O elogio da esperteza e da precaução
Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 16.1-13
Leituras: Amós 8.4-7 e 1 Timóteo 2.1-7
Autor: Roberto Zwetsch
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/09/2013
1. Introdução
A presença da parábola do administrador precavido no Evangelho de Lucas é uma importante razão para compreendermos que a vivência da fé cristã não se compara a qualquer falso moralismo. É muito interessante observar nas diferentes traduções e comentários do Evangelho de Lucas a maneira como se
apresenta essa parábola do administrador. Vejamos:
Bíblia de Almeida: A parábola do administrador infiel;
Bíblia do Peregrino: Parábola do administrador;
Bíblia de Jerusalém: O administrador prudente;
Comentário Bíblico Africano: Faça amigos com sua riqueza.
Essa breve consulta já dá alguma indicação como o texto tem sido interpretado nas igrejas cristãs e como é prudente evitar seguir os subtítulos dos comentaristas sem uma leitura crítica e própria dos textos para este domingo. Nada contra que se coloquem subtítulos nas perícopes. Mas cabem à pregadora ou ao pregador, vigilantes em sua tarefa de anúncio do evangelho, a liberdade e a responsabilidade pela interpretação da mensagem, sem se deixar determinar por leituras preconcebidas.
Dito isso, é muito bom que tenhamos no evangelho um texto como esse que nos exige mais do que outros para bem interpretá-lo. O Comentário Bíblico Africano começa suas observações afirmando que muitos comentaristas consideram esse relato uma das parábolas mais difíceis, pois à primeira vista ela elogia a incompetência, a desonestidade e a corrupção. No entanto, um estudo mais apurado adverte-nos de que se trata antes de uma narrativa que elogia a prudência e a esperteza. É o que vou tentar expor no que segue em preparação para a prédica deste domingo.
Em três volumes anteriores de Proclamar Libertação, essa perícope foi estudada: nos volumes 4 (Martin N. Dreher), 20 (Christoph Schneider-Harpprecht) e 26 (Carlos Luiz Ulrich). Quem puder, sugiro que dê uma olhada naqueles auxílios. Traduzem eficazmente as várias possibilidades de interpretação dessa parábola e sua aplicação já na comunidade de Lucas e, na atualidade, nas comunidades cristãs contemporâneas. Schneider-Harpprecht escreve que essa parábola, no fundo, ensina o que significa viver da graça. O texto é exclusivo de Lucas, dirige-se aos discípulos, sinal de que se trata de um ensaio para a práxis da comunidade, principalmente diante de perguntas que dizem respeito à ética das relações humanas, ao uso do dinheiro, mas também para além dele, ao questionar a visão moralista que age apenas em função de culpa e perdão.
2. Exegese
O texto de Lucas 16.1-13 encontra-se na segunda parte do evangelho, no complexo que vai de 9.51 a 19.28, cujo tema é a resolução de Jesus de ir a Jerusalém. Storniolo aponta que essa decisão de Jesus significa ir da periferia para o centro, isto é, da Galileia dos gentios para a capital Jerusalém, onde se encontram o templo, a elite de Israel e o poder romano. Ali acontecerão o confronto definitivo, a morte na cruz e a surpreendente mensagem da ressurreição, que mudará a história do mundo.
Podemos dividir o texto em duas partes:
a) V. 1-7 – Jesus narra aos discípulos uma parábola sobre um homem rico que tinha um administrador. Esse foi denunciado (não se diz por quem) ao patrão por estar defraudando seus bens. O patrão exige prestação de contas, anunciando que vai despedi-lo. O administrador, então, dá-se conta da enrascada em que se meteu e pensa como pode prevenir o pior para o futuro. E age, pois pensa que não conseguiria trabalhar como agricultor nem admite mendigar para sobreviver. Então chama os devedores do patrão e faz um acordo com eles. Nesse momento da parábola, uma explicação ajuda a entendê-la melhor. Segundo as regras vigentes na época, o administrador tinha o direito de cobrar juros pelo que adiantava aos outros da fortuna do patrão. Uma parte desses juros ele entregava, e a outra, possivelmente a maior, ficava com ele. O que ocorreu nesse caso é que, diante da fatalidade do desemprego motivado por sua ganância em relação ao que ganhava, ele decidiu perder os anéis para não perder os dedos. Chamando os credores do patrão, diminuiu a dívida deles, assumindo perder o seu ganho com vistas a um apoio deles no futuro. Aí está sua esperteza: uma atitude precavida. Com a riqueza do outro ele procurou fazer amigos.
b) V. 8-13 – Aqui temos a parte parenética da parábola e várias conclusões exortativas. Primeiro encontramos o elogio do patrão para com a atitude do seu administrador, porque agira com presteza e inteligência, demonstrando assim que sabia defender-se numa situação adversa. O comentário de Jesus é cortante: os filhos do mundo são mais hábeis do que os filhos da luz. Aqui se pode lembrar outro dito de Jesus em Mateus 10.16: “Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”. O que segue é ainda mais intrigante, pois Jesus exorta a fazer amigos das riquezas de origem iníqua, de tal forma que, quando essas faltarem, os amigos recebam-nos de bom grado. Do v. 10 ao v. 13, o tema gira em torno de como se procede com a riqueza e o dinheiro. Há uma inflexão no tema proposto, pois o ensino encaminha-se para a fidelidade a Deus ou ao dinheiro, esse representando aqui o conjunto da riqueza. Quem é fiel no pouco é fiel no muito. Quem é injusto no pouco também é injusto no muito. Fidelidade mostra-se desde a vivência cotidiana até os compromissos maiores e públicos. O que significa verdadeira fidelidade no sistema econômico atual, que cobra juros escorchantes de todos nós, mas principalmente dos mais pobres? Um bom tema para debate seria verificar os juros que cada pessoa paga para usar cartões de crédito. Outro seria os impostos que todas as pessoas, independente da classe social a que pertençam, pagam cotidianamente no Brasil. A exortação chama a atenção para a maneira como agimos com aquilo que nos foi dado: Se não somos capazes de ser fiéis na aplicação da riqueza de origem injusta, quem nos confiará a verdadeira riqueza, a vida? Se não somos fiéis na aplicação da riqueza alheia, a graça – dom de Deus –, como Deus nos confiará o que é nosso e que recebemos de graça: a salvação? Por fi m, o dito que conclui a perícope não deixa dúvidas: não podemos servir a dois senhores. Há que escolher a quem amar e servir: a Deus ou às riquezas.
O pesquisador norueguês H. Moxnes fez um estudo sobre o conflito social e a economia na Palestina no tempo descrito pelo Evangelho de Lucas. Ele traz informações importantes para entender esse texto e outros desse evangelho. É sabido que Lucas dá um destaque especial aos pobres e enfatiza a crítica de Jesus aos ricos e poderosos (Lc 1.46ss; 6.20-26; 16.19-31). Mas é importante saber que os contrastes entre riqueza e pobreza no evangelho têm como pano de fundo uma sociedade camponesa em que havia pouco dinheiro e na qual as trocas davam-se normalmente de acordo com um sistema camponês de retribuição e reciprocidade. Claro que, mesmo nessa sociedade, já havia a aplicação de normas econômicas mais sofisticadas, como a cobrança de juros, por exemplo. Nessa parábola, temos um bom exemplo dessa prática, que também encontramos em outros textos. A riqueza, nas aldeias mencionadas nas parábolas de Lucas, contudo, vem da terra, e os ricos são proprietários de terras, pomares e rebanhos. Esses são poucos e, por vezes, vivem distantes de suas propriedades. Por isso podem arrendar terras, pomares e vinhedos, que ficam sob as ordens de administradores que empregam outros camponeses nesses trabalhos, geralmente sem terra.
Quanto ao relacionamento entre as pessoas, Moxnes informa que esse normalmente ocorre entre parceiros desiguais. Por isso, seguidamente nos relatos do evangelho, encontramos personagens como “credor”, “devedor”, “senhor”, “senhorio”, “jornaleiro”. Trata-se de uma sociedade de gente muito pobre, em que havia muitos escravos nas lides da lavoura ou da casa. Era comum observar um relacionamento distante entre senhorio e servos; nesses casos, aparece como figura importante o administrador (oikonomos, ecônomo também em português). Ele é uma pessoa intermediária e responde perante o senhor por seus negócios com outros servos. O administrador dessa parábola era provavelmente um agente livre, que agia independentemente em nome do proprietário. Esse era uma pessoa ausente, mas rica e poderosa e que tinha obrigações com seus trabalhadores-clientes, entre as quais conceder empréstimos em anos ruins. O administrador podia negociar com os arrendatários os valores, de modo a ganhar sua gratidão e alguma compensação sob a forma de retribuição (16.4-8).
Especificamente sobre essa parábola, a explicação mais razoável que se tem é que o administrador reduziu as dívidas, abrindo mão de sua comissão ou dos juros sobre o principal da dívida, que o arrendatário havia contraído com o senhor da terra. Os juros cobrados, por vezes, poderiam ser exorbitantes, de tal modo que não era impossível chegar até cem por cento (16.6). O administrador possivelmente foi pego numa prática iníqua, que o senhor julgou abusiva. Por isso foi denunciado e perdeu o emprego. Mas a história ganhou outros contornos pela forma como o administrador agiu após a má notícia que recebeu. A sociedade camponesa tem como característica as relações de clientela. O administrador sabia disso e agiu segundo esse padrão de relacionamento. Para se proteger do pior, ele fez uma aliança de favores com os arrendatários devedores de seu senhor, reduzindo suas dívidas, fazendo com que esses ficassem em dívida para com ele. Podia assim esperar por retribuição da parte deles quando fosse demitido do cargo. Valeu aqui a relação de reciprocidade com esperança de retribuições futuras, típicas de uma economia camponesa antiga.
Moxnes explica ainda que, ao agir dessa maneira, o administrador transferiu a sua solidariedade do rico senhor para o grupo de devedores, ainda que por motivos egoístas (16.4; 16.8). Essa sua prudência, no entanto, tornou-se exemplo para os filhos da luz. E isso foi elogiado pelo patrão e por Jesus. Em sua recomendação, Jesus é enfático: “Eu vos recomendo: Das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando essas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos”. A comparação aqui dá um salto, pois o verbo receber (dexontai) é empregado na forma passiva e refere-se a um ato de Deus. Em Lucas 6.32-36, Jesus chama a atenção de que pecadores também são capazes de fazer o bem, dar e emprestar a seus amigos. Os seguidores de Jesus, porém, são desafiados a ir mais longe: a amar os inimigos, a fazer o bem e emprestar sem esperar recompensa. Essas atitudes, sim, terão grande recompensa por parte de Deus, e por isso essas pessoas serão chamadas filhos e filhas do Altíssimo. Usar o dinheiro da iniquidade nesses textos significa dar a quem necessita, é solidarizar-se com quem não pode retribuir, é agir sem esperar retorno. É andar a segunda milha, é realizar o extraordinário, é superar a regra e a rotina. É na base dessas ações extraordinárias que surge o que Lucas entende ser o “fazer amigos”. A amizade aqui é a superação da relação de clientela ou da reciprocidade equilibrada ou generalizada. Amizade aqui se baseia na igualdade entre as pessoas (14.10,12s; 15.6, 9, 29). Essa relação de amizade aponta para a solidariedade, a partilha, algo totalmente diferente das relações de exploração e desigualdade do sistema senhor/ escravo ou senhor/arrendatários, meeiros, trabalhadores. Fazer amigos com o “dinheiro da iniquidade” aqui é o oposto da escravidão e diz respeito a uma relação libertadora.
Uma última anotação quando ao conceito dinheiro, como aparece no v. 13. Por que Lucas pressupõe um relacionamento absolutamente hostil entre Deus e o dinheiro? Moxnes informa que esse versículo apresenta maior semelhança com o dualismo apocalíptico do que com o dualismo ético dos mestres gregos, o que também se aplica a Paulo, quando esse diz que não é escravo nem de Deus nem do pecado (Rm 6.19-22). Em Paulo, a liberdade do pecado que se dá pela fé mostra-se na prática da justiça para a santificação. Mas onde Paulo fala do pecado que escraviza, Lucas fala em “dinheiro”, e esse conceito exprime outra forma de relação social, por meio da qual o poder envolvido na posse de “bens” é personificado como uma força sufi cientemente poderosa para disputar com Deus o domínio do mundo. Importa aqui perceber que, para Lucas, que se fundamenta aqui no judaísmo e na profecia do Antigo Testamento, o dinheiro não era moralmente neutro. Ele é “dinheiro da iniquidade”. As duas parábolas do capítulo 16 mencionam estes aspectos: riqueza iníqua, gastos excessivos ou consumo ostensivo, desprezo pelo semelhante. Ricos, riqueza, ostentação e desprezo ou indiferença pelo semelhante são inseparáveis do “dinheiro da iniquidade”. Ora, se vivemos num mundo movido pelo dinheiro, todos nós vivemos implicados em relações de iniquidade. O que nos pode salvar dessa determinação? Somente relações de justiça e redistribuição livre e gratuita sem expectativa de retorno. Deus ou as riquezas colocam em oposição dois sistemas econômicos antagônicos e, talvez se possa dizer, excludentes: são modos diferentes de estruturar os relacionamentos interpessoais e sociais. No texto, bem ao estilo da visão apocalíptica, são alternativas absolutas.
Nesse sentido, é bem interessante notar que diante das crises recorrentes do sistema capitalista mundial, sobretudo pelas distorções da economia monetária financeira promovida pelos grandes bancos e corporações (de 2008 até os dias atuais), economistas de renome vêm afirmando que somente um retorno da lei, da ética e da justiça poderá trazer uma “correção de fundo” ao capitalismo desenfreado e corrupto que vigora no mundo atual e que vem comprometendo a vida de milhões de pessoas em muitos países (Grécia, Espanha, Portugal, Itália, Irlanda) (cf. entrevista com Eduardo Aninat, economista chileno, Zero Hora – Dinheiro, 03/06/2012, p. 6).
3. Caminhando para a prédica
Christoph Schneider-Harpprecht resume a sua apreciação do texto de Lucas com os seguintes pontos:
a – A verdadeira vida (vida eterna) não depende do dinheiro e das coisas que acumulamos com nosso trabalho e esforço.
b – O dinheiro é um dono que escraviza a pessoa. A relação com as riquezas é uma relação de coração e de amor.
c – Para a pessoa que segue a Cristo, servir ao dinheiro é idolatria. Ser discípulo ou discípula de Jesus e buscar riquezas são coisas excludentes.
d – Para demonstrar fidelidade a Jesus, seus seguidores são desafiados a dar todos os seus bens aos pobres (Lc 18.18ss).
e – Dar aos pobres ou solidarizar-se com eles serve para ganhar amigos para a eternidade (Lc 16.9).
Vejo duas possibilidades para uma prédica a partir dessa perícope. Ambas são importantes e válidas, não obstante o grau de dificuldade que apresentam ao pregador ou pregadora. Essa parábola e sua aplicação exigem de quem prega aquilo que define um teólogo ou teóloga como luterano, isto é, a capacidade para discernir claramente entre lei e evangelho. Um caminho fácil seria fazer uma prédica moralista, condenando moralmente quem vive, trabalha e constrói seu futuro segundo as regras do sistema que atualmente domina o mundo: o sistema capitalista, o sistema baseado no dinheiro e no lucro. Uma vez que não existe outro sistema atualmente, a pergunta é como viver nele sem tornar-se servo dele, isto é, escravo do dinheiro e da corrida do lucro acima de tudo. Como servir a Deus hoje sem sucumbir ao canto de sereia do dinheiro, da fama e da ostentação?
Descartado o caminho fácil (a interpretação moralista), proponho que meditemos sobre a atitude do administrador, elogiada por Jesus, e que de alguma forma lhe deu a chance de fazer amigos “das riquezas de origem iníqua”. No cabeçalho, coloquei um título provocativo: o elogio da esperteza e da precaução. Vejam que Lucas não tem qualquer ilusão a respeito do sistema em que vigora a lei do dinheiro. Dinheiro e relações de troca, baseadas no lucro, sempre implicam iniquidade, um certo nível de exploração. Disso ninguém escapa, até o mais piedoso dos cristãos. No Brasil, existe aquilo que ficou conhecido como lei de Gerson, aquela que ensina as pessoas a tirar vantagem em tudo. Trata-se de uma visão de vida profundamente egocêntrica e avessa a gestos de solidariedade, como propugnados pelo evangelho de Jesus. Não é o sentido que gostaria de dar aqui ao termo esperteza. Penso mais naquele sentido do dito de Jesus em Mateus 16: trata-se de ser espertos como as serpentes e simples como as pombas. Esperteza aqui teria o sentido de não ser ingênuo. Neste mundo de Deus, a ingenuidade pode comprometer vidas, e isso não é admissível para ninguém, ainda mais para quem se diz seguidor do Deus vivo, do evangelho da vida eterna. A mudança de atitude do administrador também pode ser compreendida como um gesto de arrependimento pela forma como se valeu do poder a ele conferido sobre os arrendatários. Arrependimento aqui significa reconhecimento e mudança de atitude. Não basta a mera confissão do mal feito. É preciso chegar ao gesto que transforma a vida. É nisso que se revela a metanoia ou conversão de que fala Jesus diante da aproximação do reino de Deus (Mc 1.15; Lc 4.18s).
A esperteza, de acordo com essa perícope, parece que tem duas dimensões: a primeira remete a como preservar a vida em períodos maus, de desgraça e falência. Fazer amigos com o que se ganha nos períodos bons pode significar a salvação lá adiante, quando tudo pode ir de mal a pior. Mas uma segunda dimensão pode ser percebida nas entrelinhas: quem é fiel no pouco aprende a ser fiel no muito; ao contrário, quem é injusto no pouco será injusto no muito. O que isso quer dizer no contexto dessa perícope? Modestamente, vejo o seguinte: se não cabe ingenuidade na maneira de viver no mundo capitalista que hoje domina e controla nossas vidas, há, porém, brechas nele que nos possibilitam viver relações novas de justiça e solidariedade. Nenhum sistema é absoluto, muito menos o capitalista. Entretanto, o novo mundo com o qual sonhamos e que é possível, conforme o lema do Fórum Social Mundial, não nascerá por decreto nem numa revolução messiânica caindo do céu. Ele virá – mais dia menos dia, e talvez nós não o venhamos a conhecer – a partir de dentro do ventre da baleia, das contradições que abundam no sistema atual e que vão preparando sua derrota. É nesse sentido que imagino viver com astúcia e precaução a vida que nos cabe neste momento histórico. De acordo com o evangelho de Jesus, ações de justiça e solidariedade fazem, sim, diferença numa sociedade injusta e opressora. Ações de fidelidade ao que é bom para o outro e, no limite, para o inimigo são como janelas abertas para um mundo onde o sol – de fato – nascerá para todas as pessoas, sem distinção. Se ninguém pode servir a dois senhores porque amará mais a um do que a outro, ou seja, se não podemos servir a Deus e as riquezas ou, contemporaneamente, servir a Deus e seu evangelho ou ao sistema do dinheiro, é necessário refletir sobre o que isso significa numa sociedade cuja mola mestra é “ganhar dinheiro” e viver com o que ele proporciona ou permite.
O economista Amartya Sen, indiano radicado na Inglaterra, Nobel de Economia em 1998, recentemente esteve no Brasil e afirmou com todas as letras que sem justiça nas relações internacionais o sistema capitalista não tem saída. O liberalismo já mostrou que não resolve os problemas humanos; ao contrário, só agrava ainda mais o beco sem saída em que nos encontramos na crise mundial. Ele afirma que vivemos num mundo injusto, marcado por fome, violência, guerra, morte prematura de milhões de pessoas, crise ambiental. Crítico do conceito liberal de justiça (John Rawls, 1971), o professor Sen mostra em seu livro (Uma ideia de justiça, 2009) que na vida real as pessoas lutam contra as injustiças e as circunstâncias de cada um fazem parte desse desafio cotidiano. A justiça pela qual vale a pena lutar é a justiça prática. Por isso a justiça tem a ver com a maneira como vivemos, ela é uma construção diária. Importa menos o aparato formal das instituições do que aquilo que sentimos (e fazemos, digo eu) no cotidiano, pois é nesse poder de discernimento e cuidado com o ‘outro’ que se encontra a chave para sociedades menos injustas (Zero Hora¸25/04/2012) Assim o pensamento de Amartya Sen.
Ora, aí entra a meu ver o evangelho, justamente porque ele nos dá o poder de discernimento de que fala o professor Sen. Reparemos que discernir é a tarefa primeira do Espírito Santo na vida cristã. É o mesmo Espírito que nos faz crer em Jesus como o Cristo de Deus e que nos constrange ao cuidado com o outro ou ao amor sem medida (Rm 13.8; 1 Pe 4.8). Aprender a fidelidade nas relações cotidianas é o melhor caminho para ser fiéis nas relações complexas e normalmente injustas do mundo atual. A justiça que buscamos e pela qual nos batemos como pessoas de fé e como comunidades cristãs não pode ser uma justiça ideal ou idealizada. Ela precisa passar pelo cotidiano, ali onde nos relacionamos com familiares, vizinhos, colegas de trabalho, cidadãos da cidade e até com os governantes. É interessante a convergência entre essa visão de justiça que passa pelo cuidado com o outro e a ideia de fazer amigos com o “dinheiro da iniquidade”. Vale aprofundar essa linha de pensamento para colocá-la em prática desde a vida pessoal, passando pelas relações comunitárias até chegar a uma proposta de sociedade que seja “menos injusta” ou “menos iníqua”. Nesse sentido, esperteza e precaução andam juntas com a busca pela justiça. Servir a Deus num mundo injusto pode levar a crises e conflitos, mas de Jesus aprendemos que quem é fiel no pouco será fiel no muito. Quem souber fazer amigos com o dinheiro de origem iníqua ou aprender a aplicar bem a riqueza alheia será recebido nos tabernáculos eternos e contará com a confiança divina para administrar a verdadeira riqueza, aquela pela qual vale a pena empenhar a vida.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
No início do culto, a pessoa celebrante poderia incluir na confissão de pecados a dificuldade que temos em nos abrir para o outro, para exercer o cuidado com o outro, independente de sua situação particular. Também é recomendável trazer a situação da comunidade e confessar que nem sempre ela segue o ensino do evangelho e por isso precisa se arrepender, mudar de vida, deixando-se inspirar pelo espírito de Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos.
Hinos:
A escolha dos hinos sempre é um bom exercício para ampliar o ensino e a mensagem do evangelho do dia. Sugiro o hino 336 (HPD 2) para entrada. Esse hino, com letra do nosso colega Claudio Kupka e música de João W. Dürr, é muito feliz ao vincular a comunidade reunida em culto com as pessoas que sofrem nas ruas, com os pequenos de quem poucos se lembram, com a criação que vem sendo sistematicamente destruída pelo sistema capitalista (lembrar a Conferência da ONU Rio + 20 sobre a crise ecológica internacional, na qual um significativo grupo de jovens e lideranças da IECLB se fez presente, como sinal de que a igreja está consciente do seu papel na transformação deste mundo, começando pelo cuidado com a criação). O hino 336 termina com um desafio: se ouvimos o evangelho com atenção, não nos deixaremos iludir pela propaganda. Pelo contrário, a palavra de Deus desafia-nos a desacomodar da vida tranquila para chegar até os aflitos deste mundo conturbado. Outros hinos possíveis: o Kyrie do colega Rodolfo Gaede: Pelas dores deste mundo (buscar na internet); o hino de Lutero (HPD 1, 97); por fi m, o hino 350 (HPD 2) para o término do culto, de tal modo que saiamos para a missão de lutar por justiça restauradora na sociedade, fortalecidos pela graça do Senhor Jesus e pelo amor do Pai.
Pensamento:
“Quero ir com aquele/a a quem amo. Não quero calcular o que custa. Não quero refletir se é bom. Não quero saber se ele/a me ama. Quero ir com aquele/a a quem amo” (Bertolt Brecht).
Bênção:
“A bênção do Deus de Sara, Abraão e Agar, a bênção do filho nascido de Maria, a bênção do Espírito Santo de amor, que cuida com carinho qual mãe cuida da gente, esteja sobre todos nós. Amém!”
Bibliografia
ADEYEMO, Tokunboh (Ed.). Comentário Bíblico Africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
MOSCONI, Luis. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas. Para cristãos e cristãs rumo ao novo milênio. São Paulo: Loyola, 1997.
MOXNES, Halvor. A economia do reino. Conflito social e relações econômicas no Evangelho de Lucas. Trad. Thereza Cristina Stummer. São Paulo: Paulus, 1995.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas. Os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulinas, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).