Valemos quanto somos e não quanto temos
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Lucas 12.13-21
Leituras: Salmo 43 e Colossenses 3.1-11
Autoria: Claiton André Kunz
Data Litúrgica: 8º Domingo Após Pentecostes
Data da Pregação: 31/07/2022
1. Introdução
A relação do ser humano com o dinheiro, bens ou riquezas sempre foi e continua sendo muito complicada. Infelizmente, existe um conceito muito difundido, embora totalmente errôneo, de pensar que somos o que temos! Esse conceito é diariamente bombardeado para nossas mentes e tem uma grande influência sobre a forma como lidamos com as pessoas, as coisas, conosco mesmos e inclusive com Deus.
A Bíblia apresenta muitas exortações a esse respeito. Muito mais do imaginamos. Na verdade, a Bíblia fala mais em dinheiro do que sobre céu e inferno e sobre evangelismo. Isso mostra que Deus está muito mais interessado nessa área de nossas vidas do que nós imaginamos e quer nos orientar a viver melhor também nesse assunto.
A passagem principal para essa mensagem apresenta um episódio no qual esse assunto da relação do ser humano com as riquezas foi o tema principal. O encontro de certa pessoa com Jesus nos ajuda a entender como geralmente as pessoas pensam sobre esse assunto e como Jesus quer que nós pensemos a partir da perspectiva do reino de Deus.
2. Exegese
Um dos ouvintes de Jesus estava tendo problemas com seu irmão acerca da divisão apropriada de uma herança. Não pede que Jesus decida entre os méritos de suas reivindicações: pede uma decisão a seu próprio favor. Parece que está agindo unilateralmente. Nada indica que o irmão tinha concordado em deixar Jesus decidir a causa. O homem simplesmente conclamou Jesus para intervir em prol dele.
Esse requerente não está pedindo arbitrariamente, mas ordenando ao juiz que execute seus desejos. Ele já decidiu o que quer e tenta usar Jesus. Uma coisa é dizer: “Rabi, meu irmão e eu estamos discutindo a respeito da nossa herança; o senhor pode ser nosso mediador?”. Ordenar a Jesus que implemente o seu plano é outra coisa. Não é de se admirar que a resposta de Jesus tenha um tom de aspereza.
Da forma como esse homem abordou Jesus, ele o está tomando por um rabino típico, pois os rabinos costumeiramente pronunciavam decisões sobre pontos disputados da lei. Jesus, no entanto, recusou-se a ter qualquer coisa a ver com isso. Sua forma de trato, Homem, está longe de ser cordial. Ele viera trazer as pessoas a Deus e não trazer bens materiais às pessoas. Jesus preocupa-se, então, com as atitudes das pessoas envolvidas e não com quem recebeu o quê.
Jesus profere, então, a parábola de um fazendeiro muito rico que teve um verão excepcional, porque, por ocasião da ceifa, tivera uma colheita abundante. O fazendeiro arrazoava consigo mesmo sobre o que fazer com a colheita e onde guardá-la. O grego usa o termo dieogizeto, em tempo perfeito, voz média, expressando seus contínuos pensamentos acerca da sua perplexidade. Ele resolveu: Farei isto: Destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. Teofilácio observa a respeito da expressão “meu produto e meus bens”: “Suas riquezas foram obtidas honestamente. Com isso, o exemplo se ajusta magnificamente à presente ocasião. O mundo não veria nada para condenar em sua atitude”.
Falando consigo mesmo e usando os pronomes eu e meu repetidamente, ele revela seu extremo egoísmo. Manson afirma que é verdade que um mínimo de bens materiais é necessário para a vida; mas não é verdade que a maior abundância de bens significa maior abundância de vida. Na verdade, ele não pensava em Deus nem no próximo. Ignorava o resumo da lei de Deus de amar a Deus e ao próximo. Deus e o próximo não existiam para ele. Pensava somente em si mesmo. Também não se sentia seguro dependendo de Deus.
Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te (v. 19). Note-se a diferença entre os tempos verbais: anapauou (segue descansando – presente), fage (come de uma vez – aoristo), pie (bebe tua medida – aoristo) e eufrainou (segue divertindo-te – presente). Essas expressões mostram que esse homem deixou de agradecer a Deus pelas riquezas recebidas e que foi negligente no cuidado ao próximo necessitado. Sem Deus e sem o próximo, sua existência estava centrada nele mesmo. Só, sem relação com Deus, queria garantir seu futuro. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? (v. 20). A palavra afrōn significa “sem razão, insensato, estulto, que expressa uma disposição mental de não levar nada em conta nem considerar”. O verbo grego apaitousin (te será requerida) é um termo comumente usado para o retorno de um empréstimo. Sua alma lhe fora dada por empréstimo e agora o proprietário (Deus) quer que o empréstimo seja devolvido.
No começo da parábola, nota-se que seus bens eram uma dádiva. Agora, torna-se claro que a sua vida também não lhe pertencia. Todavia, o aguilhão das palavras usadas encontra-se, não no anúncio de que esse homem precisa morrer, mas na pergunta que se segue e que mostra claramente a verdadeira pobreza da sua vida. Ele está só e sem amigos em meio à sua riqueza.
A vida de um ser humano é uma coisa incerta, na melhor das hipóteses, e ninguém tem a certeza de que viverá o número de anos que gostaria. A coisa realmente tola era a confiança fácil daquele rico de que o futuro estava no controle dele. Jesus completa esse ensino com um contraste entre armazenar tesouros para si mesmo e ser rico para com Deus. É este último aspecto que importa. As pessoas são tolas se aceitam uma condição inferior a essa.
Jesus não disse que o ser humano deveria se privar de riquezas terrenas, prazer e bem-estar, mas deve compreender que Deus é dono de sua grande criação, e que colocou o ser humano como despenseiro do mundo que criou. Como despenseiro, o ser humano deve periodicamente prestar contas a Deus. Quando deixa de fazê-lo e age como se fosse proprietário de seus bens, transgride a lei de Deus e condena-se como louco. Sempre que vive para si mesmo, ele está espiritualmente morto.
É preciso retornar à pergunta que gerou essa resposta em forma de parábola. A voz da multidão clama por justiça na divisão da herança. A resposta de Jesus é em termos de que seja dada uma nova perspectiva ao problema propriamente dito. Ele não investiga quem está certo e quem está errado, e depois coloca o seu peso do lado da justiça (embora essa ação possa ser correta em muitas circunstâncias). Pelo contrário, ele introduz uma nova perspectiva, de fato, uma perspectiva teológica, mediante a qual considera o problema e depois deixa sem resposta o problema propriamente dito. Aqui o clamor egoísta pedindo justiça é entendido por Jesus como sintoma de uma enfermidade. Ele se recusa a respondê-lo, mas, pelo contrário, dedica-se à cura da doença que produzira o pedido. Agora o interlocutor e a multidão tinham de dar uma resposta.
3. Meditação
A relação do ser humano com as riquezas geralmente é bastante complicada. Em nenhum lugar nas Escrituras diz-se que os bens que Deus colocou em nossas mãos seja o problema, e sim que uma postura inadequada em relação aos mesmos é que deturpa a condição humana.
a) O valor que damos aos nossos bens
No texto em questão, a postura daquela pessoa que saiu do meio da multidão praticamente ordenando a Jesus que avalize sua decisão em relação à herança mostra qual era o valor que dava às riquezas em detrimento do relacionamento com seu irmão.
Eclesiastes 5.10 revela que quem ama o dinheiro, jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda; também isto é vaidade. Na mesma direção, Paulo afirma que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos (1Tm 6.10).
Não raras vezes a postura de certas pessoas para com o seu “direito” em relação a heranças ou a certos recursos acaba desencadeando rupturas familiares e relacionamentos quebrados entre conhecidos ou amigos, que por vezes duram anos e anos. A pergunta que deveríamos nos fazer é: será que vale a pena valorizarmos mais as riquezas do que nossos familiares e amigos?
b) O conceito de Jesus sobre os bens
Jesus é categórico na sua afirmação: Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra todo tipo de ganância: a vida de um ser humano não consiste na quantidade dos seus bens (v. 15). Embora necessitemos de bens e de recursos para viver, eles não são a essência da vida humana, e muito menos a quantidade de riquezas determina a qualidade da nossa vida.
Na parábola, é interessante observar o contraste expressivo do monólogo do rico avarento, com o conceito divino sobre o assunto:
– O rico julgava-se muito precavido, previdente e prudente, no entanto foi julgado por Deus como um louco.
– O rico pensava ter em depósito muitos bens, para muitos anos, mas, de acordo com a sentença divina, “esta noite”, apenas, e os seus bens para que seriam?
– O rico arrogante julgava ter à sua disposição a sua alma, direi à minha alma, porém a expressão esta noite te pedirão trata de uma restituição, para a qual o rico não está preparado.
c) O valor de nossa vida
Muitas vezes, fazemos grandes e belos planos para nossa vida e geralmente esses planos estão intimamente ligados à questão das riquezas. Mas não podemos nos esquecer de que Tiago, em sua epístola, dirige-se àquelas pessoas que dizem: Hoje ou amanhã iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano e negociaremos e teremos lucros. A esses ele afirma: Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa (Tg 4.13-14). De forma alguma Tiago afirma que não deveríamos fazer planos. Pelo contrário, ele nos ensina que, ao fazermos planos, precisamos compreender que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada daquilo que planejamos precisam ser o que Deus quer para nossas vidas: “Se o Senhor quiser…”.
A conclusão da parábola relatada por Lucas é igualmente contundente, quando Jesus faz uma pergunta muito direta: Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? (Lc 12.20). De nada adianta juntarmos riquezas neste mundo, cumprirmos todos os nossos
planos, negociarmos e termos lucros se, ao termos que prestar contas ao nosso Deus, não tivermos nada a oferecer. A conclusão de Jesus é: Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus (v. 21).
4. Imagens para a prédica
Santo Agostinho, um dos mais célebres padres da Igreja Católica latina, escreveu:
A pobreza é o fardo de alguns e a riqueza é o fardo de outros e, talvez, o maior. Fardos que podem pesar-lhes para a perdição. Ajuda teu próximo a levar seu fardo de pobreza e deixa que ele te ajude a levares teu fardo de riqueza. Aliviarás tua carga aliviando a dele.
Conta-se a história de um rei que tinha tudo, menos felicidade. Além dessa, nada mais lhe faltava. Seu país estava em paz. E, no entanto, ele não era feliz. Quando todas as possíveis medidas falharam, seus amigos resolveram experimentar o conselho de um sábio. Esse sugeriu que o rei usasse uma camisa do homem mais feliz do reino. Pouco tempo depois, o homem foi encontrado. Contudo, o problema permaneceu sem solução, pois o homem não possuía uma camisa sequer.
O contentamento e a paz de Paulo não vinham de coisas que ele possuía. Nem se originavam da liberdade, pois ele estava na prisão quando escreveu a respeito de sua alegria e paz, que não vinham de fora, mas de dentro. Ele possuía a bênção da salvação por Jesus Cristo, “a paz de Deus, que excede todo o entendimento”. Seus pensamentos eram sobre coisas verdadeiras, honestas, justas, puras, amáveis e de boa fama (Otis L. Gilliam, apud ALMEIDA, 1987, ilustração 230).
Bibliografia
ALMEIDA, Natanael de Barros. Coletânea de ilustrações. São Paulo: Vida Nova, 1987. 162 p.
KUNZ, Claiton André. As parábolas de Jesus e seu ensino sobre o Reino de Deus. Curitiba: ADSantos, 2014.
ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Barcelona: CLIE, 1989.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).