Marta e Maria: direito de ser
Proclamar Libertação – Volume: 47
Prédica: Lucas 10.38-42
Leituras: Gênesis 18.1-10a e Colossenses 1.15-28
Autoria: Marcia Blasi, Marli Brun e Taiana Luisa Wisch
Data Litúrgica: 6º Domingo Após Pentecostes
Data da Pregação: 17/07/2022
1. Introdução
Neste domingo, a palavra bíblica convida-nos a entrar na casa de Marta. Talvez a casa fosse assim conhecida por Marta ser mais velha do que sua irmã Maria e seu irmão Lázaro. O texto de Lucas 10.38-42, que é exclusivo desse evangelho, enfatiza que a conversa é entre Jesus, Marta e Maria. Elas são personagens centrais também no Evangelho de João, na narrativa da ressurreição de Lázaro e da unção de Jesus.
A casa de Marta situa-se em Betânia. O povo vivia sob um governo dominado pelo imperialismo romano, que contava com o apoio dos saduceus. O contexto político-religioso era marcado pela opressão e exploração por parte dos fariseus e escribas. A presença de Jesus na casa de Marta e Maria indica o protagonismo de Marta e Maria no ministério de Jesus, rompendo com processos de discriminação e preconceito de gênero da época e com barreiras de acesso público e social para aquelas pessoas. Assinala que é tempo de proclamação de vida digna, justa e de vivência da comunhão.
Nos volumes de Proclamar Libertação VI, XVII, 23, 29, 34, 40 tem-se acesso a outros estudos exegéticos sobre esse texto.
2. Exegese
A relação entre Jesus, Marta, Maria e Lázaro é uma relação de amizade e amor (Jo 11.5), tanto é que Jesus chora pela morte de seu amigo e se comove com a dor das irmãs (Jo 11.33-38). A casa dela é um espaço de refúgio para Jesus. Lá ele encontra pessoas queridas, alimento, diálogo, comunhão. Na amizade entre Jesus e as pessoas que o seguiam transparece que
O movimento de Jesus não é um movimento que busca somente mudar a ordem das coisas, que se preocupa e angustia com a difícil situação econômica e política. Não passam o tempo todo trabalhando, ensinado e fazendo curas e milagres; também usam o tempo para desenvolver relações de afeto e ternura (TAMEZ, 2004, p. 31).
A promessa do reino de Deus incluía a “proclamação e práxis de uma ordem de valores radicalmente diferente e de uma mudança radical das condições sociais” (STEGEMANN, 2012, p. 442), além de uma esperança de um espaço-tempo em que as relações serão justas, amorosas e fartas. Lutero afirma que relações saudáveis e amorosas são necessidade e esperança do povo de Deus, e que “o pão nosso de cada dia” não é apenas a mistura de farinha e fermento, mas, em consonância com a passagem de Mateus 4.4, é “comida, bebida, vestes, calçado, casa, campos, gado, dinheiro, filhos e filhas piedosas, empregados e empregadas boas, bom governo, bom tempo, saúde, paz, honra, amizades leais, vizinhos fiéis” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 1997, p. 374).
De acordo com João 11 e 12, Lázaro, Marta e Maria moravam em um vilarejo chamado Betânia, tornando, portanto, tal local o cenário da narrativa. Para uns, a forma grega de Betânia deriva do hebraico Bethany (Beth + any), significando “casa do oprimido”, “casa do pobre”. Segundo o dicionário hebraico, any significa oprimido, humilhado, miserável, humilde, pobre. Para outros, Betânia deriva de Beth Ananyah, isto é, “casa de Ananias”. E Ananias significa “Javé compadeceu-se”, “Javé teve misericórdia”. Betânia, portanto, é a “casa de compaixão, da misericórdia de Deus” (TEIXEIRA; GASS, 2019, p. 7).
Jesus entrou na casa dela e foi recebido pelas irmãs, quando o costume de recepcionar e acolher as pessoas visitantes era do dono da casa, logo, o homem. Nesse caso, a casa era das irmãs e já havia sido visitada outrora por Jesus, que não se detinha aos costumes patriarcais da sociedade judaica e greco-romana, além de demonstrar o reconhecimento e respeito que elas tinham enquanto seguidoras de Jesus.
A narrativa demonstra de forma explícita que Jesus ensinava as mulheres e prezava por isso, inclusive incentivando que as mulheres assumissem funções diferentes daquelas tradicionais, não como uma obrigação, mas como uma autorrealização.
Alguns dos aspectos importantes do reino de Jesus: aprendizado, libertação e amizade, são vivenciados nessa narrativa. O tom carinhoso de Jesus ao pronunciar “Marta, Marta”, seguido por um conselho, revela que ele a convida para aproveitar aquele momento ímpar. Jesus não condena Marta por fazer muitas coisas, nem diz que está errada, mas a convida para fazer aquilo que a liberte e a realize enquanto mulher discípula e amiga, que se apodere de cada espaço possível de aprendizado, comunhão e libertação que normalmente eram tomados das mulheres (TAMEZ, 2004, p. 29).
Jesus pronuncia uma fala de acolhimento e defesa a respeito das ações de Maria que, ainda que pareça simples, demonstra interesses reais e práticos da boa nova de Deus que incluem a possibilidade de modificar as estruturas sociais, políticas e religiosas da época. Em um período grego e judaico em que não se admitia uma mulher como discípula, “Jesus faz algo diferente dos outros mestres ao acolher Maria a seus pés, como discípula” (TAMEZ, 2004, p. 28).
Marta é retratada fazendo muitas coisas. O termo grego que aparece no texto é “diaconia”. Diaconia era a tarefa de servir à mesa, geralmente relegada a pessoas escravas e mulheres, dificilmente lembrada como um ministério. O termo “serviço” é uma das traduções para o substantivo grego diakonia. Esse substantivo, em diversas narrativas pastorais e públicas, é traduzido como ministério, mas é comum que em narrativas com protagonismo de mulheres, o substantivo sofra uma alteração na magnitude do seu significado, sendo diminuído ao serviço doméstico (Lc 4.38-39).
A descrição de Marta demonstra que ela era a líder da casa e muito organizada. Receber bem uma pessoa hóspede era essencial. Maria quer aprender e tinha atitudes de discípula, ainda que isso não fosse permitido e reconhecido para mulheres. A teóloga Elsa Tamez faz um paralelo entre a ação de Maria e a ação narrada em Atos 22.3, comparando com as atitudes de Paulo que também aprendeu aos pés de seu mestre Gamaliel (TAMEZ, 2004, p. 28).
Jesus reage à fala de Marta. Ele a convida para descansar, sentar e movimentar-se na busca por novas experiências, conhecimentos e oportunidades para colocar seus dons a serviço de Deus (TAMEZ, 2004, p. 28-29).
3. Meditação
O texto bíblico é breve e descreve uma ação comum: Jesus está em Betânia e decide visitar suas amigas Marta e Maria. Maria senta aos pés de Jesus e Marta está ocupada. Ao ser questionado por Marta sobre a atitude de Maria, ele apenas responde: Marta, Marta! Te preocupas e te angustias com muito. Mas uma só é necessária: E Maria a boa parte escolheu, a qual não será tirada dela.
É importante destacar que Marta não condena a ação de Maria, mas ela precisa de ajuda para talvez também ter a chance de se sentar ao pés dele. Por muito tempo, esse texto bíblico criou e demarcou dois opostos na vida da pessoa cristã: há as pessoas que dedicam seu tempo ao serviço e as que dedicam seu tempo à palavra. Uma coisa ou outra: serviço e palavra, razão e emoção, superior e inferior, corpo e alma, e muitas outras palavras que foram definidas como opostas, mas nem sempre tem que ser assim.
No contexto de Marta e Maria, não era permitido que as mulheres estudassem, falassem em público, tivessem posses ou fossem discípulas. Elas tinham poucas opções de “ser”. Atualmente, as mulheres conquistaram muitos espaços, direitos e deveres, podem ser quem e o que quiserem: médicas, astronautas, juízas. Mas, na prática, ainda é nítido que nem todas as mulheres possuem meios para alcançar esses espaços. Muitas mulheres ainda tentam se encaixar em um “ser” por causa de uma culpa pessoal, e nós ainda criamos impedimentos para que elas possam ser quem são por meio de julgamentos, críticas e preconceitos.
Marta é ativa e organizadora, mas, em João 11.21-28, torna-se exemplo de fé ao parar para ouvir a palavra de Jesus e anunciar sua confissão com fé e segurança, pois ela ouvia e havia aprendido sobre a boa nova de Deus.
Quando olhamos além desses quatro versículos, percebemos que nenhuma, nem Marta nem Maria, era somente Marta ou somente Maria. Jesus foi bom e misericordioso com todas as pessoas: conviveu com elas, ensinou e as ouviu, comungou com elas. E não poderia ser diferente com duas amigas tão próximas. Insisto em pensar que Jesus não estava repreendendo uma ou outra ou falando que as tarefas que ela exercia não eram importantes. Gosto de pensar que o que Jesus queria era aproveitar a oportunidade com suas amigas e queria que elas aproveitassem para aprender o máximo possível, dialogar sobre ideias, desenvolver capacidades, sugerir, discipular e, principalmente, ser.
A ação de Jesus é libertadora. Ele convida Marta para que ela não permaneça fazendo aquilo que era esperado dela, que ela supere as críticas a respeito do que era correto ou não para uma mulher. O convite de Jesus, em tom amigável, quase que como um incentivo, convida Marta a quebrar os estereótipos da sociedade patriarcal e beneficiar-se da boa nova de Deus, que garante vida em abundância para todas as pessoas, independente de sua idade, etnia, gênero, classe social. O convite de Jesus para nós é o mesmo: que possamos ser aquilo que nascemos para ser, que somos chamadas a ser.
4. Imagens para a prédica
A pandemia levou muitas mulheres à exaustão emocional, física e espiritual. Foram elas que ficaram nos postos de cuidado em hospitais, lares de longa permanência e em casa. Muitas passaram a trabalhar de casa, trabalhar nos cuidados da casa, acompanhar a educação das crianças e cuidar de crianças pequenas. Muitos homens também assumiram essa tarefa, mas nem todos. Os aprendizados que homens recebem ao longo da vida nos serviços de cuidado são bastante limitados. Além disso, há uma carga social muito forte de considerar um homem que assume suas responsabilidades em casa como fracasso. Da mesma forma, ele pode tornar-se um herói por fazer somente o que é necessário para manter os cuidados com a casa e família.
Convide a comunidade a refletir como é ser Marta, como é ser Maria. Como é o sentimento quando você está exausta, quer acolher bem a visita e fica alheia de tudo, sozinha na preparação da comida e das outras funções? Como você se sente quando não percebe que a outra pessoa precisa de auxílio?
Concordamos que as mulheres têm direito ao estudo, ao aprendizado, a “ser” uma pessoa respeitada. Mas a realidade também alerta que há necessidades que não podem esperar. Imagino que Marta não estava só praticando diakonia com Jesus, mas com outras pessoas que dela dependiam.
Tanto o discipulado como a diakonia são importantes. Procure não criar competição entre as duas mulheres nem tente definir o que Jesus quis dizer. Deixe essa questão para discernimento comunitário, sem criar culpas ou apontar dedos. Ou talvez você possa perguntar: por que as três pessoas não trabalharam e aprenderam juntas? Como pessoas cristãs, é hora de aprender e servir com justiça e igualdade, testemunhando que cada pessoa tem o direito de ser aquilo para o que é chamada por Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Sugestão de cantos: Diaconia (LCI 565); Canção do Cuidado (LCI 567).
Na oração de intercessão:
– orar pela transformação de relacionamentos abusivos;
– lembrar as pessoas sobrecarregadas, esgotadas física, emocional e espiritualmente;
– lembrar as pessoas que querem aprender e estudar, mas são impedidas por questões financeiras ou por culturas/costumes;
– orar por comida na mesa, saúde, consolo e paz entre as pessoas e a criação.
Bênção: Que a bênção de Deus, que é pai e mãe, esteja sobre ti, te acompanhando em tua caminhada. Que a bênção do Filho, Jesus Cristo, te encoraje a vencer o julgamento, a culpa e o medo de ser quem tu queres ser. Que a bênção do Espírito Santo te dê ânimo e te movimente a lutar pelo direito de ser quem tu és e ser respeitado e respeitada por isso. Assim te abençoe o Deus trino.
Bibliografia
LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997.
STEGEMANN, Wolfgang. Jesus e seu tempo. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2012.
TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo. São Leopoldo: Sinodal; Quito: CLAI, 2004.
TEIXEIRA, Sheila Aparecida Maia; GASS, Ildo Bohn. Betânia, casa do pobre. São Leopoldo: CEBI, 2019.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).