Prédica: Lucas 15.1-3,11-32
Autor: Augusto Ernesto Kunert
Data Litúrgica: 3º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 05/07/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
l – Reflexões exegéticas sobre a introdução à parábola : Lc 1 5 . l -3
A manutenção dos vv. 1-3 na perícope é importante. Temos exegetas que eliminam os versículos iniciais. Eu os considero necessários e, sempre que pregamos sobre uma das três parábolas do capítulo, deveríamos incluí-los no texto. Eles facilitam a compreensão do mesmo. Situam-nos no ambiente que motivou o posicionamento de Jesus. Apontam as pessoas e os problemas que originaram as tensões entre Jesus e seus oponentes. Definem as reações das pessoas que vão procurar a Jesus. Os versículos iniciais armam todo o palco da situação, caracterizam os diferentes personagens em cena e dizem dos motivos para a aceitação de uns e o choque de Jesus com outros. Mostram a identidade de Jesus com os que sofrem rejeição e marginalização, e apontam a problemática da controvérsia existente.
Alguns tópicos importantes:
1. Pessoas do povo procuram a Jesus. São os publicanos e pecadores. São pessoas desclassificadas na opinião das elites sacerdotais. Elas vivem em conflito com as leis da purificação em vigor. São pessoas declaradas impuras e nenhum puro pode ter relacionamento com tais elementos. Enquanto não satisfizerem as exigências legais, ficam preteridas e marginalizadas do convívio comunitário.
O que as pessoas querem de Jesus? O texto nos diz duas cousas: a) uns chegam-se a ele para ouvir a Jesus, b) os outros o criticam. Este fato nos possibilita dizer com clareza da importância do ouvir a palavra de Deus, já que vivemos uma realidade muito séria, quando, em muitas comunidades, menos de 50% dos membros participam da vida comunitária. Aceitação e negação ficam evidenciadas.
2. O verbo murmurar usado em relação aos fariseus e escribas, expressa crítica contra Jesus que recebe e come com os publicanos e com os pecadores. Mostra que este grupo de pessoas não aceita a mensagem de Jesus. Almeida traduz o verbo DIAGOGGYZEIN com murmurar e a Bíblia na Linguagem de Hoje prefere o verbo criticar. Voigt (p.315) diz que o verbo tem o sentido de acusação e de contrariedade, e que o seu uso no imperfeito, como é o caso no texto, indica uma situação contínua.
3. Com a sua atitude de crítica e de insatisfação, os escribas e os fariseus se aproximam da conduta de seus antepassados. É interessante ler os textos: Ex 15.22s (murmuravam contra a água amarga) e Ex 16.2s (o povo se queixava da falta de alimentos). A atitude dos antepassados provocou o retardamento da entrada do povo na terra prometida. Agora, a mesma atitude dos fariseus e escribas cega-os para a mensagem de Jesus; leva-os a um posicionamento contrário ao plano de salvação de Deus.
4. Este recebe pecadores e come com eles. A aceitação e o convívio com pessoas marcadas, estigmatizadas – o mesmo ocorre flagrantemente em nossa sociedade, sempre onde a relação de lei e evangelho é prejudicada — pelos puros e correios, pelos guardiães da lei e da verdade, indicam antecipação escatológica, própria do reino de Deus. Com a aceitação dessa gente, Jesus faz romper em nosso tempo uma situação característica do reino de Deus (cf. Lc 13.25-29; Lc 14.15-24). Grundmann (p.305) afirma que a atitude de Jesus se choca com as regras dos rabinos, a partir das quais nenhum homem se deve aproximar de pessoas ou coisas impuras, nem mesmo na intenção de aproximar pessoas da própria lei. A comunhão de mesa com tais pessoas é simplesmente impossível.
II – Reflexões exegéticas sobre o corpo do texto: Lc 15.11-32
A nossa parábola antecede duas outras. A primeira trata de um animal perdido e achado. A segunda, de uma moeda perdida e achada. Em ambas a alegria pelo achado — assim como em nosso texto que trata de pessoas perdidas e achadas – forma o ponto alto. Grundmann (p. 309) opina que a parábola, conforme o texto em questão, é tirada da vida real. Ela apresenta duas situações específicas. Uma está na volta do filho, evidenciando a aceitação dos publicanos e pecadores que chegam-se a Jesus para ouvi-lo. A outra, com a posição tomada pelo filho mais velho, caracteriza a conduta dos fariseus e escribas. O ponto alto do texto está na alegria, claramente expressa nos vv. 24 e 32. A alegria acontece com a volta do filho mais moço, mas é uma alegria que visa integrar, levar à participação os outros. É uma alegria que visa o relacionamento dos irmãos (veja o convite do pai ao filho mais velho, v.28).
Neste particular o pregador tem boa possibilidade de acentuar que a reconciliação é abrangente; que ela acontece individualmente, com cada uni de nós, mas nos compromete no relacionamento com os irmãos; que o funcionamento se caracteriza pela alegria, na aceitação recíproca.
Há exegetas que preferem separar a parábola em dois textos, alegando para tanto a existência de duas situações distintas; portanto, os vv. 11-24 deveriam ser tratados separadamente dos vv. 25-32. Já Bultmann (apud Grundmann p.310) afirma que não se trata aqui de continuação de alguma confabulação alegorizante; antes, na pessoa do filho mais velho surge a ima¬gem antagônica… e nela se esclarece o caráter paradoxo do perdão de Deus. Bultmann, portanto, é pela manutenção do conjunto dos vv. 11-32. Fuchs (p 154) formula: Jesus representa a vontade de Deus. Portanto, esclarece a vontade de Deus através de uma parábola. Jesus compreende-se a si próprio como testemunha do amor de Deus para com os pecadores, os rejeitados e marcados. A sua identificação com a comunhão com os pecadores (cf. 1-3) é tão profunda que significa a comunhão com o Deus da justiça e da misericórdia. Também Fuchs acentua a necessidade de manter-se a unidade do texto, vv. 11-32.
III – Anotações para a compreensão do texto
V. 11: O pai é agricultor. Tem dois filhos e muitos empregados. Todos têm o suficiente para o seu sustento. A administração da fazenda está com o pai.
V. 12: O filho mais moço requer, por antecipação, sua parte da herança. Conforme Grundmann, baseado em Dt 21.17, o primogênito recebe parte dobrada; a divisão dos bens é amparada por lei; o pai continua com o direito de administrar os bens deixados em partilha. O mais moço não visa uma regulamentação antecipada. Ele quer o uso e fruto da parte que lhe cabe. A atitude do filho quebra o relacionamento com a família c elimina direitos que o mesmo possa reivindicar mais tarde.
V. 13: Segundo Bauer, OUSIA tem o sentido de fortuna. O pai, por tanto, não dividiu a propriedade rural mas, a fim de não prejudicar a rentabilidade da fazenda, repartiu com o filho os lucros, os rendimentos da fazenda. O pai aceitou a proposta do filho. Não há recriminações. O moço se retira. Reúne antes a parte que lhe coube, deixa a casa paterna e vai a uma terra distante e, como registra o texto, passa a viver dissolutamente. Isto significa infidelidade para com o pai. O pai confiou. Deu-lhe a liberdade almejada. Exatamente o comportamento do filho mais moço, segundo Grundmann (p.312), corresponde à compreensão que Jesus tem do abuso do pecado, como desperdício da confiança nele depositada (veja Lc 7.4; 10.32;16.1;Mt 6.12 e 18.23s).
V. 14: Relata que ocorreu uma inflação. O jovem desperdiçou sua fortuna e sofreu necessidade, sofreu fome. Devemos cuidar muito ao atualizarmos o texto. Ao meu ver, seria um erro muito grave comparar a realidade social e econômica — a inflação galopante no Brasil, a fome a rondar e a penetrar na maioria dos lares brasileiros — que sofre o povo brasileiro como viver dissolutamente do filho mais moço e, consequentemente, colocar a realidade brasileira como fruto do esbanjamento, da falta de vontade para o trabalho e da ausência de senso econômico por parte do povo brasileiro. Antes, caso o pregador queira referir-se à situação apreensiva que sofremos, deve partir da conjuntura toda — nacional e internacional — como responsável pela inflação, a carência de alimentos, a estratificação de classes, a exploração do índio e a situação fundiária, vendo atrás de tudo isto a realidade orientadora do grande capital.
V.15: O moço está falido. Finalmente encontra a ocupação de apascentador de porcos. (Repete-se hoje o problema da falta de emprego.) Ocupação esta que fere sua procedência, seu status anterior; contraria frontalmente sua religião, fere a tora e a ordem de seu povo. Assim coloca-se sob a condenação da lei. Ele cai na mais profunda marginalização e entra no rol dos pecadores declarados impuros e rejeitados.
V. 16: A fome física não é o único problema do jovem. As palavras ninguém lhe dava nada caracterizam a situação de completo abandono, de solidão, o vazio se apoderou dele. Com a fome física lhe vem a fome pela comunhão, pelo convívio que abandonou, mas: ele não tem ninguém! O fruto KERATION servia de alimento para as camadas mais pobres do povo e os animais.
O pregador deve ser cauteloso para não cair no legalismo da vox populi que facilmente afirma: ele colheu o que semeou! Isto nada mais seria senão assumir a conduta dos fariseus e escribas (veja vv. 1-3) É óbvio que a culpa é fruto do pecado como desperdício de confiança; como negação do amor; como arrogância e falta de responsabilidade e mais tantas outras razões. A lei acusa. Esta é a sua função. Não devemos, porém, esquecer que Jesus trouxe o evangelho; que exatamente por trazer o evangelho, sentou-se à mesa com os pecadores e comeu com eles. Podemos, a partir do convite e do compartilhar à mesa com os pecadores, como Jesus o fez e viveu, deixar os pecadores atolados na lama? Deixar que morram na miséria, pois colhem o que semearam? Deixar que terminem na marginalização e se liquidem como seres humanos, esquecendo-nos de que fomos com eles criados para sermos imagem de Deus, de que também por eles o Filho de Deus vivo veio ao mundo, e de que exatamente com estes Jesus sentou-se à mesa e comeu?
V. 17: Então caiu em si. O moço refletiu a sua situação. Perguntou pelo porquê da sua situação. Com a reflexão abriu-se o caminho do reconhecimento da culpa. Abriu-se o caminho para o arrependimento. Trava-se a luta consigo mesmo. É sempre difícil e muito duro reconhecer a própria culpa. A nossa tendência sempre vai buscar motivos e justificativas fora de nossa pessoa, culpando os acontecimentos externos e outras pessoas. O moço sabe-se liquidado; sabe que terminou no fracasso o caminho que escolheu. Chegou ao fim.
V.18: Levantar-me-ei e irei. . . O jovem reconhece que com forças próprias não sairá mais da calamidade que sofre. Reconhece também que provocou e merece a situação que atravessa. Teve muitas chances. Recebeu a liberdade almejada. Jogou pela janela todas as oportunidades e caiu na miséria. Agora, somente o pai pode ajudá-lo. Sozinho está perdido, portanto, levantar-me-ei e irei…
V. 19: É a continuação da reflexão do jovem que reconhece sua situação real perante Deus, a lei, seu povo e sua família.
V.20: O filho volta sem pretensões. Aceita sua situação de marcado pela sociedade, submete-se em humildade, mas quer estar com o pai, e sair do estrangeiro para voltar para a casa paterna. Chegando, quer confessar ao pai sua culpa. Antes, porém, que o filho fale, o pai o abraça, beija e aceita. Acontece o perdão incondicional de que é capaz somente o amor. É o paradoxo do perdão de Deus que se manifesta na figura do pai. Nesta altura os escribas e fariseus ficam perplexos. A conduta do pai é incomum e contrária a toda compreensão humana de justiça.
Como as cousas acontecem em nossa sociedade? Nas nossas comunidades? O membro, assim chamado pecador, fica marcado e sofre contínua rejeição ou é integrado na comunhão?
Vv.21-23: O filho, sentindo a aceitação total, explode numa confissão de pecados. O pai não examina a confissão do filho. Algo mais importante enche o seu coração. A alegria pela volta do filho se apodera de seus sentimentos. Manda preparar a festa e dela todos devem participar. Todos devem estar felizes com a volta do filho, do companheiro, do irmão. O anel – símbolo da aliança entre pessoas — expressa que o jovem é aceito como membro da comunhão. As sandálias – os escravos andavam descalços – apontam a estima da pessoa que comunga com a família.
V.24: Este versículo, assim como o v. 32, representa o ponto alto da parábola. O pai explode de alegria. O filho que estava morto reviveu, o perdido foi achado. O filho que rompeu a comunhão, denunciou a filiação, cortou os laços familiares, afastou-se de seu povo – esse voltou para casa. Tal fato é motivo de festa,-é a razão da alegria, aconteceu vida nova, nasceu nova comunhão. Perdão da culpa representa não só eliminação da culpa/dívida, mas, essencialmente, o novo relacionamento em vivência, em comunhão.
Vv.25-27: Os versículos registram a chegada do filho mais velho. Ele retorna à casa depois de atender suas obrigações no campo, e recebe um relatório dos acontecimentos. O relatório lhe é dado por um empregado e registra unicamente os acontecimentos, sem entrar no mérito da questão.
Vv.28-30: Vem a reação do filho mais velho. Fica indignado e não aceita o procedimento do pai. Não quer receber o irmão. Rejeita participar da festa e dividir a alegria que contagiou todo mundo. Com a sua atitude corre o perigo de excluir-se da comunhão, da família. O pai — novamente o pai — entra em ação, agora em favor do filho mais velho. O pai procura conciliá-lo, fazendo-o reconhecer que em sua atitude não há discriminação nem rejeição; não há o uso de dois pesos e duas medidas como o filho o está interpretando. A conduta do pai é a mesma. O pai quer os filhos na casa paterna, em sua comunhão, no seu convívio, quer que a alegria seja a expressão da vivência em comunhão. Exatamente neste tocante a manutenção dos vv. 1-3 torna-se importante. Há íntimo relacionamento entre 1-3 e 11-32, destacando-se uma correspondência entre a atitude dos fariseus e escribas em seu murmurar e o posicionamento do filho mais velho. Poderíamos até dizer que o filho mais velho representa a maneira de pensar e de reagir dos fariseus e escribas (Lc 18.19; Fp3.6; Gl 1.13ss).
V.31: O pai não arma sua defesa. Chama-o de TEKNON = filho, lembrando-o de sua filiação, de sua vivência permanente em comunhão com o pai; da posse e do uso da propriedade. O pai quer ajudar o filho a superar a desconfiança; quer que vença sua contrariedade; quer convencê-lo de que a volta de seu irmão jamais vai prejudicá-lo; quer levá-lo a alegrar-se pela nova comunhão que se estabeleceu com a volta do irmão que estava perdido; quer evitar que agora o outro filho venha a perder-se.
V.32: A alegria pela volta do filho — encontram-se na mesma motivação os w. 24 e 32 – leva o pai, económico e duro, a ser gastador e misericordioso. Em sua alegria contagiante quer que o filho mais velho participe da alegria; quer que o convívio entre os irmãos se restabeleça e seja marcado pela alegria.
A parábola não nos fala como o filho mais velho reagiu. O filho mais velho silenciou. E, diante dos fariseus e escribas que murmuravam contra Jesus (veja 15,1-3), a resposta ficou aberta. Os ouvintes devem dá-la. Assim, também cada um de nós é questionado. Devemos, a partir do evangelho da salvação em Jesus Cristo, dar a resposta com o nosso testemunho em vivência e ação. A parábola coloca-nos diante de Deus e chama-nos ao arrependimento, seja como filho mais novo seja como filho mais velho.
IV — Contribuições visando a prédica
Surkau (p.317) adverte que a prédica visa a fé e pretende chamar o ouvinte à fé; oferecer-lhe a fé, não determinando imposições e sim, anunciando-lhe a libertação dos poderes que o prendem e o escravizam. Isto acontece, é óbvio, na medida da atuação do Espírito Santo e no anúncio da promessa de que a fé nunca depende da vontade do homem, mas é dádiva da boa vontade de Deus.
1. A prédica deve evitar uma interpretação moralista-legalista do texto. Uma pregação nesse sentido perderia a mensagem central que respira e exala a misericórdia de Deus, a aceitação incondicional do homem, mesmo que seja incompreensível para o senso de justiça humana. Na aceitação do filho mais moço, representando os pecadores, está ao mesmo tempo o convite aos que se consideram melhores, apontam seus méritos e direitos, representados pelo filho mais velho. Todos os homens necessitam da misericórdia de Deus. E Jesus a oferece indiscriminadamente.
2. A parábola pertence aos textos mais conhecidos da Bíblia. Faz parte de todos os currículos do ensino evangélico, da doutrina e escola dominical. Em si a comunidade não vai receber o texto com expecta-tiva. Daí, eu não falaria na parábola do filho pródigo pelas seguintes razões:
a) O título é demasiadamente batido.
b) A parábola trata da situação de dois filhos.
c) A intitulação pródigo é unilateral. Fala somente do filho esbanjador, gastador em excesso. Na verdade ambos os filhos são perdidos. Um o é por seus motivos e o outro por outros motivos. Seria mais correio dizer a parábola dos dois filhos perdidos.
3. Assim como nas duas anteriores, também nesta parábola Jesus assinala a motivação que o levou a compartilhar a mesa — expressão do convívio, da aceitação e da vida em comunhão — com os pecadores: O que estava morto reviveu; o que estava perdido foi achado. É a aceitação incondicional do pecador arrependido. Um pensamento importante é o reconhecimento da culpa que induz ao arrependimento e leva o filho ao levantar-me-ei e irei…
4. A parábola parte de uma situação histórica. Ela é tirada da vida real da realidade religiosa, jurídica e social existente em Israel. Não parte de alguma hipótese, mas da vivência no dia a dia do povo. Ela é, mesmo que tenhamos hoje outras regulamentações jurídicas, atualíssima em muitos aspectos, seja na conduta do filho mais novo, seja na atitude do filho mais velho, seja na oferta da reconciliação sob a cruz de Cristo. A parábola não aceita um tratamento neutro. Ela exige o nosso posicionamento, como pregadores e como ouvintes. Ela nos questiona. Põe o espelho diante de nós e nos pergunta: como as cousas estão contigo, onde tu estás situado?
5. Para os dois filhos vale o que é meu é teu (v.31). O filho mais novo quer sua independência. Quer ser livre dos laços que o prendem. Quer ser dono de seu nariz e decidir sobre o seu futuro. Para consegui-lo, rompe com a família, tradição, costumes e assume uma caminhada própria, indo para uma terra distante. Sem dúvida, Deus quer a nossa libertação para que vivamos livres de tanta cousa que nos escraviza. O anseio por liberdade do filho mais novo não é o problema. A parábola evidencia que o pai concorda com o desejo do filho. Reparte com ele os lucros da fazenda e o deixa seguir viagem. O problema surge com o mau uso da liberdade, com o abuso da liberdade recebida. Ele recebeu a liberdade em confiança, mas desperdiçou-a. Jogou fora a confiança que o pai nele depositou. Toda desgraça posterior tem o seu germe destruidor no desperdício, exatamente, da confiança, no abuso da liberdade, na compreensão errônea de liberdade. Liberdade não se caracteriza como esbanjamento, nem como fazer o que bem entendo, mas se caracteriza no serviço em favor dos outros. Não podemos confundir liberdade com egoísmo, desrespeito, poder em causa própria, manipulação de outras pessoas. A liberdade cristã é desprendimento, é o ficar livre de condicionamentos que amarram, desgastam, inibem, cortam o relacionamento. Liberdade cristã acontece no saber-se amado e se concretiza na resposta obediente da fé de quem, sabendo-se amado e reconciliado por Deus, assume o serviço em favor dos irmãos. Deus não nos liberta para darmos as costas a tudo e a todos, para sermos opressores e discriminadores dos outros. Ele nos liberta do pecado e da culpa para que possamos, renovados em nossa vida interior, servir com alegria, servir com amor e com responsabilidade. Libertação, portanto, é o comprometimento com o amor.
6. Fome e miséria são ocorrências, são situações vividas pelo moço. A causa que o leva à reflexão e ao arrependimento é mais profunda. Ela está na experiência anteriormente havida na comunhão com o pai. A semente lançada levou muito tempo para germinar. A palavra recebida, sua vivência na comunhão da família, na comunhão do povo da aliança, o fato de que Deus o chamou pelo seu nome, fizeram com que o moço caísse em si.
7. A maneira com que o pai recebeu o filho mostra que tinha continuado ligado intimamente a ele. Não o abandonou. Esperou por cie. Isto se comprova no fato de o pai ter reconhecido o filho, à distância, ao ver o esmoleiro, vestido com trapos, que se aproximava da casa. A reação do pai foi a imensa alegria pela volta do filho. A parábola nos mostra que o pai permaneceu sendo o agente em todas as situações. Ele reparte a herança; ele dá liberdade; deixa o filho seguir o seu caminho; vai ao encontro do filho; recebe-o com imensa alegria; perdoa e reintegra-o na comunhão de vida da família.
O pai tem o mesmo procedimento com o filho mais velho. Não há discriminação. A situação é outra, mas a abertura, a disposição e a aceitação do pai são as mesmas.
8. O filho mais velho teve a sua oportunidade. Ficou em casa. Desfrutou do convívio contínuo com o pai. Mesmo assim ficou perplexo com a atitude de perdão que o pai assume para com o irmão. Sentiu-se prejudicado, diminuído e discriminado. Finalmente, põe tudo para fora: fui fiel, trabalhei incansavelmente, fui obediente, fiquei em casa, o que aconteceu?, não tive o menor privilégio, nenhuma vantagem, agora vem este esbanjador de volta e é recebido com festa.
O mesmo amor paterno visa conquistar o filho mais velho. Também ele pretende obter a liberdade, mas com méritos, por esforço, como se a libertação fosse um direito de filho e não a oferta do amor paterno. O amor do pai se identifica com o procedimento de Jesus que recebe pecadores e come com eles. Pelo pecador que se arrepende haverá alegria. O mesmo amor, para que haja a alegria, visa conquistar o filho mais velho. O pai quer que haja alegria na comunhão de vida dos irmãos. O que é do pai também é dos filhos. O amor não discrimina, não separa, não dispersa, mas reúne. Por isso, a explosão de alegria pelo perdido que foi achado, pelo morto que reviveu.
Sugestão:
Considero muito boa a colocação de Warth (p.303), como sugestão para o tema da prédica: O amor de Deus, revelado na palavra e na ação de Jesus, não desiste de ninguém. Para ele, o arrependimento com a volta de quem estava perdido, é motivo de festa, de alegria. Ele procura ganhar também quem viveu até agora sem alegria, sentindo-se empregado na casa paterna.
V – Bibliografia
– BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament. 3. ed. Berlin, 1937.
– EICHHOLZ, G. Meditação sobre Lucas 15.11-32. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol.3. Wuppertal, 1964.
– FUCHS, E. Zur Frage nach dem historischen Jesus. Tübingen, 1960.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. 8.ed. Berlin, 1978.
– SURKAU, H. W. Meditação sobre Lucas 15.11-32. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 64. Caderno 5. Göttingen, 1975.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 15.1-7(8-10). In: Der schmale Weg. Göttingen, 1978.
– WARTH, W. Meditação sobre Lucas 15.11-32. In: Calwer Predigthilfen. Vol 7. Stuttgart, 1968.