A fé nos motiva a servir com humildade
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Lucas 17.5-10
Leituras: Habacuque 1.1-4; 2.1-4 e 2 Timóteo 1.1-14
Autoria: Antonio Carlos Oliveira
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 6 de outubro de 2019
1. Introdução
As leituras bíblicas previstas para este domingo oferecem uma boa oportunidade de reflexão às comunidades de fé. Habacuque traz a resposta de Deus para as injustiças que ele presencia em seu tempo. Timóteo recebe ânimo e conselhos de Paulo para enfrentar as dificuldades vividas por ele na comunidade. Os apóstolos ouvem os ensinamentos de Jesus sobre fé e sobre como devem servir a Deus.
Uma possível conexão entre os textos é que a resposta de Deus aos nossos pedidos e questionamentos não são explicações vazias ou superficiais. Mas, de fato, palavras que nos motivam e nos dão esperança. A resposta de Deus nos tira da zona de conforto e nos compromete com a ação. Habacuque recebeu a tarefa de escrever a visão que anuncia a justiça de Deus. Timóteo é conscientizado de que os sofrimentos fazem parte do ministério. Os apóstolos são confrontados com a graça e o servir humilde diante de Deus.
O texto do evangelho é muito rico em imagens, pois apresenta a metáforada semente de mostarda e os deveres do servo. Ainda que o texto pareça ter duaspartes, com algum sentido se tomadas separadamente, os versículos previstos para a pregação fazem sentido como um todo também. Inclusive, podemos ampliar um pouco mais o olhar e arriscar dizer que as pessoas que se comprometem com a palavra e a ação de Jesus precisam: evitar escândalos (v. 1-2); oferecer o perdão (v. 3-4); confiar totalmente em Deus (v. 5-6); deixar de lado pretensões e orgulho (v. 7-10); reconhecer a graça de Deus (v. 11-19).
2. Exegese
V. 5 – Aumenta-nos a fé. Não provocar escândalos (v. 1-2) e ofertar o perdão (v. 3-4) são tarefas difíceis de realizar. Por isso o pedido dos apóstolos parece coerente. Ainda mais se entendemos a fé como o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem (Hb 11.1). A sentença introduz a metáfora da semente de mostarda como ilustração de que a fé, por menor que seja, pode fazer coisas maravilhosas. Quem tem um grãozinho de fé pode fazer algo que parece impossível, como transplantar uma árvore para o meio do mar.
V. 6 – Mateus e Marcos dizem que quem tem fé, por menor que seja, pode deslocar um “monte” (Mt 17.20; 21.21 e Mc 11.23). Lucas parece ser mais modesto ao se referir a uma árvore (sykaminos). A versão de Almeida e o Léxico do Novo Testamento traduzem o nome dessa árvore como “amoreira”. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje – NTLH se refere a uma “figueira brava”. O termo também pode ser traduzido como sicômoro. Trata-se de uma espécie de árvore bem comum naquela região, que produz figos comestíveis. Sua altura máxima pode chegar a 20 metros.
Os versículos 7 a 10 são exclusivos do Evangelho de Lucas. O título dado pela NTLH, “O dever do empregado”, é problemático. A lição de Jesus não se refere à defesa dos direitos dos patrões. Um título mais coerente seria: “A fé nos motiva a servir com humildade”. Pois o texto considera a relação que existia entre escravo e senhor, ou seja, trata da lógica existente entre servir e ser servido. Desta forma, mesmo que seja chocante, o exemplo demonstra claramente que as pessoas cristãs são servas de Deus e que o serviço a Deus precisa ser realizado com humildade e não deve ser exercido como forma de acumular méritos. As pessoas que viviam naquele tempo entenderiam a mensagem, tendo em vista que o convívio social era organizado daquela maneira.
Possivelmente, o ensinamento de Jesus visava contrapor-se à ideia de outros grupos religiosos. O evangelho, portanto, está “em oposição à atitude dos fariseus, que se arrogavam direitos junto a Deus pela observação da Lei, os discípulos de Jesus, embora cumpram fielmente os encargos recebidos de Deus, sempre irão se considerar servos inúteis, que não têm direito algum de recompensa para gabar-se diante de Deus” (Ancellotti; Boccalli, 1979, p. 167). Jesus apresenta uma grande lição, que todo discípulo ou discípula precisa entender. Deus não depende em nada dos seres humanos. São os seres humanos que dependem totalmente de Deus. O texto em questão serve como base para articular o princípio da justificação por graça e fé (Rm 1.17). A salvação e tudo o mais que se recebe de Deus continuam tendo sua explicação unicamente na graça de Deus. A fé, por menor que seja, trará sempre consigo uma atitude de humildade e solicitude diante de Deus e das outras pessoas. A soberba e a arrogância não devem ter lugar na vida das pessoas cristãs, mesmo que elas realizem grandes feitos e coisas maravilhosas.
V. 7 – Doulos – em grego, significa “escravo”. Pode referir-se tanto ao servo que trabalha no campo como ao que se ocupa com as tarefas da casa. A escravidão estava presente em Israel sob certas disposições legais (cf. Lv 25.39-55; Dt 15.12-18). A NTLH utiliza a palavra “empregado”. Mas parece mais adequado empregar os termos “escravo, servo ou criado”, já que um empregado teria direito a um pagamento ao final do dia (cf. Mt 20.1ss).
V. 8 – Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me. Cingir-se era amarrar uma veste comprida em torno da cintura para que as roupas não atrapalhassem o serviço. O próprio Cristo, como citado em Lucas 12.35ss, cinge-se e serve os discípulos. “Assim também o próprio Jesus, o grande Senhor, mas também o grande Servo, ilustra qual é o verdadeiro e autêntico serviço cristão, procurando demonstrar a atitude de interesse pelos outros que deve ser mantida como uma expressão espiritual da personalidade cristã” (Champlin, 1982, p. 166).
V. 9 – A última das três perguntas retóricas do texto é a mais contundente: Porventura terá de agradecer ao servo porque ele fez o que lhe havia ordenado? Jesus adverte sobre o “veneno sutil” da autojustificação e a meritocracia que havia contaminado a religiosidade de seus contemporâneos. Inclusive, seu próprio círculo de seguidores e discípulos não está livre dessa maléfica influência. A mentalidade dos interesses individuais e dos privilégios, que podem ser obtidos em servir alguém importante, está presente no pedido da mãe de Tiago e João (Mt 20.20-21). Na escalada pelas melhores posições, as pessoas mais próximas de Jesus começavam a pensar e indagar qual delas seria a mais importante no reino dos céus.
V. 10 – Somos “servos inúteis”. A pessoa cristã reconhece que nem ao menos é capaz de cumprir suas obrigações como deveria. Estará sempre em débito em relação a Deus. Essa noção é extremamente importante, pois corremos o risco de reduzir a vida espiritual a um mero culto da felicidade que preze pelo conforto e a tranquilidade, barganhando nossa vida religiosa a troco das benesses divinas. “Jesus apresenta aqui uma parábola vazada em termos duros, a fim de chocar as mentes dos crentes, para que tomem consciência da severidade dos seus deveres, e também para que compreendam que tudo quanto temos ou somos, em última análise, devemos tão somente a Deus” (Champlin, 1982, p. 167).
3. Meditação
Frases do tipo “parabéns, você mereceu a vitória” e “fulano recebeu o que merecia” são comuns aos nossos ouvidos. A valorização do mérito está muito presente na sociedade em que vivemos, e para muitas pessoas ela representa um jeito mais justo de viver. Na meritocracia, teoricamente, cada pessoa recebe segundo seu empenho, seu conhecimento, sua capacidade. Mas sabemos que não é bem assim. Por trás de uma fachada de “honra ao mérito”, escondem-se, muitas vezes, fraudes, privilégios, nepotismo, injustiças.
É fato que as relações de meritocracia nos tocam. Estamos sempre avaliando a nós mesmos e a outras pessoas, quer seja no trabalho, na escola, quer seja na família e até mesmo na igreja. Nossa compreensão sobre pagamento, premiação, retribuição e compensação está intrinsecamente relacionada com a valorização do que as pessoas fazem ou deixam de fazer. Se seguirmos automaticamente esse raciocínio, já não são as coisas ou atitudes que têm valor. Mas as próprias pessoas passam a ter mais ou menos valia. Diz-se, por exemplo, que determinada pessoa não “vale nada” ou que essa outra pessoa não merece isto ou aquilo. Nessa mentalidade meritocrática pode estar presente uma compreensão de que o próprio Deus também age baseado no mérito das pessoas, concedendo bênçãos ou castigos a partir das suas ações. Nesse caso, a salvação e a vida eterna passam a ser prêmios a serem conquistados ou “comprados” ao longo da vida. Essa ideia não considera a onipotência de Deus e a justificação por graça e fé.
Lutero ensinou sobre o Deus que compreende as fraquezas e as limitações humanas. Segundo Lutero, é impossível para o ser humano merecer por seus próprios méritos a salvação. Deus, no entanto, age com graça e misericórdia. À pessoa cabe ter humildade e confiar em Deus. A doutrina da justificação por graça e fé reforma nosso modo de pensar. Nela, a meritocracia não tem vez. Entendemos que tudo que recebemos de Deus é graça preciosa e misericórdia. Isso não é mérito nosso, mas devido ao que Jesus fez por nós na cruz. Saber disso nos ajuda a entender melhor as pessoas, aceitar suas falhas e perdoar seus erros. A graça de Deus nos motiva a praticar a misericórdia com as pessoas que nos cercam fisicamente no dia a dia, e também com outras pessoas com as quais só temos contato através das redes sociais na internet.
O pedido que os apóstolos fazem a Jesus (aumenta-nos a fé) é semelhante a outro pedido: Ensina-nos a orar (Lc 11.1). Podemos entender que o desejo dos apóstolos era de ter uma melhor capacitação ou formação nesses assuntos, para enfrentar com mais segurança os desafios apontados por Jesus. O que, diga-se de passagem, é muito importante e válido. Jesus está a cada passo ensinando, capacitando, formando os que o seguem e preparando seus discípulos e suas discípulas (Lc 10.39). Os próprios apóstolos têm a missão de ensinar outras pessoas a respeito do que Cristo ordenou (cf. Mt 28.20). Mas certos aspectos da meritocracia podem estar camuflados neste piedoso pedido: melhor preparação, mais conhecimentos, bajulação, seletividade, concessões. Tudo isso para, quem sabe, alcançar melhores posições, como revela outro pedido: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda (Mt 20.21). Porém, Jesus aponta para outra direção: Quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos (Mc 10.44). A fé é um dom e não apenas uma formação sistemática. A fé, mesmo que pequenina como um grão de mostarda, a menor de todas as sementes (cf. Mc 4.31), deve ser acolhida, plantada e cultivada na vivência comunitária. Nesse ponto, não se trata de ter ou de conseguir um pouquinho de fé, mas de se dar conta de que Deus nos concede a fé para que ela resulte em transformação, vida e serviço.
A fala de Jesus ainda nos reserva um conselho difícil de cumprir. Considerar-se diante de Deus um “servo inútil”, depois da dedicação total ao trabalho, parece um duro golpe em nossa autoestima. Quem, em não se tratando de falsa modéstia, diria isso? Quem publicaria isso nas suas redes sociais? Isso parece ilógico e contraproducente. É melhor ostentar nossas notas altas, nossos títulos e o orgulho de ser bom. Inclusive, perdemos a noção do que significa ser um servo ou uma serva. Queremos a posição de líderes ou chefes, e não ser reconhecidos como serviçais. No mundo, que erroneamente valoriza só as aparências, saber-se verdadeiramente um “servo inútil” de Jesus Cristo é um grito de liberdade e uma confissão genuína de fé.
4. Imagens para a prédica
O sino pode ser usado como um símbolo nesta celebração. A meu ver, ele pode representar o serviço humilde de chamar para algo importante. Se o templo de sua comunidade tem um sino, você pode usá-lo como exemplo, pode mostrar uma fotografia ou um vídeo dele funcionando. Se não houver um sino na igreja, você pode trazer para a celebração um pequeno sino ou sineta e utilizá-lo como recurso visual e sonoro.
Talvez seja importante dizer que, segundo dados históricos, os sinos foram inventados pelos chineses há aproximadamente 4.600 anos. Desde então, eles têm sido usados como meio de comunicação no mundo todo, marcando o início e o fim de atividades, sinalizando as horas do dia, avisando situações de perigo e emergência. A palavra sino vem do latim signum, que significa “sinal”. No cristianismo, os sinos começaram a ser usados por volta do século V. Feitos em metais, como bronze, cobre ou estanho, inicialmente foram empregados nas igrejas da Europa e depois levados a outros continentes. Diversas denominações cristãs usam sinos nas torres de seus templos, entre elas as igrejas luteranas, católicas, ortodoxas e anglicanas.
Para que serve o sino? Ele toca no início e final do culto, durante o Pai-Nosso, comunica sepultamentos e casamentos, avisa em casos de emergências. Similares ao sino são as sinetas ou campainhas utilizadas nas escolas e nas empresas para avisar as pessoas do início e fim das atividades. As casas e os apartamentos têm campainhas para indicar quando alguém nos procura. Algumas pessoas que criam animais no campo têm o costume de colocar pequenos sinos no pescoço das vacas ou das cabras para indicar sua posição em meio à vegetação. E ainda existe o fato de que muitas pessoas carregam um sino no bolso ou na bolsa, na forma de um telefone celular, que tem os toques da campainha e do despertador.
Podemos entender o sino como um símbolo para falar de vocação, humildade e liberdade. Sob o ponto de vista da vocação, o papel do sino é chamar (do latim vocare) as pessoas para algo mais importante que ele próprio. Quando ele toca, as pessoas não vêm para vê-lo. As pessoas vêm porque algo vai acontecer, por exemplo, o início do culto, o começo da aula. A campainha anuncia que alguém quer falar, alguém quer entrar na casa. O despertador toca porque alguém precisa acordar. Quanto à humildade, podemos entender que sino cumpre uma função importante, mas que ele não é imprescindível. As atividades podem acontecer sem ele. As pessoas cristãs são como “sinos”, sinalizam para Jesus Cristo. O verdadeiro valor não está em nós ou no trabalho que desempenhamos, por mais importante que seja, mas está naquele para o qual indicamos, ou seja, Cristo. Isso nos dá liberdade, nos livra da vaidade, da meritocracia e da autorrealização. Ao entender a graça e a misericórdia de Deus, podemos fazer bem o nosso trabalho sabendo que somos servos e servas de Deus.
Bibliografia
ANCELLOTI, Angelo; BOCCALLI, Giovanni. Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis: Vozes, 1979.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Millenniun, 1982. v. 2.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).