Prédica: Lucas 15.1-10
Leituras: Êxodo 32.7-14 e 1 Timóteo 1.12-17
Autor: Ricardo W. Rieth
Data Litúrgica: 17º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:01/10/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
Quem são os perdidos?
1. Observações gerais
Neste cap. 15, Lucas reúne três parábolas que tematizam o reencontro daquilo que estava perdido e a alegria daí decorrente. A introdução às parábolas (1-3) demonstra seu caráter de apologia diante das acusações levantadas por fariseus e escribas contra Jesus, que se escandalizam com a presença de pobres, aleijados, cegos e coxos na grande ceia (cf. 14.15-24). Uma observação ainda com relação a todo o capítulo: a sequência das três parábolas corresponde à das afirmações divinas em Jr 31.10-20: 4-7 = Jr 31.10-14; 8-10 = Jr 31.15s; 11-32 = Jr 31.17-20.
A parábola da ovelha perdida é apresentada numa forma mais complexa do que a de Mateus (cf. Mt 18.10-14). Enquanto ali Jesus apresenta aos discípulos sua tarefa em relação aos menores na comunidade, no Evangelho de Lucas o tema é a tarefa de Jesus em relação aos perdidos. O fato de o texto apresentar na verdade uma dupla parábola demonstra que se quis colocar o agir do homem ao lado do da mulher. É como se se quisesse dizer: Assim age toda pessoa, seja homem ou mulher.
2. Interpretação do texto
VV. 1-3: Publicanos e pecadores se aproximam de Jesus, que fala ao povo (cf. 14.25-35).
Os publicanos eram cobradores de impostos, que obtinham uma concessão oficial do império para fazê-lo numa jurisdição fiscal maior ou menor. De acordo com a concessão recebida, eram obrigados a repassar periodicamente uma determinada quantia ao tesouro imperial. Havia cobradores que colocavam a seu serviço outros cobradores, sendo necessário diferenciar entre essas duas categorias de publicanos. Os tributos cobrados eram variados: taxas para uso de pontes, para navegação, impostos urbanos. Taxavam-se peças de vestuário, pérolas, pescado, grãos, óleo, animais e escravos. Por causa de seu envolvimento com o dominador gentio e, mais ainda, por suas arbitrariedades e ganância, os publicanos eram odiados. Não eram considerados aptos a comparecer diante de tribunais na qualidade de testemunhas. Um fariseu que viesse a se tornar publicano era excluído da comunhão. Ser publicano virou sinónimo de ser enganador e ladrão, alguém sobre o qual repousaria a ira de Deus.
Quanto aos pecadores, estes, por sua vez, eram vistos de duas maneiras. Por um lado, eram gente cuja conduta era considerada imoral (p. ex., ladrões, assassinos, fraudadores — o último acabou levando à conexão entre publicanos e pecadores). Os fariseus tinham uma lista de pecadores segundo os diferentes ofícios: jogadores de dados, usurários, organizadores de competições com pombas eram considerados os principais; mas a lista também incluía pastores de ovelhas, cobradores de impostos, tecelães, tosquiadores, enfermeiros que aplicavam sangrias, proprietários de banhos, curtidores e até mesmo médicos, navegadores, transportadores, condutores de camelo e açougueiros. Também os gentios eram considerados pecadores (cf. Gl 2.15). Por outro lado, pecadores eram todos aqueles que não seguiam as regras farisaicas de conduta. Nesse sentido, também Jesus e seus discípulos eram pecadores.
Jesus é apresentado como companheiro de todos os publicanos e pecadores. Esse todos deixa evidente o preconceito: onde quer que Jesus esteja, ele se mete com essa gente.
Justamente isso é visto como escândalo pelos fariseus e por seus mestres da lei, os escribas. Eles murmuram (cf. em 5.30 o mesmo comportamento), como seus antepassados murmuraram antes de entrar na terra prometida. Sujeitam-se, assim, a colocar-se de igual modo contra a vontade salvífica de Deus. Trata-se do comportamento de quem não suporta essa vontade, como dizem ao censurar Jesus: Este recebe amigavelmente os pecadores; ele se alegra e se sente bem por estar junto ao pecador, que o procura. A comunhão de mesa com pecadores — que não tivessem manifestado previamente sinais visíveis de arrependimento, praticando jejum e penitência — era totalmente reprovada pelos fariseus (cf. Mc 2.15ss.). Lucas, por sua vez, dá a entender que Jesus senta com os pecadores para uma ceia festiva, concretizando deste modo o que é imagem da comunhão escatológica do reino de Deus (cf. Lc 13.25-29; 14 e 15.23-32).
Pelo escândalo com a ausência de sinais visíveis de arrependimento por parte dos pecadores, dá-se o confronto. Em decorrência disso, Jesus conta as parábolas que se seguem.
Vv. 4-7: Jesus começa a parábola com uma pergunta retórica, convidando o ouvinte a pensar junto sobre a ação do dono de cem ovelhas, para dizer ao final: E verdade, é assim mesmo que se faz. A preocupação do proprietário — que quer ser transferida ao ouvinte — se dá em função do que foi perdido.
Na literatura rabínica podem ser encontrados diversos exemplos de parábolas semelhantes a esta — inclusive algumas delas usam os números cem, um, noventa e nove. Seu objetivo, porém, é demonstrar o modelo de correção no cumprimento da lei ou então ilustrar o pensamento relativo à eleição por Deus.
Aqui, em contrapartida, a ênfase está na alegria por encontrar a ovelha perdida. O animal, enfraquecido, precisa ser carregado nos ombros (uma imagem freqüen (emente presente em narrativas do Oriente antigo), algo que o proprietário faz em meio a grande alegria. A alegria e a ação daquele pastor de ovelhas, cujo ofício era considerado pecaminoso pelos escribas legalistas, são comparadas à alegria e à ação de Deus. Cumpre-se a promessa de Ez 34.12 e 23 no momento em que Lucas — como já fizera em 2.14 — relaciona o acontecimento terreno com o evento celestial.
O v. 7 revela que o pecado dos fariseus brota de sua falta de misericórdia para com os desprezados, justamente no momento em que Deus estende a eles sua graça e se alegra por recebê-los. Enquanto textos rabínicos falam da alegria de Deus com os justos e com a decadência dos ímpios, Jesus acentua a grande alegria de Deus pela conversão do pecador, sem, contudo, desprezar o amor à palavra e a obediência ao mandamento divinos.
Vv. 8-10: A partir do v. 8, Lucas coloca a mulher ao lado do homem, a pobre dona de casa ao lado do pastor relativamente bem de vida. A duplicação da parábola sublinha a vontade de Deus em recuperar o que está perdido; duplica-se a força do testemunho de Lucas. As dez dracmas provavelmente constituíam um modesto adorno — talvez de casamento — daquela mulher. Ela acende uma luz, não porque seja de noite, mas porque na pobre casa não há janelas e tão-somente um facho de luz passa pela porta. Ao varrer a casa, ouve então o tilintar da moeda. Novamente instaura-se grande alegria com o achado; amigas e vizinhas são convidadas a compartilhar dessa alegria. O nome de Deus, que no v. 7 se ocultara sob o termo céu, encontra-se agora no v. 10 sob a imagem diante dos anjos.
3. Meditação
a) Quem são os perdidos?
Quem gosta de ir sozinho a um lugar desconhecido? A uma cidade onde nunca esteve, sem estar na companhia de alguém, algum conhecido que vive lá? Acho tremendamente desagradável passar por isso. Sinto-me inseguro diante da possibilidade de perder-me numa cidade desconhecida, sem saber por que rua ir, que ônibus tomar; sem saber para onde telefonar ou se o lugar por onde passo é perigoso ou não.
Você está completamente perdido! — Quem já não ouviu algo assim? São palavras que me dizem que estou indo na direção errada, ao enfrentar uma situação, ao tentar resolver um problema. Quando ouço uma frase desse tipo, a primeira sensação é de desorientação.
Para melhor compreender o evangelho de Lc 15 é bom ter presente na mente essas situações: estar perdido, sentir-se perdido. A partir daí se pergunta: quem são os perdidos?
b) Nós somos os perdidos
Os cobradores de impostos e pecadores estavam junto de Jesus, tinham-no buscado. Jesus tinha comunhão com eles, comia com eles, se alegrava junto com eles. Quem eram cobradores de impostos? Quem eram pecadores? Isso irrita os fariseus e os professores da lei (exigentes, defensores da perfeição, moralistas: desprezadores dos que não o faziam). Por causa dessa situação de conflito (eles murmuram), Jesus conta as parábolas dos perdidos.
Central nas parábolas é a alegria por encontrar o que estava perdido. São alegrias que podem ocorrer no dia-a-dia. Para’o dono das cem ovelhas, perder uma delas era algo que poderia ocorrer qualquer dia. O mesmo vale para a dona de casa com suas moedas. Quem de nós já não encontrou, algum dia, algo que tinha perdido e estava procurando há muito tempo? Não se trata de um momento de alegria? Com o que diz sobre o dono das ovelhas e a dona de casa com suas dez moedas, Jesus quer mostrar aos que o escutam como se sente quando vê que gente que antes estava completamente perdida — cobradores e pecadores — vêm em sua direção, desejando estar com ele. Ele sente uma tremenda alegria.
Assim se sente Deus em relação a nós, que agora vivemos na e a partir da fé em Jesus Cristo. Estávamos antes — e muitas vezes voltamos a estar — em situação de total afastamento em relação a Deus e ao próximo. Um comportamento de exploração do semelhante, de querer levar vantagem em tudo, demonstra isso claramente. Tirados desse tipo de comportamento por Cristo — quando fomos batizados e quando nos arrependemos diariamente —, nos achamos em sua companhia. Daí a grande alegria, que deve ser a marca de nossa vida diária, de nossa vida na comunidade de fé, litúrgica e eucarística. O texto de l Tm 1.12-17 deixa transparecer tal sentimento.
Quem são os perdidos?
c) São os que, por meio de nós — agora achados —, Deus busca
A alegria que Deus tem por estar junto a nós, por nos ter reencontrado, não se limita só a nós. Ele quer estendê-la a todos. Quer se alegrar, encontrando os que se encontram perdidos. Isso ele quer fazer por meio de nós, do nosso testemunho, já que não mais está presente do jeito como estava na época em que os cobradores de impostos e pecadores sentavam com ele. Ele agora está presente em nós, comunidade (cf. Mt 18.20). Jesus está no meio da nossa comunidade, graças à ação do Espírito Santo, pela Palavra e sacramentos.
Se nós, comunidade de fé, somos instrumentos para que ele encontre, se reúna e festeje com os perdidos, temos que perguntar novamente: quem são os perdidos?
— São os que estão bem próximos de nós, mas se encontram perdidos: os da família, da comunidade.
— São os que estão desorientados, que precisam, necessitam. Há os que se sentem sós, desorientados, perdidos e buscam auxílio no que só agravará sua situação já desesperadora: em promessas de milagreiros, no álcool, nas drogas, na violência.
— São os que estão na miséria, passando fome, doentes, desabrigados, perderam o pouco que tinham, os que são injustiçados.
Que o exemplo de Moisés em Êx 32.7-14 nos motive. Temos que buscá-los para estarem junto à mesa, para que Deus se alegre na sua presença.
d) Quem são os perdidos?
Cada qual, cada comunidade precisa constantemente fazer e responder essa pergunta. A inspiração para isso se dá na esperança da grande alegria do Reino, que ainda não se concretizou totalmente, mas já se manifesta em alegrias menores, como a de um homem que carrega uma ovelha recém-encontrada às costas ou a de uma mulher que acha uma moeda perdida na escuridão de sua casa.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Esta poderia lembrar que no arrependimento — como retomada do afogamento do pecado por ocasião do Batismo — se dá a passagem da situação de perdidos para a comunhão festiva à mesa, na companhia de Jesus Cristo.
Coleta: Esta poderia pedir que Deus inspirasse a liturgia da comunidade de fé reunida, para que esta expressasse uma alegria representativa da alegria que ele sente ao encontrar o perdido.
Oração final: Esta poderia pedir pelo auxílio de Deus na tarefa da comunidade em servir de instrumento para que ele encontre os perdidos.
4. Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. 8. Aufl. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1978. (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament, 3).
HÕLLER, Otto B. S. 3° Domingo após Trindade: Lucas 15.1-7 (8-10). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal. v. X, p. 361-367.
JEREMIAS, Joachim. As Parábolas de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1976.
NÕR, Ricardo. 3a Domingo após Trindade: Lucas 15.1-10. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal. v. IV, p. 106-111.
SCHLATTER, Adolf. Das Evangelium des Lukas; aus seinen Quellen erklärt. 2. Aufl. Stuttgart, 1960.