Agenda de Deus x agenda humana
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Lucas 13.31-35
Leituras: Salmo 27 e Filipenses 3.17 – 4.1
Autoria: Diogo Rengel
Data Litúrgica: 2º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 13/03/2022
1. Introdução
Ainda no início do período da Quaresma, o texto de pregação deste domingo aborda os momentos prévios à Semana da Paixão, em Jerusalém. A relação entre os três textos previstos para o dia, certamente, é muito significativa. Em resumo, pode-se dizer que os três textos falam sobre adversários/inimigos!
No Antigo Testamento, o Salmo 27 é considerado um salmo de confiança. Os primeiros versículos apresentam um salmista que se percebe cuidado e guardado por Deus diante das adversidades e dos inimigos: Ainda que se acampe um exército contra mim, não se atemorizará o meu coração (27.3a).
O Novo Testamento, por sua vez, traz no texto de apoio, de Filipenses (Fp 3.17 – 4.1), uma clara referência aos adversários da cruz! Os inimigos da cruz de Cristo, mencionados por Paulo, são todos os que, dentro e fora da comunidade de fé, negam a cruz e a ressurreição de Jesus! Aos cristãos cabe o desejo de se deixar orientar por aqueles que são, verdadeiramente, modelos de fé! Por isso Paulo diz: Irmãos, sede meus imitadores e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós (Fp 3.17).
E, por último, o texto previsto para o domingo nos apresenta o próprio Jesus diante dos fariseus, nesta ocasião, sendo lembrado da perseguição de Herodes a ele! Além desse momento de perseguição, Jesus faz menção a todos os profetas que haviam sido enviados pelo próprio Deus e que experimentaram também a recusa e a violência do povo de Israel!
É possível dizer que estar verdadeiramente em Deus traz inimizades com aqueles que não são dele. Se, por um lado, é possível contar com a simpatia das pessoas por causa da nossa fé (At 2.47), também é possível, e até provável, atrair a antipatia e a oposição de muitos.
2. Exegese
O texto de Lucas 13.31-35 aborda um encontro entre Jesus e o grupo dos fariseus. Causa estranhamento o fato de que esse grupo dá uma instrução de fuga para Jesus diante da perseguição de Herodes. Afinal, também os fariseus não eram contrários a Jesus, sempre o interpelando com intensa hostilidade? Não seria melhor deixá-lo morrer o quanto antes? Como, agora, esse momento nos apresenta uma espécie de “ajuda especial” desse grupo em relação a Jesus?
Alguns sugerem que, de repente, o próprio Herodes tivesse enviado aqueles fariseus. O próprio Jesus ordena que eles possam ir até o governador enviar um recado de sua parte. A ideia de “espantar” Jesus dali, talvez, evitaria a possibilidade de Jesus tomar o trono de Herodes. Aliás, líderes messiânicos surgiam lá e cá como um perigo para seu governo. Por outro lado, matar Jesus seria a característica mais usual do tetrarca Herodes. Assim já havia feito com o próprio João Batista, que o ameaçava em influência e popularidade, inclusive no local onde Jesus também está neste momento. Maldade e crueldade eram marcas daquele homem.
A sugestão dos fariseus a Jesus, então, permanece como uma grande pergunta. Ao mesmo tempo, a resposta dada por Jesus, no versículo 32, deixa bem claro de que não é o homem que define os planos de Deus ou sugere o que ele precisa fazer, mas que Deus, em Jesus Cristo, é quem tem total domínio sobre o que faz ou deixa de fazer. Em outras palavras, nem os fariseus nem Herodes definirão a “agenda” de Jesus. Ele mesmo sabe o que está fazendo.
Diante dessa proposta recebida, Jesus chama Herodes de raposa, o que representa uma clara e corajosa afronta. Raposa era uma figura de linguagem que representava tanto a astúcia de alguém como também a falta de importância. Ou seja, poderia ser tanto uma referência à maldosa astúcia de Herodes como um menosprezo a ele. Jesus não cede nem à seita dos fariseus nem ao tetrarca.
Jesus, então, avisa que cumprirá a sua missão, independentemente das oposições que experimentará. Ele tem total consciência de que logo experimentaria a morte. Interessantemente, o termo grego usado por Jesus para dizer que ele terminará a sua missão é o termo teleioumai. Essa palavra logo traz outra à mente. Em João 19.30, em momentos prévios à sua morte, Jesus pode dizer na cruz: tetelestai, que é um equivalente grego de teleioumai. Em primeiro lugar, Jesus lembra que concluirá a sua missão e, pendurado no madeiro, pode dizer que ela está concluída.
Dada essa informação aos fariseus, ainda avisa que importaria caminhar, caminhar e caminhar (Lc 13.33), porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém. É para lá que ele vai! Diz isso porque está na Pereia, que é, curiosamente, a região onde o próprio João Batista foi assassinado. Ele sabia que logo experimentaria a cruz, por causa dos seus adversários, e sabia que Deus o guardaria até lá.
Ao observar de longe a cidade, pode lembrar quantos outros profetas também haviam sido enviados por Deus, mas foram mortos ou apedrejados. Não seria diferente agora. Jesus lamenta: Jerusalém, Jerusalém! (Lc 13.34). Com o coração cheio de amor é que ele faz isso. Assim como pôde olhar para Marta, na sua agitação, e também expressar: Marta! Marta! (Cf. Lc 10.41). Jesus amava a cidade de Jerusalém porque lá estavam as pessoas amadas pelo Pai. Mesmo Nínive, apesar da maldade, era uma cidade muito importante para Deus (Jn 3.3). Com Jerusalém não seria diferente.
No versículo 35, a palavra de Jesus é um lamento e uma profecia. Um lamento por perceber a inimizade com Deus! Uma profecia, pois, mais tarde, nas palavras de Champlin:
Quão desolada ficara a terra de Israel! Quão patentes eram as evidências dessa profecia cumprida. O sinédrio, antes grandioso e augusto, agora não mais tomava deliberações, porquanto os romanos destruíram completamente este tribunal. O templo não podia mais ser contemplado, pois não restara pedra sobre pedra. As sinagogas jaziam em ruínas. As estradas estavam cheias de entulho. […] Um silêncio incomum e melancólico tomava conta das ruas antes apinhadas de gente (CHAMPLIN, 1982, v. 2, p. 553).
Ali onde a vida sem Deus é uma realidade, a desolação é certa e triste. É o que a cidade de Jerusalém experimentava e pôde experimentar de maneira ainda mais cruel mais tarde.
3. Meditação
O texto previsto para este domingo está claramente apontando para algo que precisava acontecer e que se torna cada vez mais palpável: a morte redentora de Jesus Cristo. E aí, diante de toda a adversidade que Jesus ia enfrentando (Herodes, seitas, o império), ao mesmo tempo, ele sabia que precisava ser assim. Ao homem, porém, tudo é muito estranho.
Uma maneira interessante de abordar esse texto é comparar a “agenda de Deus” x “nossa agenda”. Qual é a “agenda de Deus” para vida do ser humano? Não somente em nosso texto, mas claramente também no convívio com os próprios discípulos, as pessoas não compreendiam muito bem o modo como Jesus agia e, certamente, esperavam que ele fizesse outras coisas.
No relato da transfiguração, por exemplo (Cf. Mc 9.2-8), Pedro, sem saber o que dizer, sugere o seguinte: Mestre, é bom estarmos aqui e que façamos três tendas: uma será tua, outra, para Moisés, e outra, para Elias (v. 5). E, de repente, nada daquilo acontece. O próprio Pedro, na noite do lava-pés, nem ao menos quer permitir que Jesus lave seus pés, porque, para ele, não deveria ser assim. Jesus, então, lhe diz: O que eu faço não o sabes agora; compreendê-lo-às depois (Jo 13.7). Ou seja, a “agenda de Deus” não segue a lógica humana, porque essa é limitada e totalmente falível. Também o Antigo Testamento vai confirmar isso quando o próprio Deus afirma: Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos (Is 55.8-9).
O ser humano não define a “agenda de Deus”, ou seja, ele não diz como Deus deve, ou não, agir. Deus é soberano. E se ele é rei soberano, logo, eu sou escravo. É comum ver em muitos lugares pessoas declarando ou exigindo o que Deus deve fazer, ou não. Não são orações que se colocam sob a vontade de Deus, mas são ordens do que Deus deve fazer. A lógica de quem é rei e de quem é servo foi completamente desvirtuada. O ser humano se torna “deus” nesse caso.
A “agenda do ser humano” tem grandes dissonâncias com a “agenda de Deus”. Os planos de Deus são diferentes dos planos do ser humano. Em nosso texto, os fariseus estão fazendo sugestões para Jesus sobre o que ele precisa fazer: Foge! Mas Jesus sabe o que está fazendo e sabe o que precisará acontecer, ainda que os caminhos sejam esquisitos aos olhos limitados de seus filhos e suas filhas. A realidade de Deus é muito maior do que a humana. Por isso Paulo pôde dizer que, apesar de apóstolo, chamado, salvo, ele ainda enxerga em partes, como se fosse um espelho completamente embaçado (Cf. 1Co 13.12).
Outro ponto, associado a esse primeiro, é que Deus cumprirá a sua obra! Tetelestai! Assim como ele promete nesse texto que consumará o que for necessário, também assim na vida dos seus filhos e filhas! No caminho, às vezes, tristes, cansados, abatidos, uma certeza: ele completará a sua obra em cada um e cada uma que se compromete a caminhar em fidelidade com ele. E isso é consolo para dias tão duros! Ele é rei soberano; nós, servos.
E por último, creio que a oração da igreja precisa ser: Senhor, faze-nos conhecer a “tua agenda!” e que, ao mesmo tempo, “tua agenda” seja a nossa! Ou seja, que ele mostre o seu caminho para que, com alegria, cada um dos seus filhos e das suas filhas possa caminhar por ele.
4. Imagens para a prédica
Tendo em vista o tema sugerido para a mensagem e as possibilidades lançadas para a meditação, surgem algumas ideias. Obviamente, o uso de uma bela agenda em mãos, ou um bom slide com uma fotografia de uma agenda digital chamaria a atenção para uma pergunta inicial: Se você pudesse escrever numa agenda todos os planos para a vida, será que ela estaria de acordo com a agenda que Deus tem para você?
A partir daí poderia seguir para o texto/textos bíblicos que ajudam a entender que os planos humanos são, em boa medida, diferentes dos planos de Deus, porque somos frágeis e limitados. Mesmo um dos apóstolos mais influentes não teve condições de compreender os caminhos de Deus em sua totalidade. Paulo lembra esse conhecimento de Deus como um espelho embaçado (1Co 13). Essa também poderia ser uma boa imagem para a prédica.
E, por último, de repente, a ideia de alguém caminhando por um caminho estranho de olhos vendados! Ali é possível lembrar que a palavra de Deus lança luz no caminho (Sl 119.105)! Ou seja, pela palavra de Deus é possível entender e compreender melhor os caminhos, ou melhor, a “agenda de Deus” para a vida, lembrando sempre que o que conhecemos é limitado, mas é possível não caminhar pela escuridão. Jesus e sua palavra são luz para o caminho!
5. Subsídios litúrgicos
Oração: Senhor, de gratidão transborda o coração ao chegarmos aqui. Em nossos lares ou em comunidade, temos a certeza de que a tua palavra trará luz para nós. Nossos caminhos são incertos, inseguros, mas tu tens um bom caminho para nós, mesmo que, às vezes, ele nos pareça estranho. Permite-nos caminhar conforme a tua vontade. Permite-nos conhecer os teus planos para nós e que os nossos planos, tão pequenos, caiam por terra. Amém.
Hinos: Pela Palavra de Deus – LCI 152; Tua Vontade – LCI 321; Te Agradeço – LCI 84.
Bibliografia
CHAMPLIN, N. Russell. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 2.
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Paulus, 2010.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).