Todos somos enviados para uma missão
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Lucas 10.1-11, 16-20
Leituras: Isaías 66.10-14 e Gálatas 6.7-16
Autoria: Claiton André Kunz
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/07/2016
1. Introdução
A Bíblia está repleta de exemplos de pessoas que foram enviadas para alguma missão, especialmente para testemunhar a respeito do reino de Deus. Essa missão não está restrita aos doze discípulos, que estiveram mais próximos de Jesus. Ela se estende também a todos aqueles que experimentaram o reino de Deus em suas vidas. O relato que o evangelista Lucas faz sobre o envio dos setenta é um exemplo de como essa missão de testemunhar as maravilhas de Deus é extensiva a todas as pessoas. Através desse relato podemos tirar inúmeras lições para as nossas vidas e de como essa tarefa diz respeito também a nós. Engajar-nos nessa missão de proclamar o reino de Deus não é uma questão de gosto ou opção; pelo contrário, é uma questão de obediência. Em nenhum lugar da Bíblia, entretanto, transparece que essa missão seja simples ou fácil. Ela trará dificuldades e até mesmo perigos. Mas essas dificuldades não nos isentam de cumprir a nossa parte. É nessa perspectiva que queremos olhar para o texto de Lucas, no qual o evangelista relata sobre o envio dos setenta e de sua missão.
2. Exegese
Somente Lucas relata sobre o envio desse grande grupo de discípulos. Muitas instruções dadas a esses setenta são semelhantes àquelas do relato de Mateus sobre o envio dos doze. Alguns pensam ser apenas uma variação daquele relato, mas é muito provável que Jesus utilizou o serviço de outras pessoas além dos doze e que o silêncio dos outros evangelistas se dá apenas devido ao destaque dado aos discípulos mais próximos de Jesus. O texto não relata o nome de nenhum desses setenta discípulos, e também não nos relata o que aconteceu com eles depois dessa missão. No texto de Lucas 10.1-11,16-20, podemos fazer as observações que seguem.
V. 1 – As palavras que iniciam o capítulo 10 (“Depois destes acontecimentos, porém…”) apontam para o que havia acontecido anteriormente, ou seja, a escolha dos doze. A expressão grega “também outros” ou “ainda outros” caracteriza os setenta como sendo diferentes dos doze e confirma que essa atividade não era prerrogativa apenas dos doze apóstolos. Além disso, a dispersão da mensagem pelos setenta mostra que a obra do Senhor não era mais assunto oculto, mas um empreendimento missionário a partir daquele momento. Esse número redondo e simbólico ao lado do número doze (como em Êx 15.27) parece corresponder aos setenta anciãos de Israel do Antigo Testamento (Êx 24.1; Nm 11.16). Pode dar a ideia também de um “antissinédrio” do novo reino da graça. O fato de serem enviados de “dois em dois” transmite a ideia de “irmandade”; dois sempre é melhor do que um, pois, quando um cai, o outro ajuda-o a levantar-se (Ec 4.9).
V. 2 – Jesus fundamenta a necessidade do envio dos setenta com uma ilustração da colheita. Na Bíblia, o trabalho de colheita constitui muitas vezes uma imagem fixa para o fim dos tempos (Jl 3.13; Mt 3.12; Lc 3.17; Ap 14.15; Gl 6.7). Jesus enviou tanto os doze como os setenta para colher. Assim, Jesus compara a proclamação das boas-novas com o trabalho de colheita.
V. 3-4 – Os versículos seguintes indicam que o trabalho não seria uma tarefa fácil. Cordeiros no meio de lobos não é uma situação em que se gostaria de estar. O símile indica tanto a situação de perigo como a condição indefesa, necessitando, portanto, de extrema confiança em Deus. Essa confiança também deve ser demonstrada pelo fato de não levar nada, ou seja, os setenta deveriam “ir conforme estão”.
V. 5-7 – A chegada em qualquer casa deveria ser acompanhada da saudação “Paz seja nesta casa”. Se essa saudação fosse aceita por um filho da paz, isto é, por alguém caracterizado pela paz ou um homem de paz (v. 6), promoveria uma interação entre o visitante e o hospedeiro; entretanto, se essa saudação não fosse recebida, retornaria aos discípulos, indicando que as bênçãos de Deus são especialmente concedidas àqueles que as valorizam. Ao encontrar uma casa que os recebesse, não deveriam ficar mudando de casa, escolhendo a melhor hospedagem (v. 7), mostrando a urgência da obra que deveriam fazer. Por outro lado, não deveriam sentir-se envergonhados de receber as refeições gratuitamente, alimentando-se com o que lhes davam, pois eram trabalhadores do reino e por isso eram dignos.
V. 8-11 – os versículos seguintes tratam do tema de forma semelhante, mas agora não olhando mais para uma casa, e sim para uma cidade. Como possivelmente também entrariam em cidades gentias, poderia haver algum desconforto devido às prescrições rabínicas sobre o puro e o impuro (Mt 15.1-3). Parece que Jesus os está liberando para comer “tudo o que lhes fosse oferecido”. A tarefa da pregação deveria ser mantida livre de inibições, como o permanente temor da contaminação por meio do contato exterior com a vida gentia. Paulo ratifica essa ideia quando afirma: “comam o que for posto na frente de vocês” (1Co 10.27). O cerne da missão era anunciar o reino e realizar atos que comprovassem a sua presença, como por exemplo servir as pessoas, curando-as das suas doenças (v. 9). Esse anúncio do reino deveria ser bem claro, inclusive nas cidades que não quisessem recebê-los. A atitude para com os que rejeitassem a mensagem da salvação deveria ser muito objetiva: sacudir o pó dos seus pés; anunciar que o reino de Deus estava próximo deles e fazê-los entender que enfrentariam muito maior rigor do que Sodoma no dia final (v. 12). Sacudir o pó dos pés simboliza a eliminação de qualquer comunhão intelectual com os habitantes não hospitaleiros da cidade.
V. 17 – Os discípulos que retornaram relatam sua grande alegria pela missão cumprida. Mencionam que até mesmo os demônios tiveram de obedecer-lhes quando eram enfrentados com a autoridade de Jesus. Vale salientar, que ao ordenar aos discípulos que curassem enfermos, Jesus não deu instrução expressa de expelir demônios. Mesmo assim, eles o fazem. Sua alegria é compreensível, porque no passado os nove apóstolos fracassaram na tentativa de curar um menino endemoninhado (Lc 9.37ss).
V. 18 – Jesus precisava enfrentar o perigo de superestimarem a sua autoridade pessoal sobre os demônios. Ele corrige isso com um sincero amor por seus mensageiros, de forma que não ressoa a menor reprimenda. Faz isso afirmando que ele mesmo foi testemunha ocular quando Satanás foi precipitado do céu.
V. 19 – A promessa de andar sobre serpentes e escorpiões e derrotar com autoridade todo o exército do inimigo sem sofrer danos pode ser uma recordação do Salmo 91.13.
V. 20 – O que eles já haviam conquistado e a promessa de que fariam coisas ainda maiores seriam inúteis se não tivessem como fundamento a salvação pessoal.
3. Meditação
Desde o convite, chamado e envio feito por Jesus aos discípulos, milhares de pessoas já foram convocadas pelo Mestre a segui-lo e envolver-se em sua missão. E ele continua enviando ainda hoje:
A responsabilidade da nossa missão
O texto da leitura inicia afirmando que “Depois destes acontecimentos, porém…”, indicando que tem ligação direta com o texto anterior. No capítulo 9 de Lucas, lemos que Jesus enviou os doze. Mas no capítulo 10, lemos que “depois disso” designou também outros. Isso deixa claro que a tarefa não estava restrita aos primeiros apóstolos, mas que Jesus dá-nos o privilégio de participar de sua missão. Assim como aqueles setenta foram enviados, todos nós temos a oportunidade e, mais do que isso, a responsabilidade de participar.
A percepção de Jesus é que a “seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”. Ele não afirma que os responsáveis pela seara são poucos, mas sim que os que se dispõem para o trabalho na seara ainda são poucos. Nosso maior problema não é saber que precisamos nos envolver, mas nos dispor a nos envolver. Jesus ordena, portanto, que oremos pelo envio de mais trabalhadores para a seara. Chama a atenção o fato de ser usado nesse versículo um verbo muito forte para a expressão “mande trabalhadores”. O verbo grego utilizado é ekballō, que significa “expelir, expulsar, lançar com força”. Talvez esse verbo seja usado propositalmente, tendo em vista a comodidade da maioria dos cristãos para o cumprimento da missão.
A missão é descrita em termos de: a) levar a paz a qualquer casa ou cidade aonde forem; b) curar os doentes, que pode dar a ideia de ajudar as pessoas em qualquer necessidade que tiverem; e, principalmente, c) anunciar que o reino de Deus está próximo.
As dificuldades da nossa missão
Em nenhum momento, Jesus afirma que a missão seria simples ou fácil. Embora seja gratificante e seja um privilégio para cada um de nós participar, enfrentaremos inúmeras dificuldades. De saída, Jesus afirma que está nos enviando “como cordeiros entre lobos”, mostrando tanto os perigos que nos cercam como a fragilidade daqueles que são enviados. Isso nos ensina que temos que cumprir a missão em total dependência de Deus. Não será por nossas forças, mas pelas forças que Deus nos dá. A mesma oração que deve mover os trabalhadores deve ser constante para que os trabalhadores também possam cumprir sua missão.
O fato de que em muitos lugares os enviados do Senhor não são recebidos também mostra as dificuldades no cumprimento da missão. Muitas vezes, as pessoas serão hostis ao anúncio do evangelho. O texto ainda fala de pessoas endemoninhadas, de serpentes e de escorpiões. No cumprimento da missão, nem tudo é um “mar de rosas”. Mas, com certeza, o mesmo Senhor que nos envia há de nos acompanhar e nos proteger.
A glória da nossa missão
Cumprir a missão que nos é delegada trará muitas alegrias, assim como aconteceu com aqueles setenta enviados por Jesus. O fato de sermos bem recebidos em muitos lugares (casas e cidades), tendo inclusive as necessidades supridas, também é um motivo de grande satisfação. O texto também fala de pessoas sendo libertas do maligno pela instrumentalidade dos enviados. Fala ainda da autoridade dada aos enviados até mesmo sobre o inimigo, que não lhes poderá causar dano.
Entretanto, a exortação final de Jesus nesse texto é que nos alegremos e nos gloriemos não por essas coisas terrenas que podem acontecer, por mais fantásticas que possam ser, mas sim pelo fato de nossos nomes estarem escritos nos céus. Participar como trabalhadores da seara do Senhor é um privilégio para aqueles que já experimentaram a boa-nova da salvação, podendo agora compartilhar com outros aquilo que já estão vivenciando, e a maior glória é justamente ter sido alvos da maravilhosa graça de Deus de que todos precisam.
4. Imagens para a prédica
Certo dia, ao romper da manhã, eu estava nas costas da Fenícia e observava um aeroplano levantar voo. A bordo daquela aeronave estava o evangelista que havia trazido às congregações daquelas terras bíblicas a mensagem viva do evangelho. Duas horas depois, estaria ele em outro país, onde igualmente entregaria a preciosa mensagem. Quando o aeroplano sumiu no horizonte sob o céu de cristal que cobria o Mediterrâneo, lembrei-me de Paulo e Barnabé, que, séculos atrás, partiram daquela mesma baía. Embarcaram para navegar por semanas e semanas e visavam chegar às terras pagãs, onde havia pontes para o cristianismo. Não tinham juntas de missões para sustentá-los nem levavam nos bolsos cheques de turismo. A falta dessas coisas tão convenientes não os impediu de empreender a viagem. No mundo moderno, muitas são as oportunidades, conveniências e estímulos para aqueles que querem ser testemunhas da graça salvadora de nosso Senhor. A necessidade maior é que sejamos testemunhas de Cristo (P. C. Krikorian – Líbano).
5. Subsídios litúrgicos
Podem ser utilizadas na introdução ou no decorrer do culto algumas frases de efeito:
• Nenhuma igreja tem o direito de enviar missionários. Só Deus envia missionários. A parte da igreja é simplesmente liberá-los tão logo o plano de Deus seja revelado (Derek Bigg).
• Evangelização é a tarefa perpétua de toda a igreja, não o passatempo peculiar de alguns de seus membros (E. Wilson Carlisle).
• A missão cristã é a única razão de estarmos na terra (Andrew Murray).
• Em último caso, empenhamo-nos hoje na evangelização não porque desejamos evangelizar, porque preferimos fazê-lo ou porque gostamos disso, mas porque nos foi ordenado que o fizéssemos (John R. W. Stott).
• Evangelização é tarefa sempre perigosa, embora não seja tão perigosa como a falta de evangelização (George Sweazey).
• Testemunhar não é algo que fazemos; é algo que somos (Anônimo).
• A tarefa do cristão é tornar o Senhor Jesus visível, inteligível e desejável (Len Jones).
• Uma testemunha em uma corte de justiça precisa apresentar provas; uma testemunha cristã precisa ser uma prova. Essa é a diferença entre a lei e a graça (Geoffrey R. King).
• O verdadeiro problema do cristianismo não é o ateísmo nem o ceticismo, mas o cristão que não dá testemunho e tenta contrabandear sua própria alma para o céu (James S. Stewart).
Bibliografia
MORRIS, Leon L. Lucas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996. 330 p.
RIENECKER, Fritz. Evangelho de Lucas . Curitiba: Esperança, 2005. 480 p.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).