Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 13.10-17
Leituras: Isaías 58.9b-14 e Hebreus 12.18-29
Autora: Márcia Blasi
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/08/2013
1. Introdução
Os textos previstos para este final de semana convidam-nos a refletir sobre as diversas causas da opressão que sofremos e relembrar que Jesus veio para libertar as pessoas que estão cativas e ajudar aquelas que já não veem a enxergar novamente. Estamos vivendo, no ano litúrgico, o Tempo Comum: 14° Domingo após Pentecostes. É importante relembrar a comunidade e também todas e todos nós, pregadoras e pregadores, que Deus age em nosso dia a dia, nas coisas comuns, e não somente em grandes eventos. Jesus vem e nos liberta.
Em Isaías 58.9b-14, Deus promete ao povo que onde justiça e misericórdia prevalecerem, ruínas vão ser reconstruídas e a luz vai brilhar na escuridão. Se o povo respeitar o sábado como um dia de descanso, Deus será sua alegria e haverá possibilidade de novos recomeços. O autor de Hebreus 12.18-29 contrasta o medo que as pessoas sentiram ao aproximar-se do monte Sião com a alegria daquelas pessoas que se encontram com Deus no seu Reino; apresenta uma imagem da Jerusalém celestial e da alegria com que as pessoas são recebidas lá. Não é preciso ter medo, diz o autor, pois lá há perdão em Cristo, e isso nos chama para a gratidão.
O Evangelho de Lucas 13.10-17 relata a libertação de uma mulher de seu sofrimento, que acontece num sábado. Enquanto está ensinando na sinagoga, na casa de oração, Jesus vê uma mulher que sofre há dezoito anos por estar encurvada e não poder endireitar-se. Jesus a chama e liberta do mal que a aflige. Isso causa revolta entre as pessoas que se julgam protetoras da lei divina, especialmente da lei referente ao sábado.
O tema que perpassa as leituras é o projeto de libertação de Deus. A libertação acontece em diferentes tempos e lugares, onde as pessoas clamam por ajuda e onde já não têm mais forças para lutar. O respeito ao sábado como um presente de Deus reservado para o descanso perpassa os textos.
2. Exegese
O texto encontra-se cercado por parábolas. Na perícope anterior, encontramos a parábola da figueira, e, nos versículos seguintes, Jesus faz várias comparações para explicar como o reino de Deus é e como ele cresce. O texto de Lucas 13.10-17 também tem a ver com o reino de Deus e com as pessoas que participam dele.
V. 10 – Certo sábado, Jesus estava ensinando na sinagoga. Sábado é dia de descanso e também de aprender na sinagoga. Sábado é dia de ouvir a palavra de Deus e dedicar-se somente a Deus. No sábado, não é permitido criar nada nem trabalhar. O sábado deve ser dedicado ao estudo da Torá e ao convívio familiar.
V. 11 – Chegou uma mulher: o que a trouxe ali? Por estar com uma doença ou deformidade no corpo, a mulher certamente era vista como impura. Mesmo assim, ela foi até a reunião na sinagoga. Ela anda encurvada, não consegue se endireitar. Será que consegue olhar nos olhos das pessoas ou somente para seus pés? Não sabemos qual a doença, somente que é um “espírito mau”. A palavra astheneia é usada tanto neste versículo como no seguinte e, literalmente, significa um “espírito de fraqueza”. Muitas vezes, significa a incapacidade de fazer algo devido a alguma doença.
V. 12 – Jesus anuncia para a mulher: “Você foi liberta” (apolyo) de sua doença. Apolyo não é uma palavra usualmente associada com cura. Seu significado mais comum é “libertar” ou “mandar embora”. Essa palavra está intimamente ligada à palavra lyo, usada duas vezes nesse texto por Jesus: “desamarrar” um boi ou jumento (v. 15) e “ ficar livre” da doença (v. 16).
V. 13 – A consequência da palavras de Jesus é anorthoo (v. 13) – que quer dizer “ser endireitada novamente”, mas também significa “restaurar” ou “fazer correto novamente”. Em sentido figurado, Jesus restaura/liberta a mulher do poder de Satanás e garante sua pertença ao povo da aliança.
V. 14 – É o líder da sinagoga que dá o nome de “cura” (therapeuo no v. 14 duas vezes) ao que Jesus está fazendo e, sendo assim, define a atividade dele como “trabalho”. Ele não consegue ver nisso o cumprimento daquilo que Isaías profetizara: a libertação da pessoa cativa e oprimida.
V. 16 – A descrição da mulher como sendo “filha de Abraão” não é comum. Ela recebe uma posição de destaque. A mesma expressão também é usada em Lucas 19.9, quando Jesus insiste que Zaqueu é um “filho de Abraão” em contraposição à multidão que o considera pecador. Provavelmente, Jesus insiste nesse termo por entender que a mulher foi roubada de sua posição como participante do povo da aliança por causa de seu “espírito mau”, que habita seu corpo. Sua condição física, encurvada, dobrada, pode simbolizar sua posição social da mesma maneira que o tamanho de Zaqueu pode simbolizar sua vulnerabilidade diante da multidão. Além disso, a palavra para “presa ou prendeu” (deo) só pode ser usada para uma doença no sentido figurado, estando presa a alguma força externa.
V. 17 – Enquanto os inimigos de Jesus sentem vergonha pela resposta que ele lhes deu, a multidão fica maravilhada com o que ele faz e agradece a Deus.
3. Meditação
Sugiro enfocar na prédica a questão da libertação da mulher. Geralmente, há muito enfoque na questão do sábado. É preciso tomar bastante cuidado e entender bem a situação para não tornar a prédica um discurso antissemita. A questão do sábado é importante, mas mais importante é que Jesus veio para libertar as pessoas cativas de qualquer cativeiro em que estiverem sendo mantidas.
Quem é essa mulher a quem Jesus liberta de seus males? Não sabemos seu nome, estado civil, idade. Sabemos que é mulher, e isso parece bastar para Lucas descrever o evento. É mulher, e mulher doente, mulher sofrendo com um “espírito mau”, um espírito que a deixa encurvada. Além de uma doença física, esse estar encurvada também pode ser entendido simbolicamente, chamando atenção para os poderes que oprimem as mulheres: violência psicológica, sexual, física, econômica, teológica, emocional.
Não foi a mulher que procurou Jesus. Ela somente foi até a sinagoga. Ele a procurou e desejou libertá-la de seu sofrimento. Por que ela não tinha vindo até ele? Será que não tinha coragem? Não é assim também em nossas comunidades? Mulheres que sofrem com a violência doméstica têm muita dificuldade para pedir ajuda. Elas participam silenciosamente do culto, tentando a todo custo mostrar que estão bem, mesmo que isso as deixe encurvadas diante de Deus e da comunidade, incapazes de assumir alguma tarefa ou contribuir com seus dons. Será que nós vemos essas mulheres? Será que, assim como o chefe da sinagoga, nós desviamos nosso olhar para “coisas mais importantes”?
Por que no sábado? Ela não estava correndo perigo de morte; ela vivia com essa doença há 18 anos. Por que Jesus não pôde esperar até o fim do sábado para curar a mulher? Uma das possíveis respostas é que, se Jesus esperasse, aconteceria somente uma libertação. Seria uma cura individual, e não parte de um processo coletivo de mudança de pensamento e fé. Jesus poderia ter esperado, mas ele optou por arriscar-se e com isso abrir os olhos de outras pessoas para que também elas vissem, assim como ele viu a mulher; vissem os sofrimentos ao seu redor e encontrassem na Lei de Deus elementos para incluir, para justiça e misericórdia, como diz Isaías.
O chefe da casa de oração de uma maneira ou outra também está encurvado. Ele está encurvado diante da interpretação da Lei. Se, por um lado, isso é uma discussão teológica, por outro, o chefe da sinagoga tem o dever de zelar para que a Lei seja cumprida. É preciso um pouco de ordem e organização, é preciso seguir algumas regras. Em nossas comunidades, também temos essas discussões. Quem assume o papel de fazer cumprir as regras e manter a ordem em nossas comunidades?
O foco de Jesus estava em libertar a mulher daquilo que a tinha encurvado e não em discutir o sábado. Jesus estava ensinando na sinagoga e viu aquela mulher, toda encurvada, que provavelmente só enxergava seus próprios pés, e seu coração encheu-se de compaixão. Ele se compadeceu do sofrimento dela e libertou-a do mal que a afligia. Sim, isso aconteceu no sábado. As pessoas pensavam que não deveria haver curas no sábado. A mulher sofria com a dor de seu próprio corpo e também com a opressão religiosa que a tornava “impura”. Considerando as diferentes camadas de opressão, é realmente algo fantástico que Jesus a viu. Ele a viu, chamou e tocou, e ela se endireitou e louvou a Deus.
Reconhecer o sofrimento de uma pessoa, chamá-la pelo nome, tocá-la faz parte do processo de cura. Temos que ter clareza de que a cura não foi algo mágico e que de uma hora para outra tudo mudou na vida da mulher. Ela ainda tinha muito por lutar e para manter-se ereta, mas agora ela podia ver tudo por um outro ângulo, não mais o dos pés, mas olhando seu problema nos olhos e encarando de frente. De que maneira podemos tornar a comunidade um espaço onde as pessoas são vistas e seus sofrimentos considerados, impulsionando-as para buscar a libertação?
Nesse encontro, Jesus demonstra a importância de cada pessoa no reino de Deus. É extraordinário que Jesus se refira à mulher como uma “filha de Abraão” (v. 16), uma cidadã da sociedade judaica. Com isso Jesus revela que o Reino está aberto a todas as pessoas, inclusive mulheres e pessoas com alguma doença. No tempo de Jesus, doenças físicas e mentais eram entendidas como possessões de Satanás. Ao ser curada, a mulher louva a Deus. Outro aspecto interessante é que o chefe da sinagoga não se dirige a Jesus. Ele não tem dúvida do poder de Jesus. Ele repreende o povo por buscar a cura no sábado, e Jesus envergonha-o com sua resposta, deixando claro o objetivo de sua vinda.
4. Imagens para a prédica
Sugiro olhar ao redor na comunidade e perceber quantas mulheres estão “encurvadas” por poderes demoníacos, poderes que tolhem seus direitos de ir e vir, seu direito à dignidade ou a uma vida sem violência. Os números sobre a violência doméstica no Brasil são alarmantes. Quebrar o silêncio sobre essa questão no púlpito, visibilizando o sofrimento e deixando bem claro que ele não é vontade de Deus, é um passo muito importante para encorajar as mulheres na busca pela libertação oferecida por Jesus.
Uma imagem muito significativa e que já foi experimentada é a imagem do vaso. Um vaso, assim como uma pessoa, pode não aguentar a pressão do que carrega e pode quebrar. Esse quebrar parece ser o fim, mas não é. Quebrar-se é uma fase na libertação. Um vaso quebrado pode ser colado. Não vai ficar igual e será preciso a ajuda de muitas mãos e uma boa cola: o amor. Mas o vaso pode ficar ainda mais lindo, pode guardar coisas novas, pode irradiar esperança. Esse texto e dinâmica foi utilizado no Primeiro Dia Sinodal da Mulher no Sínodo Noroeste Riograndense em 1999. O vaso foi quebrado durante a meditação da manhã e, durante todo aquele dia, dezenas de mulheres auxiliaram na sua reconstrução. Foi um processo lindo, e o vaso continua a fazer parte das celebrações na Comunidade em Santo Ângelo/RS. Essa dinâmica poderia ser realizada em algum grupo da comunidade, e o resultado apresentado no culto, bem como as conversas em torno do tema podem servir de alimento para a pregação.
5. Subsídios litúrgicos
Kyrie: “Pelas dores deste mundo” (Rodolfo Gaede Neto)
Oração de intercessão:
Como pessoas libertas por Cristo e guiadas pelo Espírito Santo, entregamos nossa oração a Deus na certeza de que Deus nos ouve. Oramos pelas pessoas encurvadas por opressão, fome, doença, violência e desrespeito. Oramos para que em todos os lugares ergam-se líderes que se empenhem em restaurar vidas e libertar pessoas daquilo que as oprime. Oramos por líderes mundiais para que não se curvem diante do poder econômico que destrói vidas, rouba infâncias e entrega à miséria milhões de seres humanos. Oramos por líderes religiosos e religiosas do mundo para que, através de interpretações bíblicas libertadoras, restaurem a saúde teológica nas religiões. Oramos por todas as mulheres que diariamente são oprimidas e sofrem violência no trabalho, na rua e principalmente dentro de casa, para que encontrem nas atitudes de Jesus forças para lutar contra a opressão. Oramos por esta comunidade para que se empenhe cada vez mais na construção de um mundo justo e digno para crianças, mulheres, homens e toda a criação. Oramos pelas pessoas encurvadas pela doença, luto e dor, especialmente por… Oramos por todas e todos nós, liberta-nos de nossa mania de autossuficiência e de nossa dependência daquilo que nos oprime.
Bibliografia
STOFFREGEN, Brian P. Exegetical Notes at Crossmarks Christian resources.
http://www.crossmarks.com/brian/luke13x10.htm. Acessado em: 25 de maio de 2012.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).