Prédica: Lucas 16.19-31
Leituras: Amós 6.1-7 e 1 Timóteo 6.6-16
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:15/10/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
Ai de vós, ricos!
Ai de vós, os saciados!
Ai de vós, que rides!
Ai de vós, que estais seguros de vós mesmos! – Lucas.
1. Introdução
Não é implicância com os ricos. Não é marcação para cima dos ricos e da riqueza. É apenas o segundo grito de liberdade dos humilhados. O também querer ser feliz, hoje, de fato, e não só na ilusão. É o outro extremo da luta sócio-política armada tão em voga no Império Romano. Ou seja, é o mexer na crença, na formação e na sustentação ideológica de um povo massacrado económica e religiosamente pelos seus e por cruéis estrangeiros. Um povo que não via mais na luta armada uma saída honrosa. Nem por isso desistiu ou acomodou-se ao poder da força opressora. Numa metamorfose brilhante, na ação do Espírito de seu Deus, despertou para a purificação de sua crença. Com isso lutou contra a crença, o ensino e a prática dos dominadores. Assim podemos entender o texto rei de Lucas 16.19-31, escoltado pelos dizeres do primeiro príncipe Amos 6.1-7 e os conselhos do segundo príncipe l Timóteo 6.6-12, enquanto a vinda do Senhor não se consuma. Esta perícope já é trabalhada no PL IV, p. 88ss., sob a perspectiva de Werner Fuchs. Aconselho o uso deste trabalho para uma melhor compreensão.
2. Um tema da perícope
V. 19: Este versículo conta a vida normal de uma pessoa e seus convidados. Diria que é a vida de uma pequena parcela da população, em que a exuberância do viver em púrpura e linho finíssimo, com festas luxuosas, convivia tranquilamente com a crença religiosa ensinada e praticada pela elite governante.
Poder viver assim era uma bênção. Mas por dentro deste versículo esconde-se um poder conflitivo. Um contraste de valores. Para uns, uma força motora de ódio e esperança de ser um dia também feliz, e, para outros, não precisar abrir mão dessa situação, era algo divino e sagrado.
Vv. 20-21: Aqui nos é relatada a situação de um miserável. Acredito que seja a situação da grande maioria da população no tempo de Jesus e da comunidade cristã primitiva. Um contraste, uma provocação e agressão ao texto anterior. Uma situação de dependência total, mas com esperança de ser feliz. Pois tinha o ” desejo de alimentar-se.
Estes dois versículos iniciais propiciam um suspense agradável. Refletem o viver tornado normal da sociedade humana e deixam em aberto o rumo da discussão milenar entre ter riqueza e ter sido feito pobre. No meu entender, além da luta sócio-econômica, está presente o conflito ideológico propiciado pela religião dos dominantes. De um lado, consagrava a riqueza como bênção e, do outro, a pobreza como recompensa da vida sem Deus. O negar os bens materiais aos humilhados era o resultado, era o conjunto do ensino e prática religiosa existente. Ou ainda, a religião apenas confirmava ideologicamente essa maneira de se viver. Apesar de pobre, Lázaro não se conformou e foi até a porta, ou foi levado onde até os cachorros estavam ao seu lado. O caso de Lázaro não podia mais ser tratado pela força das armas, mas, sim, pelo poder das migalhas que os fortes jogavam fora. Rumamos assim para o desenrolar ideológico de um assunto material que envolve a crença e a prática religiosa de dois personagens e o rumo de muitas vidas. Isto nos mostra o versículo seguinte.
V. 22: Aqui nos é relatada a realidade que ultrapassa a capacidade e poder humanos. O jugo da morte. Vejo, neste versículo, a morte como instrumento clareador do engano, da ilusão sócio-religiosa imposta aos humildes e aceita de bom grado pelos abastados. Aceito, neste versículo, a morte como sendo o grande instrumental ideológico, de força escatológica, para os humilhados na revisão e releitura da situação humana. A morte faz o véu da recompensa em vida partir-se, desnudando o poder opressor da religião, da riqueza e da pobreza em benefício de poucos. A interpretação e a conclusão referente à morte de Lázaro e do rico atestam a função-chave, o instrumental novo que Jesus/a comunidade cristã usou para desmistificar o viver sócio-religioso em vigor.
Além disso, é evidente o poder escatológico que a morte desempenhou na vida da cristandade. Agora nada mais impede a felicidade. E é a leitura do poder ideológico da religião na vida material que nos leva a afirmar o poder da fantasia escatológica ser superior às lutas sócio-políticas-militares até ali ocorridas. As lutas armadas matam o corpo. A luta ideológica agride o coração da opressão, enchendo os sofredores de esperança. A explicação de Jesus transformou o poder, a autoridade da riqueza em algo fraco e vazio diante da morte, desestimulando a ambição por tal vida e tal uso da riqueza. Lázaro foi dependente até após a morte. O rico usufruiu até o último dom da riqueza, o sepultamento. Além disso, sobra um aviso que pode ser assim entendido no tocante à demora da parúsia: com a demora da vinda de Cristo e com a ausência de uma proposta material para a distribuição da riqueza, voa-se direto para o mundo dos mortos, via sentido escatológico. Com a escatologia se explica o que ainda não vingou na prática. Graças ao poder do Espírito, os versículos seguintes não permitem essa derrapada e acomodação junto ao além, por parte da Igreja primitiva.
Vv. 23-30: Nestes versículos encontramos um diálogo que apresenta ideologicamente a versão antiga do Deus de Abraão, Moisés e profetas (fim da recompensa e amor aos humilhados). E, ainda, por que não dizer, o desejo interno da pobreza em relação aos opressores e sua falsa segurança, ou seja: agora era tarde demais para qualquer alteração no ramo da eternidade vivenciada. Quando a morte chegou, pôs a vida a limpo, nada mais era possível fazer. Nem interceder pelos que ainda viviam, aceitavam e defendiam a religião e os disparates sociais existentes. Onde primeiro se cuidava da lei de Deus e, depois, se praticava o amor ao próximo.
Ainda, estes versículos não levam em conta o reconhecimento tardio da incredulidade, da filiação e da tentativa do rico de mandar Lázaro parar mais uma vez na porta da casa de seus irmãos. Tudo inútil, como atesta o próximo versículo.
V. 31: No meu entender, este versículo, juntamente com o v. 22, são o cerne da nova proposta acerca da proclamação de um reino sem sofrimento, morte e dor. Um reino cheio de felicidade e paz para todos. O v. 22 intercepta e põe fim ao poder do opressor, do explorador e da religião dominante. Já o v. 31 desautoriza a religião dos fariseus, que apresenta um deus que faz sofrer.
O v. 31 faz voltar a religião de Abraão, de Moisés e dos profetas. Ainda mostra a quase impossibilidade de os outros ricos fazerem parte das promessas de um futuro melhor junto ao pai Abraão. Isto está expresso no não ouvem e no não vão crer na mensagem de Deus. O evangelho não lhes é negado. Mas também não é adaptado para confirmar seu jeito de viver (Am 6.1-7 e l Tm 6.6-12). Eles não ouvem os Lázaros a clamar e não crêem numa vida nova e diferente para os outros.
Assim, no mundo da comunidade cristã ainda é tempo de ouvir o clamor dos Lázaros como mensageiros de Deus; ainda é tempo de crer no poder transformador da palavra deste Deus que ama os fracos e muda a sorte dos que se sentem seguros; assim, ainda é tempo de agir além daquilo que se ouve. É tempo de oferecer bem mais do que os Lázaros estão a pedir. Pois eles são a materialização visível e palpável de Moisés e os profetas, como palavra de Deus. Moisés e os profetas nunca comungaram com a religião e a economia do rico. Menos ainda l Tm 6.6-12, que diz: (…) o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males…. Aconselha, dizendo: (…) ó homem de Deus, foge destas cousas, (…) toma posse da vida eterna….
3. Motivação para o anúncio falado
A perícope de Am 6.1-7 relata a histórica acomodação de uma parte do povo de Deus no berço da riqueza; seu desprezo para com os fracos e humilha¬dos socialmente. Lc 16.19-31 apresenta um fato particularizado e oferece o instrumental, morte, para trabalhar a fé e o lidar com os bens materiais numa perspectiva imediata de futuro. Tudo deve mudar, até a morte. Vive-se o futuro, mas o hoje quer ser mudado, l Tm 6.6-12 nos fala como podem ser a vida de fé e a prática material dos cristãos no mundo-e na comunidade cristã, enquanto a parúsia demora.
Diria que são textos dirigidos e ditos exclusivamente para os/as batizados /as e crentes em Jesus Cristo. Não são ainda de utilidade prática para o mundo que nos cerca. Precisam ser vivenciados pelas igrejas. Nesta perspectiva as três perícopes nos dizem que ainda é tempo de ver a situação dos Lázaros; suspender a vida luxuosa e o apoio religioso ao abandono dos humilhados; mudar na prática e crer que a vida em Cristo é diferente. Pois a morte ainda não chegou para dar fim a tudo.
Dito isto, rumamos ao texto específico de Lc 16.19-31. Na minha atual compreensão desta perícope em apreço, vejo o maior mérito, não no combate aos ricos, à riqueza, mas, antes, num ataque ao componente ideológico que leva os ricos e sua riqueza a expulsar Deus e as criaturas de seu círculo. O viver em púrpura e linho finíssimo e festas luxuosas é algo muito antigo e palpável ao ser humano que se rebela contra Deus. Já o componente ideológico que dá sustentação a esse amor destruidor é passível de conteúdos e convicções diferentes. No seio, na vida da comunidade cristã primitiva o amor ao dinhei¬ro também era algo suscetível a aceitação.
A realidade dos cristãos primeiros ainda é de sofrimento, sem perspectiva de mudança. É nesta circunstância que Lucas verbaliza na boca de Jesus a história em questão. O relato estimula uma fantasia (vv. 23-30) para mostrar que a realidade vivida não é da vontade do Deus de Abraão, Moisés e dos profetas. O adiamento da parúsia não é vitória do mal, mas tempo de repartir riqueza e fazer ouvir a Escritura. Tempo de atender o desejo de Lázaro. Para mostrar a urgência dessa mudança e o seu resultado, Lucas articula o que a morte desvendou no rico: sepultura; e no Lázaro: seio de Abraão. Assim, para o meu raciocínio, o v. 22 passa a ser a expressão, o elemento central da expectativa escatológica. Neste v. 22, a morte como poder é a mola propulsora da ação dos cristãos. É ela, a morte, que desnuda a força ideológica da religião, como opressão aos Lázaros. E na morte brilha o sinal de Deus para os humilhados ingressarem no seio de Abraão. É ela, a morte, que mostrou ao rico sua surdez ao clamor de Lázaro e às palavras de Moisés e dos profetas, apesar de ser filho de Abraão.
A morte mostra que é necessário primeiro zelar pelas criaturas de Deus. O resto será acrescentado. A religião ensinava a primeiro cuidar da lei de Deus. Lei que os dominadores verbalizam e ensinam. Jesus ensina e pratica o contrário. É isto que a morte desvenda. E os cristãos são convidados a praticar o amor de Deus e o ensino da Palavra. Isto para todos/as. Na morte de Lázaro, a comunidade cristã renova as suas forças e fortalece a crença numa vida melhor.
Urge, como Igreja, recuperar o poder, o sentido escatológico da morte. Não permitir que a morte seja simplesmente o poder do fim e a força que dá sentido aos disparates sociais existentes. Mas que ela, a morte, volte a clarear o rumo de cada um, tendo o exemplo de quem já partiu: o rico foi sepultado e Lázaro foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. Ainda mais que a vinda de Cristo não está consumada ou descartada até os dias de hoje. Existem sinais nessa direção. Líderes desanimados. Movimentos reprimidos pela força. No texto, o novo, o diferente, é que o poder libertador da morte se manifestou num ser incapaz — Lázaro.
Nós costumamos lembrar e reverenciar os líderes mortos. Aqui é lembrada aquela parcela que é dependente de tudo. É na morte das figuras folclóricas que precisamos aprender o sentido novo da vida. Como Igreja temos medo de articular o poder da morte’ nesses casos extremos. Como no passado, hoje isso também vai mexer e desafiar a ideologia da riqueza e do consumo. Ideologia atraente que está muito forte na vida dos batizados e no conjunto das igrejas e suas práticas. Por isso não vislumbramos o poder libertador que a morte representa, contentando-nos com o caráter doloroso e final que ela aparenta e imprime. A passagem bíblica conclama a sairmos dessa situação antes que seja tarde, como se deu com o rico. Agora precisamos anunciar a palavra de Deus, ouvir e ver os clamores dos Lázaros nas ruas de nossa vida cristã.
4. Bibliografia
FUCHS, Werner. Meditação sobre Lucas 16.19-31. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1979. v. IV, p. 88-95.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt. v. HL
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1977. v. 1. —. As Parábolas de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1976.