Prédica: Lucas 12.13-21
Leituras: Eclesiastes 1.2; 2.18-26 e Colossenses 3.1-5 (6-8) 9-11
Autor: Augusto Ernesto Kunert
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/08/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
1. Exegese
V. 13: Alguém se dirige a Jesus com o pedido de que ele seja o juiz no seu problema de herança. O solicitante tem a Jesus por Mestre. E o Mestre, juiz e teólogo ao mesmo tempo, segundo a tradição em Israel, é a pessoa competente para decidir os impasses em casos de herança. A desavença aconteceu entre irmãos. A partilha não foi aceita por um dos herdeiros.
V. 14: Jesus não atende o pedido. Com a pergunta: Quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?, Jesus dá a entender que a sua tarefa é outra. Não cabe a ele, em sua missão, envolver-se na divisão de patrimônio familiar. A atitude de Jesus não significa rejeição da riqueza. Significa, isto sim, a necessidade da aceitação de Jesus e da sua missão.
V. 15: Lucas relata a missão de Jesus com o anúncio dos anjos: Hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor (Lc 2.11). Jesus veio para buscar e salvar o que estava condenado e perdido. Ele deu a sua vida em resgate por muitos. Trouxe a libertação da pessoa e sua reconciliação com Deus. E nesta missão, transfo¬madora e renovadora, ele assume posição frente aos problemas pessoais, individuais e coletivos. Ataca os males que ferem a pessoa e prejudicam uma sociedade toda. Sua missão, portanto, não consiste na partilha de bens. Ele veio para libertar da opressão -no caso do texto, do domínio, da avareza – e para reconduzir a pessoa à comunhão com Deus e com os homens. Ao negar-se à solicitação, Jesus chama a atenção para o perigo dominador da riqueza. Quem a colocar no pedestal como segurança de vida escolheu um ídolo em substituição ao Deus do 1° mandamento.
Os valores da vida são outros. A vida de uma pessoa não consiste na abundância dos bens que ela possui. Deus é o Senhor da vida e não a riqueza. A vida é dádiva do Criador. A avareza ilude a pessoa. Fá-la sentir-se dona da vida, mas rouba-lhe o conhecimento da verdade sobre a vida.
Vv. 16-19: O homem rico tinha posses antes da colheita abundante. Isso mostra que ele era trabalhador, que poupava e que sabia administrar a sua fazenda.
O termo avareza não aparece nos w. 16-19. Mas o assunto está infiltrado aí, promove e orienta o monólogo. A conversa consigo mesmo gira em torno de bens materiais e se esvazia na preocupação com o próprio bem-estar. O texto diz: arrazoava consigo mesmo. No seu ponto de vista sobre o mundo e a vida não há a dimensão da segunda e da terceira pessoas. O relacionamento com Deus e com a sociedade a que pertence e na qual vive não ocupa espaço em suas considerações. Ele sente-se senhor e centro do mundo. Tudo gira em torno do próprio ego. Tens em depósito muitos bens, para muitos anos.
V. 20: O homem rico, em sua miopia, fechou-se em si mesmo e tornou-se pobre em valores espirituais. Com os armazéns abarrotados de valores materiais, fez-se um saco vazio em sua vida espiritual. Seguro de si e convicto de possuir a segurança para a sua vida, sofreu o veredito: louco. Sofreu a sentença de morte, também do seu corpo físico. Na mesma noite o Criador, Senhor e doador da vida – marginalizado e empurrado para escanteio – buscou o que lhe pertencia. O monólogo foi interrompido pela morte. Sua segurança foi como homem rico à sepultura, ficando de mãos vazias diante de Deus.
V. 21: O v. 21 contém o escopo do texto: ser rico para com Deus. Jesus dá a dimensão correia para a vida. O seu sentido e sua perspectiva estão no ser rico para com Deus. Nisso consiste a verdadeira riqueza. A riqueza para com Deus liberta para o uso desprendido dos bens, supera a ganância, domina o embalo de uma falsa segurança e liberta para uma vida responsável na sociedade.
2. Meditação
1) O Evangelho de Lucas se envolve com o problema da riqueza. Menciono dois exemplos: o jovem rico (18,18-22) prende sua vida à riqueza, e Zaqueu, o publicano (19,1-10), supera a avareza com a presença de Jesus Cristo. Nos dois exemplos a avareza e a riqueza são tema em debate. Ambas marcam presença na perícope para o 11 ° Domingo após Pentecostes. Elas não são, porém, o centro do texto. Portanto, não as recomendo como tema da pregação. O jovem rico prefere sua riqueza. Zaqueu, frente a frente com Jesus, faz escolha diferente. O homem rico sequer considera uma opção. A sua visão de mundo fica concentrada todo o tempo na sua pessoa.
2) O texto não é uma cruzada legalista contra a riqueza. Antes de tomar alguma atitude nesse particular, o pregador deve examinar-se a si mesmo à luz do evangelho. É perigoso pronunciar palavras vazias e perder a credibilidade quando ação e palavras entram em choque e se desmentem.
Lucas conhece a relação sadia de Jesus com a propriedade. Isso se evidencia quando narra, no cap. 15, as parábolas da ovelha perdida e do dracma perdido. A riqueza e a propriedade em si não são consideradas elementos desprezíveis. Elas por si mesmas não são o diabo. O problema está na índole, na cabeça e no sentimento da pessoa. O homem pode transformar tanto a riqueza como a propriedade em poderes diabólicos; fazer deles ídolos dominadores a ocupar todo o espaço em uma vida humana. O problema está naquilo que o homem vem a fazer da e com a propriedade e sua riqueza. Pois aquilo que enche o coração determina o posicionamento e as ações dos indivíduos.
3) Sugiro ao pregador ter muito cuidado com algum canto de louvor à riqueza e à propriedade. Lucas considera de bom alvitre não possuir mais do que é necessário para uma vida decente. O muito procura ter mais e facilmente induz a querer demais. Isso não contesta o desejo sadio por um emprego com salário que permita uma vida regrada. Todos nós queremos ter a nossa casa. Industriais e comerciantes querem progredir com as suas firmas. Homens e mulheres responsáveis planejam e desenvolvem seus setores de trabalho e, sendo o caso, renovam os seus parques industriais. Estaria aí o problema do texto? Ele se coloca contra a iniciativa, o planejamento e o progresso? Veja lá, amigo, o que você vai fazer! Esse não é, seguramente, o caminho para uma pregação responsável. Caso caia nessa tentação, você estará embolando o meio de campo e apoiando, contra a vontade do texto, os retrógrados, os acomodados e preguiçosos. Então, sim, você armou uma grande confusão e, o que é pior, abafou a mensagem do texto.
4) A vida não vem e não está nas posses da pessoa. O texto não divorcia a vida da propriedade e das condições necessárias para uma existência decente. Ele não contesta a alimentação e o tratamento de saúde. Mas deixa claro que a vida não procede e não nasce desses elementos. Ela vem de Deus. Deus é a fonte da vida. Ele é o Senhor da vida. Ele é o dono da vida. E perante Deus somos responsáveis pela vida recebida de suas mãos.
O texto, por outro lado, também não glorifica a pobreza como novo caminho ou meio de segurança de vida. Ele levanta o dedo contra a avareza, contra a inversão da verdade sobre a vida. Acusa a criatura que se coloca no lugar do Criador e troca Deus por bens materiais e interesses pessoais. O texto contesta a quem entesoura para si mesmo e não é rico em Deus.
Nos itens 1-4 tratamos de três aspectos:
a) A riqueza não é segurança de vida.
b) A pobreza também não é um novo caminho para a segurança de vida.
c) A índole, cabeça e coração da pessoa são responsáveis pelo seu posicionamento e suas ações.
A opção pela riqueza termina no afastamento de Deus. O mesmo risco corre quem escolhe a pobreza como modelo de segurança de vida. Onde Deus é preterido e substituído por outros valores, sejam eles bens materiais, conceitos filosóficos ou de orientação moral, a pessoa empobrece espiritualmente, cai no monólogo egoísta e deixa de ser rica em Deus.
A pessoa do texto foi uma boa planejadora e uma economista responsável e competente. Ela merece nossa admiração e aplauso. Não devemos procurar aí o problema. A derrota e o veredito de louco lhe foram conferidos por causa de seu afastamento de Deus, por causa da negação de Deus e da troca de valores ultimada pela avareza.
5) Não devemos nivelar as diferenças sociais entre ricos e pobres partindo do ponto de vista de que Deus é o Senhor da vida, Senhor do tempo e Senhor de todas as coisas. As diferenças sociais são uma dura, vergonhosa e triste realidade na história da humanidade. Sua fonte deve ser procurada no pecado das pessoas. Também não há como negar que a pessoa com recursos financeiros tem melhores condições e possibilidades de vida. Ela pode alimentar-se, agasalhar-se e tratar-se melhor. O pobre não tem essas vantagens. Ele morre por abandono numa sociedade em que o sistema público de saúde está falido. A pessoa com recursos mora numa casa saudável.
Os miseráveis moram em casebres, sem água tratada e sem esgoto. Eles têm os seus barracos demolidos por ordem judicial porque invadiram, na falta de outra alternativa, algum terreno de propriedade pública ou particular. É inegável que os marginalizados, vivendo em condições precárias, não podem usufruir dos benefícios de um sistema de saúde do tipo de um Golden Cross ou de uma Unimed. Eles dependem do Sistema Unificado de Saúde (SUS) que, de momento, está agonizante na UTI do Ministério da Saúde.
6) O afastamento de Deus gera pobreza espiritual e apaga a sensibilidade para os problemas sociais. Na pessoa concentrada em si mesma cresce o egoísmo e se atrofia a solidariedade. Então, sim, como ocorre hoje no Brasil, as portas se encontram escancaradas para a invasão da fome e da doença, servindo como foice assustadora da morte a ceifar ricamente entre os pobres.
A duração da vida não se deixa armazenar em silos. Não a conseguimos investir em fundos rentáveis para trazer dividendos no futuro com mais anos de duração. Ela também não se deixa guardar no computador, para uso em momento oportuno. Não esqueçamos, contudo, que a duração da vida pode depender de bens materiais, de boa alimentação ou fome, de bom tratamento médico-hospitalar ou morte na fila de espera do SUS.
7) Insisto nos seguintes itens:
a) Nem a riqueza nem a pobreza são meios para a segurança de vida. Porém, alimentação, casa, lar e saúde são indispensáveis para a vida.
b) A avareza amordaça a vida espiritual, cega a pessoa e encobre a visão para os problemas sociais. Ela bloqueia nossa caminhada em direção ao irmão.
c) Deus é o Senhor da vida e não a pessoa humana.
d) A vida rica para com Deus gera a transformação de uma mentalidade medíocre e egoísta, e leva ao agradecimento pela vida recebida. Reconhecemos no ato de agradecer o nosso lugar de criatura. O agradecimento oportuniza a abertura para a solidariedade; sabe frear a avareza; ensina o respeito; compromete com a busca de maior justiça social; dá abertura à busca de soluções para as carências de uma sociedade em crise.
8) O saber e o aceitar que Deus é o Criador, o doador e Senhor da vida, e que nenhum bem material é garantia de vida, permitem uma vida rica em Deus. E a vida rica em Deus tem as suas consequências no relacionamento da pessoa com os bens materiais e no seu convívio com a sociedade. Você não poderá transformar uma sociedade toda, superar a corrupção entre os políticos, as autoridades e os cidadãos, vencer a sonegação de impostos, impedir a falência da saúde pública, nem evitar a violência nas ruas ou impedir a manipulação da Previdência. Mas, com o testemunho de uma vida ligada e orientada por Deus você será sentinela, voz da consciência evangélica e, saindo do fechamento egoísta e míope, você estará aberto à vida em comunhão. Você vai testemunhar que a pessoa humana não vive só de pão; que a vida é da vontade de Deus; que Deus é o início e o fim da vida; que Deus determina o tempo de duração da vida; que a pessoa não vive só das calorias que consome, e, sim, porque Deus a chamou e deu-lhe a vida. Você vai testemunhar que Deus integra a pessoa na sociedade e lhe dá responsabilidade. A vida rica em Deus sabe de onde veio e para onde vai; sabe de quem depende e para quem vive.
3. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados: Nós, pecadores, inclinamo-nos diante da tua santidade, Senhor. A tua palavra nos conforta e anima. Nela tu dizes que nos amas e que nos olhas com misericórdia; que estás presente em nossas vidas no poder do Espírito Santo e que nos queres renovar para uma vida rica em ti. Pedimos-te, Senhor, que tenhas piedade de nós; que perdoes os nossos pecados e nos aceites em tua misericórdia para o serviço em tua Igreja e na sociedade como testemunhas da vida liberta pela tua graça. Tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta: Ó Deus, Criador e Senhor do mundo, tu sabes das prisões em que vivemos. Esquecemos a pobreza que é uma vida sem ti e buscamos segurança de vida no poder e nos bens materiais. Faze com que o teu Espírito Santo entre em nossa vida, a transforme e renove para libertar da prisão todo aquele que estiver limitado em si mesmo. A ti, Senhor, que nos chamaste à luz e manténs a vida, sejam louvor e glória eternamente. Amém.
Oração final: És a fonte da vida e da salvação. Agradecemos pela misericórdia que tens para conosco. Agradecemos pela vida, pelo pão de cada dia e pela saúde. Na solidariedade com os irmãos e com as irmãs em sofrimento, doentes e pobres, pedimos-te: faze com que as autoridades responsáveis pelo bem-estar social e pela saúde do nosso povo cumpram com suas obrigações, sejam honestas em suas ações, e que o sofrimento seja aliviado. Abençoa as famílias para uma vida em harmonia e paz. Acompanha-nos nas lides do dia-a-dia; protege-nos da violência; acorda nossa consciência para o uso responsável do automóvel. Senhor, sê conosco, com a tua Igreja, com a tua cidade e com o teu povo. Amém.
4. Bibliografia
EICHHOLTZ, Georg. Herr, tue meine Lippen auf. Wuppertal/Barmen : Emil Müller, 1959. vol. 1. Göttinger Predigtmeditationen. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, vol. 8, ago. 1979.
RENGSTORF, Karl H. Das Evangelium des Lukas. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1949. (Das Neue Testament Deutsch, 3).
VOIGT, Gottfried. Der schmale Weg : Reihe 1. Berlin : Evangelische Verlagsanstalt.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia