Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 14.25-33
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e Filemon 1-21
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08/09/2013
1. Introdução
Ter a coragem de deixar o abrigo. Despir-se de tudo o que se tem. Relativizar todos os meios de segurança. Abdicar de privilégios e prêmios. Eis o desafio singular neste tempo em que nos convencem a salvar a nós mesmos. Essas atitudes e desafios estão relacionados às exigências para o seguimento a Jesus, presentes no texto de Lucas, indicado para a pregação, e nos textos bíblicos de leitura no culto do 16º Domingo após Pentecostes.
O texto de Deuteronômio (30.25-20) apresenta a necessidade de opção. Amar a Deus, seguir os seus mandamentos e permanecer em comunhão com Ele resultarão em bênção, longevidade e prosperidade. Já a idolatria e o abandono a Deus causarão a destruição. Permanecer com Deus significa obediência e seguimento aos mandamentos.
A carta de Paulo a Filemom menciona a prisão como consequência do seguimento a Cristo. E ainda destaca a transformação que o seguimento a Jesus causa, representada pelo novo nascimento de Filemom e espelhada no seu cuidado à comunidade e amor ao povo de Deus. A fé e o amor de Filemom despertam em Paulo alegria e coragem.
Com essas observações proponho a busca pela mensagem do evangelho presente no texto de Lucas, a ser proclamada no culto e na pregação a serem preparados.
2. Exegese
Para encontrar a mensagem central de Lucas 14.25-33, consideramos importante a parábola anterior, que ilumina o descaso de alguns ao convite de Jesus para participar do banquete do reino de Deus. Mas outro segmento de pessoas, socialmente identificado, aceita o convite para a festa da vida com facilidade e alegria. Da mesma forma, a parábola do sal, após nosso texto, censura a comunhão sem gosto, sem comprometimento visível ou real.
A primeira leitura dos versículos 25 a 33 cria a impressão de que o seguimento a Jesus não é coisa para multidões (v. 25). Porém, no texto anterior, o dono da festa almeja a casa cheia (v. 23). Jesus afirma que as “portas do reino” estão abertas para as pessoas que o amam mais do que a si mesmas e a sua família – abrigo, proteção, sociabilidade, segurança alimentar, identidade, sabedoria e valores do clã (v. 26). O seguimento inclui a coragem de morrer, de perder e assim mesmo o seguir (v. 26), numa comunhão de vida e destino. A participação no reino de Deus, conforme os evangelhos sinóticos, é sempre mediada pelo seguimento a Jesus.
Também os textos de Marcos (1.18; 2.14; 6.1 e outros) indicam que os seguidores de Jesus compunham um círculo mais restrito. O chamado e o comprometimento envolviam a submissão à autoridade de Jesus, tendo em vista a opção por uma adesão pessoal e duradoura. O verbo seguir descrevia a cumplicidade e fidelidade especial dos seguidores com Jesus.
Certamente, na época, abandonar a família significava abandonar o clã, o projeto econômico e social de vida, também de subsistência. O seguimento a Jesus não incluía os privilégios dos sacerdotes e dos poderes da ordem do templo. Implicava submeter-se às privações da vida peregrina, exposta às ameaças e aos conflitos com os adversários e poderes estabelecidos. Mesmo sem grau de importância, vale observar aqui que João Batista foi um peregrino do deserto, e Jesus o peregrino das vilas e cidades. Lucas destacou esse perfil peregrino de Jesus (4.30; 5.12; 6.1,12,17; 7.1,11).
Verificamos que Jesus, conforme Lucas, destaca a necessidade de conhecer as consequências da opção em juntar-se a ele. As parábolas da construção da torre (v. 28-30) e da preparação para a guerra (v. 31-32) enfatizam que a opção pelo seguimento a Jesus precisa ser refletida, medida e calculada.
A conclusão do texto (v. 33) não deixa dúvida de que as exigências estão relacionadas ao “deixar tudo para trás”. O texto não nos autoriza uma amenização.
O seguimento a Jesus pressupõe a coragem de romper com os compromissos e meios de vida anteriores à vocação. O tempo e o caminho são novos e determinados por Jesus.
As comunidades cristãs pós-pascais encontravam-se fragilizadas pela transitoriedade de seus membros e por ameaças constantes como seguidores de Jesus. Em determinadas épocas, a perseguição inviabilizava a comunhão e esvaziava a fidelidade. As comunidades pós-pascais, em especial aquelas que foram berço para o Evangelho de Lucas, por volta dos anos 80, foram formadas numa estrutura social mais ampla, composta por pessoas ligadas às suas famílias, com profissão ou outro meio de sustento. O comprometimento com a comunidade cristã era desafiador, exigia muito.
Exegetas informam-nos que Lucas buscou fazer frente também à crise de identidade das comunidades cristãs, instalada pelos contrastes entre as comunidades gentílicas e as judaicas. O retorno e o resgate da situação vivida pelo Jesus de Nazaré e seus discípulos foram escolhidos por Lucas como fundamento para destacar referências comuns para a construção da identidade nas diferentes situações.
Assim pressupomos que os relatos dos evangelistas sobre as advertências de Jesus a respeito dos perigos que envolviam o seu seguimento, ao serem proclamados nas comunidades pós-pascais, integravam, com destaque, o conteúdo das parêneses. As palavras de Jesus, proclamadas nas comunidades, fortaleciam a opção, a fidelidade e a resistência às ameaças, à exclusão e ao enfraquecimento e, ao mesmo tempo, asseguravam identidade. A imagem do círculo dos discípulos de Jesus antes da cruz e ressurreição é apresentada com naturalidade, tendo a forma de modelo para a vida cristã, a única que conheciam, remetendo à equiparação da comunhão dos discípulos de Jesus com a comunhão com o Cristo ressurreto. Percebe-se nas comunidades pós-pascais a busca pela reprodução da obediência incondicional e contundente dos discípulos. Dessa forma, compreendemos a importância e o destaque à necessidade de os seguidores de Jesus, antes e depois da Páscoa, conhecerem as implicações e privações relacionadas ao seguimento ou à participação na comunidade. O conteúdo de fé das comunidades estava fundamentado no entendimento de que a participação na salvação acontecia por meio da comunhão com o Cristo crucificado e ressurreto, o Jesus histórico de Nazaré.
3. Meditação
As comunidades de nossa IECLB, também as de outras denominações cristãs parceiras e ecumênicas nas pequenas e grandes cidades, estão expostas a diversos desafios. Em nosso tempo, a herança dos valores, metas, tradições e identidades do passado não são sufi cientes para legitimar a participação e o comprometimento de pessoas em comunidades que interagem com a realidade e seu contexto. A evangelização, a diaconia, a comunhão e a liturgia passam pelo desafio da atualização do discipulado, da fidelidade ao seguimento do Senhor da Igreja, Jesus Cristo. Tarefa nova e externa à dinâmica de exercício de poder instalado e institucionalizado, que devido aos contrastes e às oposições exige compromisso, fidelidade e amor, planejamento e reconhecimento dos perigos e das consequências envolvidas.
A comunidade cristã é chamada para anunciar a dignidade e a plenitude da vida, responder à pergunta pelo sentido da existência humana, conjugando a ação profética de denunciar a destruição, a injustiça e a idolatria com o anúncio da presença do reino de Deus através dos espaços e sinais da gratuidade, comunhão e construção de igualdade e paz. Essa vocação está exposta a ambientes urbanos enormes, compostos por grandes aglomerações de pessoas, com suas múltiplas culturas, objetivos e projetos de vida, quase sempre confusos, enraizados em situações sociais diversas e conflitantes. Esse “mundo”, apesar da fragilidade e dos perigos, abriga o carisma da graça e do amor de Deus, que se instalam como espaço para o exercício comunitário e profético de revelar a vida nova em meio à dor, perdas, violência, injustiça, exploração. Deus está presente no mundo com sua missão. O texto de Lucas proclama que todos são chamados para dela participar, conscientes das demandas, compromissos e consequências relacionadas às exigências do seguimento a Jesus.
Compõe o chamado de Jesus a arte de conjugar a parábola do banquete, encher a casa com aqueles que aceitam o convite e, ao mesmo tempo, a vigilância para constantemente desprender-se da sedução de tornar-se comunidade com as características de um “clã”, voltada para si mesma e autossuficiente, tal como um condomínio urbano que, ao criar uma infraestrutura para os seus moradores, isola da cidade, da comunidade maior, dos compromissos da cidadania e da construção do reino em meio à realidade de morte.
Por graça e misericórdia de Deus é possível, ainda, nos colocarmos em diferentes contextos como aprendizes da revelação e do testemunho bíblico que nos comprometem com os sinais de nova vida, projetando-nos para além de nossos próprios limites.
A nossa realidade está marcada pelas injustiças, violência, pobreza, fome, doenças, desestruturação familiar e pelo descaso aos valores da paz e às dádivas do evangelho. Nossa realidade caracteriza-se por uma situação em que a pobreza e a riqueza convivem e brigam no palco da indiferença, da omissão, do medo, da angústia e da fatalidade. Esse ambiente promove o distanciamento entre as pessoas, o esvaziamento dos valores de vida, da dignidade e da história.
A palavra de Lucas 14.25-33 anima-nos a inspirar-nos na comunidade do Jesus histórico e nas dificuldades das comunidades pós-pascais. Indica a definição da vocação, lugar e missão da igreja ou da comunidade cristã nos diferentes contextos, como tarefa que assegura a identidade e comunhão com o salvador
Jesus Cristo. Exige a apropriação das consequências do seguimento a Jesus e do aprendizado das comunidades pós-pascais, que não se conformavam com a fragilidade do engajamento de seus membros e dedicavam-se para não comprometer a dimensão diaconal de convidar, acolher e dar “colo” aos cansados e sobrecarregados, aos aflitos e excluídos.
4. Imagens para a prédica
Certo de que a palavra de Lucas desafia-nos a proclamar as exigências do discipulado incorporadas ao carisma, dádiva, graça e tarefa da comunidade cristã, apresento indicações para a elaboração da prédica.
Sugiro escolher e preparar quatro imagens: uma que visualiza situações de injustiça, perda e sofrimento; outra que comunica situações de conflito e criminalização da comunidade cristã devido ao teor e ao conteúdo de seu testemunho; a terceira, que enfoca a comunidade como espaço para o acolhimento, cuidado e diaconia; e a última, que aborda ações de testemunho, evangelização e missão.
Elas poderão ser impressas e distribuídas no início do culto ou da celebração. Certamente, as imagens despertarão curiosidade e motivarão interpretações.
Poderão também, caso a comunidade tenha esse recurso técnico, ser projetadas em uma tela.
O objetivo é promover a aproximação e a identificação das comunidades de hoje com a comunidade pós-pascal dos discípulos de Jesus. Apontar para a fidelidade e o comprometimento com o discipulado a ser vivido em comunidades de fé contextualizada, compostas por pessoas, filhas e filhos de Deus, santas e pecadoras, cidadãs do mundo e já participantes dos sinais do reino de Deus. Ajudar os ouvintes a libertar-se de posturas fundamentalistas e incorporar a simultaneidade, o já e o ainda não, que desautorizam o juízo humano e o afastamento da realidade e do contexto, mas que despertam para o discipulado ao Deus presente com sua missão transformadora.
Na elaboração dessa mensagem para um público-alvo, marcado pela realidade das cidades, torna-se fundamental considerar que o “mundo urbano”, o cotidiano e o movimento pela sobrevivência dificultam comprometimentos, fidelidade comunitária e a apropriação de valores da partilha e da gratidão, do serviço e do amor. Nessa realidade, não é comum fazer cálculos e planejar opções e compromissos. As pessoas estão envolvidas e “afetadas” pela dinâmica do improviso, do provisório, simples e prático. O comum é usufruir de tudo o que está em volta, uma espécie de cultura do aproveitamento e da instrumentalização de tudo para meu próprio benefício. A tendência é aproximar-se de Jesus com os vícios e as atitudes de consumo.
O texto de Lucas, no entanto, não autoriza julgamentos e condenações. Inspira a mensagem que ajuda o fortalecimento do discipulado e da comunidade cristã com seus carismas, desafios e tarefas curadoras e transformadoras.
5. Subsídios litúrgicos
Na Invocação, facilitar a identificação do trino Deus com o contexto das pessoas que participam do culto. Exemplo: “Esse é o Deus presente nas ruas, becos e estradas, o Deus salvador que nos chama para denunciar as ações e poderes multiplicadores da morte, o Deus Espírito Santo que coloca em nossas bocas palavras de ânimo e consolo nos momentos difíceis”.
No Kyrie, dar nomes às situações de sofrimento, injustiça, engano, omissão e perseguição, também às vítimas dessas situações rompidas com a vida e com a dignidade. Preparar com antecedência um grupo da comunidade para expressar, em um grande cartaz, palavras, escritas em cores diferentes, que apontam para perdas e sofrimentos. Na mensagem, na prédica, mencionar essas mesmas situações (fazer a ligação, não deixar desconectado com a mensagem).
Confissão de fé:
Não acreditamos nas leis que legitimam a violência; não acreditamos na linguagem das armas e do poder. Acreditamos no direito dos humanos de ser humanos, no poder da não violência, na educação pela paz. Não acreditamos em raça ou riqueza, em privilégios; não acreditamos na impunidade, na indiferença; não acreditamos que a fome, o abandono e a guerra sejam inevitáveis, que a paz não possa ser alcançada. Acreditamos que o mundo inteiro é o nosso lar, que a justiça é a mesma aqui e acolá, que não estou em liberdade enquanto um único ser humano é escravo. Não acreditamos que todos os esforços para testemunhar e viver o amor, a graça e a eternidade sejam em vão; não acreditamos que a morte seja o fim. Acreditamos nas pequenas ações, no amor que parece ser fraco. Acreditamos no Deus vivo, no novo céu e na nova terra, onde a paz e a justiça formarão a plenitude. Amém.
Bênção:
Paz para todos os povos, do Oriente e do Ocidente;
Paz para as cidades, vilas, campos e montes;
Paz para todas as mulheres e homens;
Paz para todos os enfraquecidos;
Paz para adolescentes, jovens e crianças de todas as idades e em todos os lugares;
Paz para todos nós aqui reunidos;
Que a paz suprema de Deus Pai e do Filho e do Espírito Santo irrompa para além dos horizontes.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).