambiente de praia, como para pessoas que ressaltam o seu valor devido ao grau de prazer e luxo que alcançam.
Motivo pelo qual as primeiras são, deveras, questionadoras muito mais candentes e eficientes dos homines praienses do que cristãos de fôlego curto, que pretendem apressar e pressionar para que ambos se convertam, o quanto antes. De pronto, pertence à preparação de caminho conjeturar que os dois grupos se controvertam. Organizar encontros assim é iniciativa primordial dos que se confessam devedores aos que não chegaram, por ora, à fé em Jesus Cristo.
A comprovação derradeira de si mesmo
As pessoas de aguçada reflexão são tudo, menos festivas. Elas se destacam por autocrítica e olho clínico relativo à realidade que as rodeia. Em virtude disto, se lhes abrem duas veredas para ficar de pé ante o auto-questionamento, quem sabe, até se impor a ele.
A primeira, íngreme e pedregosa, poucos trilham: as pessoas perseguem — com todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e com todas as suas forças — aquilo que se colocaram como ideal ou descobriram como sua missão, seja na esfera pessoal, emocional, familiar, profissional ou sócio-política. Aí nada as desvia e ninguém as demove, muito menos o fracasso. Tais pessoas, por sinal, possuem no fracasso seu maior incentivo para prosseguir. Sob hipótese alguma julgam sua causa perdida. Assim chegam a dar sentido, inclusive, à experiência do absurdo. São os Sísifos, os heróis de nossos dias. Quanto maior a dificuldade, tanto maior sua resistência. Apostam o que são e tudo de que dispõem em seu ideal, ofertam a vida à sua missão. Sabem morrer em plena consciência — e não por bagatela ou em conseqüência de vícios que acarretam autodestruição. A morte pelo ideal, pela missão, é sua comprovação derradeira.
A segunda vereda, espaçosa e plana, muitos trilham: as pessoas — sendo indivíduos e também integrantes das diferentes modalidades convivenciais — se comparam mutuamente. Competem entre si quanto a sua origem e seu caráter, sua raça e seu povo, sua formação e seu afã, sua utilidade e seu poder criativo. São os Prometeus, os tocadores de obras de nossos dias. Resultado: a minoria se destaca e a maioria se frustra. Enquanto o sucesso toma conta da minoria coroada de êxito, a maioria se conforma com sua falta de competitividade e vira fatalista, vegetando com as migalhas da minoria. As pessoas vencedoras necessitam das vencidas como contraste para brilhar ainda mais. As usam para se espelhar vitoriosamente nelas — e, se for o caso, à base de sua filantropia. Um dia, a coação da competitividade empurra as pessoas de êxito à frente. Então, sua ânsia de se comparar com as restantes desemboca em desqualificá-las, o desqualificá-las em marginalizá-las, o marginalizá-las em descartá-las, o descartá-las em condená-las, o condená-las em eliminá-las. Embora não se chegue às vias de fato, o impacto da segunda vereda em conseguir a comprovação derradeira leva a que, no fim e ao cabo, sobrem unicamente os competitivos.
A compreensão não-religiosa da justificação por graça e fé
O auto-questionamento vem de Deus
A fé em Jesus Cristo testemunha que Deus está por detrás do auto-questionamento. É ele que, através deste, joga as pessoas nas veredas esboçadas. Começa a chamar as pessoas a si para que parem, ouçam e façam o que ele lhes diz (cf. 1 Sm 3.1-18 e At 9.1-9 par.).
Se insistirem em reagir àquela indagação segundo seu arbítrio, conforme traçado acima, Deus não as abandona, ofendido e inepto. Já que está incrível e ilimitadamente apaixonado por suas criaturas, ele aguça a indagação em tela de maneira que as pessoas não a podem mais administrar, causando nelas birra ou remorsos que crescem sem limites.
Deus abre as pessoas para si e o seu por intermédio do auto-enredamento delas, no qual ficam fixadas única e exclusivamente em si e no seu, de modo que jamais se enxergam, embora se instale nelas a sensação de uma traiçoeira auto-sugestão. Ao mesmo tempo, incapazes de especificá-la, perseveram enrascadas na funesta sugestão que exercem sobre si.
Eis o motivo por que multidões, atucanadas, são vitimadas pelos vícios ou dependências mil. O pior entre esses é sempre teimar em ter razão, pois isola a pessoa das demais. De novo verifica-se que é duro para as pessoas recalcitrarem contra o aguilhão (At 26.14) — o auto-questionamento que Deus desencadeia, mantém vivo e leva ao extremo. A fé em Jesus Cristo arremata: as pessoas são de Deus, ponto final. Acabam por cair nas mãos do Deus vivo (Hb 10.31); aliás, nunca escapam dele (cf. Jn, SI 139, Rm 1.18-32).
Deus liberta as pessoas voltadas para si mesmas
A fé em Jesus Cristo testemunha que as mãos de Deus são carinhosas, exatamente quando estendem às pessoas o cálice amargo da dor auto-infligida, colhida nas veredas que trilham. Deus quer, de todo jeito, nos livrar do nosso auto-encurvamento, que nos dilacera. É sua livre decisão amorosa de pôr termo ao fato de nos depreciarmos (cf. Eclo 14.6) e destruirmos a nossa própria carne (cf. Pv 11.17). Ele não diligencia infelicitar-nos, mas conduzir-nos para o encontro feliz com ele.
Segundo a fé em Jesus Cristo, Deus se evidencia nisto ai. Justamente, aqui e agora, leva a cabo a sua divindade. Antes de todos vê que o nosso inimigo, o único que temos, somos nós mesmos. Desde sempre irrompe a libertação que ele preparou para as suas criaturas engolidas por si próprias (cf. 1 Co 2.6-16; Rm 16.25-7; Ef 1.3-14, 3. 9-13).
A fé em Jesus Cristo crê, ensina e confessa que aprouve a Deus libertar-nos de nossas garras, nas quais nos metemos e gostamos de sofrer. Com nossa fantasia e nossos esforços nos enredamos sempre mais. Nós nos friccionamos até o sangue em nossas amarras; em vez de rompê-las, cortamo-nos mais fundo ainda. Para que isso termine, urge o homem certo, / que o próprio Deus escolheu. / Seu nome é Jesus Cristo, / e não há outro Deus. Ele é o rompedor de todo laço, simultaneamente nosso libertador e nossa liberdade (cf. Jo 8.31-59, 18.2-11; Gl 5; 1 Co 1.18 — 2.16, 4. 1-5, 7.29-31; 2 Co 3.7-18, 5.14-21; Rm 8). Isso, no entanto, precisamente por não ser jamais esperado, imaginado, ouvido, ocorrido e experimentado (cf. 1 Co 2.6-16): Bem antes mesmo de eu nascer, tu para mim nasceste. E mesmo sem te conhecer, a mim já escolheste. Muito antes de formar-me a mim, Senhor, um jeito achaste, sim, de seres meu de todo (P Gerhardt).
Como Deus liberta as pessoas que giram em volta de si
A libertação que Deus promove, acontece de modo mediado, concreto e histórico, humano e elementar, material e corporal. Que Jesus Cristo destrói todos os laços em absoluto é discurso, apelo ou estimulo, mas ação que cria nova criatura, que estabelece uma nova realidade (2 Co 5.16s.). Jesus Cristo entra em campo com seu Espírito e dons — onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome (Mt 18.20).
Ali ele solta a sua palavra que liberta, consola e emprega. Ali, mediante o Batismo, ele assume, segura e transforma, pessoalmente, cada indivíduo e o integra no povo dos seus. Ali ergue e faz recomeçar os oprimidos e deprimidos por si mesmos com auxílio de desvelamento e remoção do auto-enredamento, em forma comunitária e particular. Ali é cozinheiro, garçom, comida e bebida em sua mesa de comunhão, desligando os comensais de si próprios e do que têm, ligando-os a si, Jesus Cristo, e, em coerência, entre eles — não em beneficio próprio, mas do mundo.
O conjunto de dois, três e uns mais, reunidos em nome de Jesus Cristo, é a esfera onde Deus liberta as pessoas. Fora deste âmbito, elas ficam entregues a si, com as conseqüências aludidas e outras semelhantes. A participação na reunião em nome de Jesus Cristo é, simplesmente, vital para todos os cansados de si e sobrecarregados consigo (cf. Mt 11.28). Não importa a qualidade moral e espiritual, ou o que o valha, do pessoal reunido, mas sim o que sucede em seu meio: Jesus Cristo libertando os que se prenderam em volúpia e próprio amor e estão para morrer em vaidade a morte horror.
Por que a libertação se dá na reunião em nome de Jesus Cristo
Jesus Cristo envolve as pessoas de maneira total. Ocupa nossos cinco sentidos. Aproveita o vernáculo de nosso coração e suas particularidades, pessoas de nosso convívio, ocasionais e estranhas, água, pão e vinho, bem como gestos e jeitos humanos. Logo, emprega tudo o que nos é diário e comum para entranhar-se em nós, a fim de nos recriar e conceder parte nele e, através de nós, encaminhar a transformação daquilo que aí está.
A fé em Jesus Cristo, que assevera a libertação dos cansados de si e dos sobrecarregados consigo, é realista: o ser humano jamais é libertado de si e do seu de uma só vez como por encanto. Pelo contrário, a referida libertação deve sobrevir constantemente — no conjunto de dois, três e uns mais, reunidos em nome de Jesus Cristo. Apenas pessoas expostas continuadamente à palavra de Jesus Cristo aí manifesta, mantidas aí na permanente lembrança do seu Batismo, exercitando-se aí regularmente no confessar-se, bem como no ser confessoras, e comungando aí vitaliciamente na mesa de Jesus Cristo — tão-só tais pessoas experimentam que não são devoradas por si próprias sem o notarem, embora, volta e meia, quase de novo engolidas. Na medida em que o ser humano convive bem aí onde Jesus Cristo liberta, fica calejado e agraciado com o comprometimento dele: Atém-te a mim, agora o conseguirás [resistir a ti próprio] . Entrego-me todo por ti, e assim lutarei por ti [em teu lugar] , pois eu sou teu, e tu és meu, e onde eu estiver, tu estarás, o inimigo [inclusive, tu mesmo] não nos apartará (M. Lutero).
O risco que correm os integrados no âmbito onde Jesus Cristo liberta
A fé em Jesus Cristo percebe, explica e assere que, exatamente, pessoas convivais no conjunto das duas ou três e mais algumas, reunidas em nome de Jesus Cristo, são tentadas a refletir sobre si. Elas correm o permanente risco de se comportar de forma idêntica aos Sisifos e Prometeus — sob forma cristã. O eu procura sobreviver, preferencialmente, na pessoa ouvinte da palavra de Jesus Cristo e batizada, confessante/confessora e comungante. Resistente como é, o eu teima, mais que nunca, ir avante, firme e estável. Anela continuar no centro.
No decorrer da auto-reflexão, sucede que a pessoa integrada na esfera onde Jesus Cristo liberta acha poder se auto-conscientizar da libertação que este opera nela. A pessoa o intenta pela apresentação de efeitos da libertação, acrescentando de pronto: quem deseja ter certeza desta libertação precisa ansiar por e evidenciar tais efeitos. As maneiras de fazê-lo são tão multiformes e inumeráveis quantas são as pessoas. Igualmente, as configurações dos efeitos são tão multiformes e inumeráveis quantas são as pessoas que cismam constatá-los em si e os ambientes que os parecem exigir. É o mesmo jeito arbitrário de os Sisifos e Prometeus reagirem ao auto-questionamento, provocado por Deus, com que, agora, se reage à libertação promovida por Jesus Cristo. Tanto quanto Sisifos e Prometeus querem comprovar seu valor, assim também pessoas integradas no âmbito onde Jesus Cristo liberta anseiam provar sua fé.
Como integrados na esfera onde Jesus Cristo liberta lidam com o risco de se tornar Sisifos e Prometeus cristãos
A fé no testemunho evangélico luterano insta com os integrados no âmbito onde Jesus Cristo liberta para que, em vez de refletirem sobre si, se entranhem mais e mais em Jesus Cristo, a doce ação-maravilha de Deus, e em seus quatro desdobramentos. Logo, esta fé enfrenta e afasta qualquer auto-reflexão dos ouvintes da palavra de Jesus Cristo e batizados, confessantes/confessores e comungantes. Razão pela qual a CA insiste em que sejam feitas obras, exclusivamente, ao próximo. A pessoa é, de imediato, levada longe dela própria. Ela existe, por assim dizer, além de si — em Jesus Cristo.
Desta sorte, a fé no testemunho evangélico luterano consola e liberta a pessoa. Consola-a em vista do seu desempenho diminuto ou insucesso na lida diária. Liberta-a da concentração em si e para o compromisso arriscado e alegre em prol dos semelhantes. Tal compromisso se materializa fora da pessoa, quem sabe até contra ela e em prejuízo daquilo que é dela. Por exemplo, caso a pessoa seja abastada, reparte com os miseráveis; influente, advoga pelos desamparados; escolarizada, colabora com a alfabetização integral dos não-letrados. Caso a pessoa esteja sujeita ao voto de cabresto, destrói coletivamente o curral; excluída, luta coletivamente pela inclusão social; subjugada, atiça levantes.
A fé no testemunho evangélico luterano evita objetivar, demonstrar e ilustrar a libertação que Jesus Cristo efetua na pessoa. A fé no testemunho evangélico luterano procede assim por dois motivos. Primeiro, quer confessar: quem age aí é sempre Jesus Cristo, o ubíquo, o onífero e o monoagente. Segundo: assevera poder cientificar em definitivo, tão só deste jeito, o ser humano, da quebra final e integral do enredamento auto-infligido. Nossa libertação é constatável única e exclusivamente em Jesus Cristo. Do que segue que se vive lá onde Jesus Cristo está agindo com seu Espírito e dons e a partir daí se milita alegre e confiantemente — sem reparar em si e contra toda a esperança (cf. Rm 4.18 — 5.11).
Há Sinais de paz e de Graça. Coletânea em homenagem a Lindolfo Weingärtner pela passagem do seu 80o. aniversário. Organizada por João Pedro Brueckheimer. Gráfica e Editora Otto Kuhr Ltda.Blumenau/SC, 2003, p. 187-196