Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 16.19-31
Leituras: Amós 6.1a, 4-7 e 1 Timóteo 6.6-19.1-14
Autor: Paulo Weirich
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/09/2010
1. Introdução
Os textos deste domingo não apresentam dificuldade para identificar o tópico em foco. Mais explicitamente, ele é identificado na leitura da epístola: “o amor ao dinheiro”, como ênfase negativa (1Tm 6.10). Esse amor ao dinheiro recebe diferentes enfoques e desdobramentos nas diferentes leituras. Obviamente, o enfoque geral identifica esse amor à coisa enquanto posse como negativa, porque destitui a coisa de seu valor como dom e instrumento de Deus para a vida redimida para a comunhão em vista da comunhão escatológica.
Amós 6.1a, 4-7
Em Amós, esse amor ao dinheiro aparece na vida elitista dos “homens notáveis”, a liderança de Israel. Keil-Delitzsch chama a atenção para a ironia das palavras de Amós à medida que bebem o seu vinho em taças sagradas e se ungem com óleos sagrados e utilizam instrumentos que Davi dedicou e utilizou em contexto litúrgico de louvor. Amós denuncia assim a hipocrisia dos que querem ser reconhecidos como adeptos do culto e da tradição religiosa herdada. Em festas e libações, ao utilizarem utensílios consagrados, queriam passar a mensagem de que assim a libação deveria ser vista como culto a Deus. Entretanto, ao estar indiferente “à ruína de José” (talvez uma alusão aos remanescentes das tribos perdidas), o seu culto, mesmo que culto fosse, nada mais é do que culto de auto-glorificação, que ignora Deus porque ignora o sofrimento daquele a quem Deus chama de “teu irmão”. Comparar com Amós 4.1.
1 Timóteo 6.6-19
O pano de fundo da Carta a Timóteo é o equívoco na compreensão da lei. Diante da lei de Deus existem somente duas possibilidades. A natureza humana, ou se reconhece debaixo da lei, condenada por ela, ou se estima acima da lei como aqueles que se sentem juízes da lei. A teologia de Paulo parte da primeira hipótese. No primeiro capítulo, Paulo arrola os criminosos de crimes hediondos (1Tm 1.9,10). Como nos comparamos a esses ofensores da lei? Aponta para si próprio para então dizer: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal”. Aos romanos estabelece o mesmo princípio: “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas quem quer que seja… pois praticas as coisas que condenas” (Rm 2.1).
O ser humano, mesmo batizado e crente, tende a não se considerar pecador diante de pecadores. Quando sofre, pode sentir-se injustiçado e cobrar de Deus a sua libertação ou tornar-se indiferente a Deus. Quando, pelo contrário, o sofrimento não lhe bate à porta, pode sentir-se ou convencer-se de que sua vida agrada a Deus, a ponto de sua vida estar acima das dificuldades a que outros estão sujeitos. De um modo ou de outro, reflete uma religiosidade individualista que não se compromete com o outro e que considera merecedora do bem que recebe ou deixa de receber de Deus. O apóstolo aponta para isso como o “amor ao dinheiro” (1Tm 6.10), pois é através dele e com ele que o ser humano se sente seguro diante do futuro. A sensação de segurança que vem do dinheiro acumulado desapega a pessoa de Deus como seu provedor e segurança e transfere-a para o objeto. Lutero cita o Eclesiástico para apontar o ponto de equilíbrio tanto para aquele que tem tudo como para aquele a quem tudo falta: “No dia mau lembra-te das coisas boas, e no dia bom lembra-te das coisas más” (Eclo 11.27). Deus não deve explicações nem justificativas ao ser humano por aquilo que envia ou retém de bênçãos. Em função disso Jó pode sofrer “sem causa” (Jó 2.3), e o ímpio aproveita vida mansa, ou vice-versa. O mesmo Deus que dá ao ser humano consciência da sua condição em pecado mediante as perdas e sofrimentos é o mesmo Deus que cobre de bênçãos “justos e injustos” (Mt 5.45). Entender as circunstâncias da vida como evidências de uma boa e menos boa relação com Deus não leva em conta a compreensão da lei de Deus, tal como Deus a expõe (Mt 5 e 6), debaixo da qual cada um é merecedor de que Deus o hostilize. Entretanto, o que o ser humano tende a ver como hostilidade da parte de Deus é, na verdade, a pedagogia de Deus em amor para que esse desespere de si próprio e confie na promessa de Deus revelada e oferecida em Cristo. Nesse sentido, Lutero percebe o amor de Deus no sofrimento do ser humano quando diz ao desconsolado eleitor Frederico: “Cristo está doente em vós. (Vejo) Cristo clamando do corpo e da carne de Vossa Alteza, dizendo: Eis-me aqui, doente!” Nesse sentido, Paulo direciona o ministério de Timóteo em direção ao pecador, o desconsolado, o culpado, aquele que é nada, mas que, em Cristo, é filho de Deus.
2. Exegese
V. 19-21 – Lutero denomina essa perícope (Lc 16.19-31) de “um exemplo”. São duas vidas intimamente ligadas no tempo e no espaço. São vidas tão próximas, que partilhavam o mesmo teto e a mesma alimentação. Um do lado de fora do teto, o outro, do lado de dentro. Um comia à mesa, cercado de familiares e amigos. O outro está cercado dos cães que lhe aliviam o ardor das feridas com suas lambidas, enquanto anseia pelos restos da comida que se come do outro lado da parede. Um exemplo de contrastes marcantes e ao mesmo tempo de proximidade e compartilhamento; vidas paralelas muito próximas, que aparentemente não se tocam, mas que ainda vão se revelar intimamente ligadas.
O texto é ambíguo em relação à alimentação de Lázaro. “Desejava alimentar-se das migalhas… Ele escolheu estar ali? Alguém o levava até lá? Alguém da casa lhe trazia os restos num gesto de caridade? Ou buscava ele os restos no lixo? A ambiguidade. As perguntas sem claras respostas pertencem ao discurso de Jesus. Pessoas e instituições tendem a se ocupar com perguntas periféricas ao fato em si, como se desse discurso secundário pudessem brotar soluções. Verdade é que existem vertentes de natureza social, econômica e política em tudo o que envolve o ser humano. Mas o fato permanece: um sofre, o outro não sofre. Um deseja alimentar-se, o outro faz do ato de comer um regalo para si.
De pouco, ou mesmo de nada, serve filosofar ou teologizar sobre o fato em busca de soluções que determinem a extinção desse desequilíbrio. Ou melhor: a resposta que Deus dá a isso não serve às pessoas em geral. No livro de Jó, tropeçamos em nossa pretensão de clamar por soluções de causa e efeito. Jó, lançado no mais profundo desespero da existência humana, admite que seu culto a Deus e os holocaustos que a ele oferecia tinham um propósito: Desejava que Deus protegesse sua família. Qual a resposta de Deus? Jó, sem causa, sofre.
Lutero vê Cristo na carne do sofredor, sofrendo junto à miséria humana em toda a sua extensão. Podemos transferir essa imagem para dizer que, nos olhos de Lázaro, que contemplava o espetáculo da vida do rico, o próprio Jesus se retrata a si mesmo na pessoa de Lázaro, em sua encarnação na miséria humana. Que miséria é essa? A miséria a que todo ser humano está sujeito e da qual cada ser humano, em algum momento de sua existência, tem a experiência pessoal. Quando Jesus pergunta a Tiago e João se eles carregariam a cruz que ele está disposto a carregar, eles respondem: “Sim, podemos”. E a resposta é: “Sim, vocês vão carregá-la”. A cruz da expiação eles carregam na palavra, mas a cruz do sofrimento Deus entrega de acordo com seu desígnio.
Ao fazer isso, Deus não deve explicações nem a Jó tampouco a Lázaro ou alguém mais. Diante desse silêncio de Deus sobre a causa de não retribuir de acordo com o nosso sentimento de justiça, instalam-se o desejo ou a esperança na possibilidade de comer e alimentar-se de uma justiça outra, maior, infinitamente maior do que a nossa, na qual o sofredor possa finalmente descansar. Ela existe? É a pergunta de Jó, de Lázaro e de cada sofredor que ainda encontramos. Enfim, é também a pergunta com a qual o pregador finalmente tem de se deparar: a justiça que ultrapassa a justiça pautada em raciocínios humanos.
O rico possivelmente entendeu Deus como em geral as pessoas preferem pensar de Deus. Ele, em sua própria opinião, mantinha o controle sobre a própria vida. O fato de que a ordem das coisas não se alterou em sua vida ao longo dos anos deu-lhe a ilusão de que estava nas boas graças de Deus. Diante da constante generosidade de Deus convenceu-se de que o controle da sua vida estava em seu poder. Assumiu-se como senhor da sua vida. Jamais se fez a pergunta: Por que ele é miserável e não eu? Ou então a reflexão: O que fiz por merecer a situação privilegiada que me permite desfrutar de prazeres ilimitados na vida? Pelo contrário. Talvez até estivesse convencido de que sua opulência material fosse sinal seguro de uma relação privilegiada com Deus. Talvez até lamentasse a miséria daqueles que, por não ter com Deus uma relação como a sua, de Deus recebessem justa punição em miséria e sofrimentos.
V. 22 – Aparentemente nada tinham a ver um com o outro. Aparentemente as duas vidas pertenciam a mundos totalmente diferentes e irreconciliáveis. Nenhuma força deste mundo conseguiu aproximar a miséria da riqueza. Entretanto, por coincidência ou não, no original, o versículo 19 termina com lamproos (esplendidamente, suntuosamente) e o vers. 20 começa com ptooxos (pobre). No texto, separados por um ponto. Na vida, poucos metros e uma parede. Mas o abismo é intransponível para o pobre. Para o rico também é um abismo intransponível. O que determina a trajetória de vida das pessoas e marca-as tão profunda e inapelavelmente? Essa pergunta não tem resposta. Enigmática foi a resposta de Jesus: “Os pobres sempre os tendes convosco” (Mt 26.11, Mc 14.7, Jo 12.8). A convivência do suntuoso com a miséria acompanha a humanidade e desafia-a permanentemente: O abismo é definitivo e intransponível? O apóstolo parece indicar a natureza do abismo: O amor ao dinheiro.
É possível identificar o amor ao dinheiro? É possível adquirir ou ser alguém para quem o dinheiro é pouco relevante ou nada relevante? A coisa se decide pela relação que alguém estabelece com a coisa que depende de ter ou não ter dinheiro?
Na narração de Jesus, aquilo que o dinheiro pode fazer não está tão em evidência. O foco de Jesus está sobre as pessoas e na relação que as pessoas estabelecem entre si ou deixam de estabelecer a partir das coisas que têm.
Entretanto, o v. 22 denuncia a intimidade que todos compartilham, não importa o quanto as vidas podem parecer e ser diferentes. Para um, a morte foi muitas vezes desejada; para o outro, uma surpresa totalmente inesperada. A morte finalmente revela o que até então parecia impossível. Entretanto, diferentemente do que a religiosidade popular anuncia, a morte não é o nivelamento da injustiça ou a democratização das oportunidades ou o cancelamento das diferenças. A morte estabelece a existência de um novo conceito: a diferença entre o que é passageiro e o que é definitivo.
V. 23-26 – Então Jesus introduz um novo cenário: o pós-morte. Nesse novo cenário, a estranha situação se repete. Ambos estão tão próximos um do outro. É possível ver, falar e ouvir um ao outro. E, mais uma vez, um abismo intransponível os separa. Dessa vez, o rico deseja transpor o abismo. Mas por mais que ele o deseje, isso ele não pode decidir. Mais uma vez, alguém outro decidiu por ele.
Jesus põe uma palavra na boca do rico atormentado, palavra essa que se faz presente nos atos litúrgicos da igreja: ee-lé-eeson. Ele não conheceu essa palavra ali. Ele conheceu “Moisés e os profetas” bem antes. Que leitura fizera ele até então desse conceito que ali naquela hora lhe era tão caro. Sabia ele que a compaixão, e somente a compaixão, transpõe o abismo que separa o juízo de Deus da humanidade? O desejo de Lázaro sempre fora um desejo por uma migalha de compaixão. Agora, era por uma gota de água.
Deus transpõe o abismo que separa Lázaro do próprio Deus, assim como Deus morou com o rico pela palavra que o rico e seus irmãos tinham, cuja riqueza ele desprezara. Ambos compartilharam em vida a comunhão de Deus. Entretanto, o rico não levou a sua comunhão com Deus até a porta de sua casa para incluir Lázaro nessa comunhão. “Agora ele está consolado. Tu, em tormentos.”
V. 31 – O rico tinha a palavra que lhe deu comunhão com Deus. Somente essa palavra poderia ter rompido as ilusões religiosas que o animavam a pensar que sua relação com Deus não necessitava de exames maiores. Essa palavra lhe dizia (ou diria, se ele lhe prestasse atenção) que a sua situação confortável não sinalizava uma boa relação com Deus. Ela lhe diria que diante de Deus nem Lázaro estava abandonado por Deus. E mesmo que a palavra lhe tivesse dito isso, os seus ouvidos tinham se fechado para aceitar qualquer coisa que pusesse em dúvida aquilo que ele queria crer da sua relação com o Deus dos seus pais.
3. Sugestões de uso do material
Tema e moto: Próximos, mas tão distantes
1. O rico e o Lázaro partilhavam muitas coisas:
o tempo, o espaço, a comida e a religião.
2. Mas era como se vivessem em universos diferentes (o texto).
3. Por trás do rico e de Lázaro podemos entrever pessoas, grupos sociais, religiões ocupando o mesmo espaço, mas igualmente separados por abismos de indiferença, preconceito, amargura e ódio.
4. Somente a Palavra pode revelar o nivelamento a que o pecado reduziu todos diante de Deus (Paulo a Timóteo).
5. Somente a Palavra pode levar à humildade diante de Deus, que cria a comunhão que une todos no coração de Deus.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Senhor Deus, reconhecemos e confessamos que não conseguimos viver a comunhão que nos ofereces quando nos abrigaste em teu coração por amor de Jesus. Mesmo assim, não te afastaste de nós. Pelo contrário, conservas a nossa vida e tudo o que a ela pertence. Não te damos a devida honra por tanto amor dedicado a nós. Perdoa-nos por agir como se não viesse tudo de ti. Não estamos dispostos, como gostaríamos, a viver contigo, a imitar o teu amor e carinho pelos carentes e sofredores. Dependemos de ti e da tua palavra para que nos acolha, estimule e fortaleça para andar nessa comunhão contigo e com todos aqueles que querem fazer parte dessa comunhão. Acolhe-nos como estamos e restaura em nós a alegria de viver na tua presença.
Oração do dia:
Senhor Deus, Tu que nos criaste para estar em comunhão contigo e que em Jesus nos trouxeste novamente para a tua comunhão. Abre tu os meus ouvidos para que minha vontade se submeta à tua vontade e eu possa acolher os fracos e os sofredores. Permite que em minha própria hora de fraqueza e sofrimento continue a esperar de ti todo o bem. Por meio de Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor, que contigo e com o Espírito Santo é um só Deus para sempre. Amém
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).