Prédica: Lucas 10.21-24
Autor: Martin Norberto Dreher
Data Litúrgica: Domingo da Trindade
Data da Pregação: 05/06/1977
Proclamar Libertação: Volume II
Tema: Trindade
I – Sugestão de tradução
21. Naquela hora ele jubilou no Espírito (Santo) e disse: Louvo-te, Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste isso aos sábios e entendidos, e o revelaste a pequeninos.
Sim, Pai, porque tal foi a tua boa vontade.
22. Tudo me foi transmitido por meu Pai. E ninguém reconhece quem é o Filho, a não ser o Pai , e quem é o Pai , a não ser o Filho, e a quem o Filho o quer revelar.
23. E ele voltou-se, especialmente, a seus discípulos e disse: Bem-aventurados os olhos que vêem o que vedes. Pois eu vos digo:
24. Muitos profetas (e reis) quiseram ver o que vedes,
e não o viram, e ouvir o que ouvis, e não o ouviram.
II – Contexto
Setenta discípulos são enviados para preparar a vinda de Jesus. O envio destes setenta tem em mente o mundo inteiro, pois, segundo Gn 10, existem 70 povos (LXX=72). O envio dos setenta, relatado por Lucas, nos apresenta, em oposição a Mateus e a Marcos, uma nova dimensão da história de Jesus. (Mt 10,5: Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos.”) Lucas vê nos enviados de Jesus mensageiros que preparam a pregação ambulante de Jesus. Esta pregação engloba, após o final da atividade na Galiléia, grandes partes da Samaria e da Judéia além de regiões da Galiléia que ainda não foram atingidas. Lucas rompe, pois, com a concepção de que Jesus tenha sido enviado somente as cidades judaicas.
Jesus envia os setenta como um rei (kyrios). Os enviados são arautos que anunciam sua vinda. Sua função não se restringe apenas a conseguir hospedagem, mas ela está a serviço da vinda do próprio Jesus. Uma das funções dos arautos é a de anunciar a vinda do reino de Deus. Como, porém,estes arautos devem preparar a vinda de Jesus, nota-se aqui que para Lucas, em Jesus, o reino de Deus é chegado (Lc 10,9)!
Se em Jesus o reino de Deus é chegado, então esse fato significa o final do reinado de Satanás. Satanás perdeu seu poder sobre os homens (v.19). Jesus é o kyrios (v.17). Os discípulos, porém, que de Jesus receberam o poder de expulsar demônios (exorcismo) como um sinal de sua vinda, não devem basear sua alegria no fato de que venceram demônios, mas no fato de que são conhecidos por Deus. (Schlatter: Não é o diabo afugentado que os torna alegres, mas o Deus que está aí para eles = Lk. – Ev., p. 280). Os nomes dos discípulos estão escritos no rol celestial; Deus os conhece como amigos e como sua propriedade.
A oração jubilosa de agradecimento feita por Jesus (10,21) segue imediatamente após haver sido descoberto o motivo da alegria em os discípulos se saberem conhecidos e arrolados por Deus. É por isso que Jesus jubila.
III – O texto
Nosso texto é formado por três ditos isolados: uma oração de graças, um dito de revelação e um macarismo. Aparentemente estes ditos parecem estar interligados; seu estilo e conteúdo, porém, nos mostram o quanto um diverge do outro.
O primeiro dito, v. 21, tem a forma de um hino de graças como o conhecemos dos Salmos 33,2; 75,1 (BHK 75,2); 138, 1. O segundo dito, v. 22, assemelha-se ao estilo do discurso apocalíptico do helenismo e soa a um dito joanino. O terceiro dito, vv. 23-24, é um macarismo.
No que toca a sua origem, pode-se afirmar que estas palavras provêm da tradição palestina. Isso pode ser demonstrado no estilo e nas peculiaridades lingüísticas. Isso vale também para o segundo dito, pois sua semelhança com João deve ser explicada de tal maneira que João assumiu esta maneira de falar a respeito do Pai e do Filho da tradição da Palestina e não vice-versa (cf. Hahn, Hoheitstitel , p.321 e ss).
O sentido da ligação desses três ditos nos pode ser mostrado por uma exegese mais detalhada.
O motivo do agradecimento de Jesus é citado por duas orações que começam com a conjunção subordinativa causal porque (hóti). Jesus louva a Deus no estilo dos salmos de agradecimento. Ele louva a Deus tendo em vista o resultado de sua atividade:
porque ocultaste isso aos sábios e entendidos,
e o revelaste a pequeninos….
porque tal foi o teu agrado.
– A revelação de Deus, que possibilita salvação por intermédio de Jesus, não foi feita aos sábios, aos que a deveriam conhecer (é essa uma designação feita aos escribas) e aos entendidos, aos que possuem discernimento, a capacidade de discernir. Deus esconde o sentido do envio de Jesus a todos os que o querem calcular. Ele escapa ao homem entendido que se quer apossar dele. É este o seu juízo sobre o homem que quer sua auto-justificação e é este também o seu juízo sobre o homem que é seguro de si mesmo (Jo 9,39). Deus se manifesta em Jesus aos pequeninos que, qual crianças, esperam pelas dádivas do Pai. Os pequeninos são os pobres das bem-aventuranças, os Anawim. Eles não representam uma classe social. As classes dos pobres, dos pequeninos e dos entendidos e sábios surgem do confronto com a atividade de Jesus.
A segunda oração iniciada com a conjunção subordinativa causal (porque tal foi o teu agrado) caracteriza o acontecimento sucedido através da atividade de Jesus como expressão da eudokia de Deus, de seu plano salvífico. Qual é, pois, o sentido desse versículo? Ele louva o plano salvífico de Deus, isso é, a maneira pela qual Deus oferece e concede salvação através da atividade de Jesus. Deus agiu de acordo com as bem-aventuranças: Ele se revela a todos que, ante a atividade de Jesus, se tornam pobres, que crêem como o Centurião de Cafarnaum, e escapa aos que estão seguros de si mesmos e que ante a atividade de Jesus mais seguros de si ainda estão.
O tema revelação liga o 19 e o 29 ditos. Deus tudo transmitiu a Jesus, i.é, Jesus é o representante plenipotenciário de Deus. Ele age e fala, já nos dias terrenos, com poder (Lc 4,32). Ele se relaciona de uma maneira toda especial e única com Deus, o Pai. Ele é o Filho em relação a Deus, o Pai, de maneira absoluta (note-se a colocação do artigo!). A esse relacionamento corresponde também um conhecimento exclusivo e recíproco: Ninguém reconheceu quem é o Filho, a não ser o Pai, e quem é o Pai, a não ser o Filho, e a quem o Filho o quer revelar. O dito nos quer afirmar o poder de Jesus. Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai significa, portanto: Somente Deus foi quem escolheu a Jesus e lhe deu plenos poderes. Isso não foi feito por homens. Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho significa, por seu turno: Somente ele reconhece Deus e vive a partir da comunhão com ele. Por isso é que somente ele pode revelar Deus, i.é, possibilitar a outros comunhão com Deus (gignoskein, hebr. jada’, é um conceito existencial e não intelectual!).
Quem são essas pessoas a quem Jesus possibilita a comunhão com Deus? O v. 23 nos dá a resposta: os discípulos. Aquele que segue a Jesus, é revelado o Pai. Os discípulos são os que recebem a revelação do Pai através do Filho. Aos discípulos é permitido ver aquilo pelo que os anunciadores da promessa, os profetas ansiavam e pelo que os portadores da promessa, os reis, pediam.
Os discípulos vivem na época em que se inicia a concretização escatológica; eles são pequeninos, aos quais é dada a revelação. Neles é que ocorre a eleição dos pobres (Lc l,46ss; 2,4-7; 2,34s). A posição de Jesus frente a pecadores e justos, a pequeninos e entendidos significa a revolução escatológica.
IV – Para a meditação
O texto resume toda a atividade de Jesus a partir da relação de Jesus com o Pai. E por isso a prédica, que de modo algum vai poder reproduzir toda a riqueza do texto, deveria partir da afirmação do v. 22: Somente Jesus nos pode possibilitar revelação de Deus! A prédica poderia principiar com a frase: Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho, e a quem o Filho o quer revelar. Como podemos nós, hoje, compreender esta pretensão, ou melhor, esta oferta?
Durante muito tempo nós falamos a respeito de Deus como algo dado, normal. Mas, que queremos dizer quando dizemos Deus’. Nossa vida diária é a tentativa de vivermos sem Deus. Toda a correria desenfreada de nossa sociedade não aponta para isso? Através de organizações e através da pesquisa procuramos dominar o mundo. – Quando falamos em Deus, no Brasil, ainda pensamos no Pai de Jesus Cristo? Quando nossas comunidades falam em Deus, ainda pensam no Pai de Jesus Cristo? (Há 8 anos, quando Lindolfo Weingärtner escreveu seu livro Umbanda. Synkretistische Kulte in Brasilien – eine Herausforderung für die chrstliche Kirche. Erlangen, 1969, ele ainda podia afirmar que nossas comunidades quase não eram atingidas pelo movimento sincretista denominado por alguns de religião brasileira. Passados 8 anos, a realidade é outra. Em nossas comunidades começa-se a confundir Jesus Cristo com um Orixá.) Ou será que Deus nada mais é que o Supremo Arquiteto do Universo? Quanto mais o homem fala em Deus, menos o compreende. Quanto mais nós o precisamos colocar dentro de nossas normas, tanto mais ele foge aos nossos paradigmas.
Jesus agradece ao seu Deus pelo fato de que o ser pensante, chamado homem, não se pode adonar de Deus (v. 21). Ele também não o pode compreender na atividade de Jesus. O agradecimento de Jesus é uma palavra dura e chocante para todos os que procuram com o seu raciocínio perscrutar a vida. Isso, no entanto, corresponde exatamente à situação de Jesus: Os escribas (os sábios e entendidos) rejeitam-no, e tão somente piqueninos e pessoas carentes de recursos o seguem. Jesus não quer eliminar a mente e o raciocínio, mas espera que nós aprendamos a pensar de modo diferente (metanoein!). Deus só pode ser conhecido àmedida que é reconhecido (l Co 8,2s: Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como convem saber. Mas se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.)
Jesus faz com que a autojustificação sucumba, e liberta através da maneira como concede reconhecimento de Deus: Não dá informação e também não é um revolucionário que torne o mundo melhor. Ele não fala a respeito de Deus, Deus fala por seu intermédio. Jesus não é o homem ideal, nem fala ou age como se tal fosse. Ele fala e age a partir de sua relação pessoal (persona!) com Deus: Ele é o Filho, Deus é o Pai. A relação entre Deus e Jesus é expressa num conhecimento mútuo; conhecer no sentido vétero-testamentário (v. 22). Assim é que Jesus se apresenta na história: incompreendido e solitário-vigário plenipotenciário de Deus. Deus é aquele que fala e interpela por intermédio de Jesus. Em Jesus, Deus não se apresenta para fazer justiça e eliminar o mal por meio da força, mas para fazer ou estabelecer uma nova comunhão com o homem através da demonstração de amor. (Com seus milagres, por exemplo, Jesus nunca castigou, só auxiliou). Deus se nos apresenta em Jesus em fraqueza, i. é, na atividade de um homem. O orgulho que se baseia em poder, justiça e sabedoria é destruído. O contato com Deus somente encontra quem passa a fazer parte da comunhão de amor, da nova aliança, quem se torna pequenino, filho do Pai, pobre no sentido das bem-aventuranças (l Co l,18-25).
Jesus declarou seus discípulos bem-aventurados e isso de uma maneira que nos faz pasmar. Pois, olhando bem, haveremos de constatar que eles não eram grande coisa. E, mesmo que consentíssemos que eles levavam grande vantagem em relação aos judeus e aos gentios de então, pelo fato de o Evangelho de Jesus Cristo lhes ser algo novo, mesmo assim temos que ficar sem jeito caso caracterizarmos a nossa situação de discípulos do século XX com tais predicados: todas as esperanças e toda a fé do passado nada significam frente àquilo que vos foi revelado e dado de presente! Nós temos, isso sim, dificuldades para articular nossa fé e representá-la perante outros. As vestes dos discípulos primitivos, que foram chamados e declarados bem-aventurados por Jesus, parecem ser grandes demais para nós. Que fazer?
A resposta só pode consistir no convite de Jesus a que nos tornemos pequeninos, pobres no sentido da bem-aventurança. Quando encontramos a Deus, ou antes, somos encontrados por Ele, através de Jesus, então podemos ver, com os o1hos da fé, seu dedo agindo em nossa vida e nos acontecimentos do mundo, sua paciência, sua ira e, principalmente, seu amor. O que vemos não podemos provar a outros nem a nós. Apenas o compreenderemos quando a fé for concedido o privilégio de ver. Verdadeiramente tu és um Deus abscôndito (Almeida: misterioso) (Is 45,15). Deus é realmente o deus absconditus no sentido de Lutero, abscôndito sob o absurdo. Para a razão humana, está abscôndito sob o absurdo da cruz. Para o crente, está misericordiosamente abscôndito sob a cruz, para ser reconhecido pela cruz. Jesus, o pobre, leva a Deus todos os que diante de Deus se tornam pobres.
V – Bibliografia
– GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Berlin, 1971 .
– RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas, Göttingen, 1968.
– HAHN, Ferdinand. Christologische Hoheitstitel . Ihre Geschichte im frühen Christentum. 4a. ed. Göttingen , 1974.
– GOPPELT, Leonhard. Die verborgene Offenbarung. In: BREIT, Herbert/GOPPELT, Leonhard, eds. Calwer Predigthilfen. Stuttgart, 1968, vol. 7, p. 85ss.
Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia