Prédica: Lucas 17.5-6
Autor: Arteno I. Spellmeier
Data Litúrgica: 15º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 11/09/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Considerações contextuais e exegéticas
Com o nosso texto — um dos ditos de Jesus sobre o poder da fé — entramos no maravilhoso mundo da linguagem do povo, rica em imagens, figuras, parábolas e ilustrações, cheia da concretitude do dia-a-dia, carregada de segundas intenções e interpretações. Fazem parte deste mundo ilustrado da linguagem do povo o texto paralelo (Mt 17.20), a parábola do grão de mostarda (Mc 4.31-32 e par.), os textos sobre o poder da fé em transportar montes e transplantar árvores (1 Co 13.2; Mc 11.23; Mt 21.21).
É uma linguagem de figuras e ilustrações que prima pela concretitude e antiguidade. Para a maioria delas encontram-se paralelos tanto no AT, quanto no Talmud.
1. O grão de mostarda era conhecido naquele tempo como a menor de todas as sementes, e usado por..Jesus, para ilustrar a insignificância do início do Reino de Deus, que, no entanto, já traz dentro de si todo o potencial da futura grandeza. (Mc 4.31 s)
2. A árvore, sob a qual os pássaros encontram guarida e proteção, simboliza na Antiguidade, seguidamente, grandes reinos e potências mundiais (Ez 17.22; 31.6; Dn 4.9 e outros).
3. A destruição da figueira com frutos ruins ê usada muitas vezes no AT, especialmente em Jeremias, como símbolo do juízo que sobrevirá a Israel (Jr 24.8; 29.17).
4. A proeza de desenraizar árvores e de transferir montanhas era tida como milagre espetacular e designava uma ação incomum de poder: tornar possível o impossível. (Jeremias. Teologia, p. 248)
5. Transferir montanhas também era uma expressão proverbial empregada em duplo sentido: a) para designar sutileza e precisão minuciosa de argumentação em discussões; b) para designar firmeza e irredutibilidade de convicção e decisão (Jeremias. Teologia, p. 255).
6. O desaparecimento de montanhas — ficando a terra toda agricultável — (Is 40.4 e 49.11), assim como o seu reaparecimento para receberem em seu cume o monte da casa do Senhor (Is 2.2) eram esperados como eventos escatológicos, estreitamente ligados à vinda do reino do Senhor. (Jeremias. Teologia, p. 255)
Ao lado destas constatações que, ao nosso ver, apontam para o contexto maior, dentro do qual o nosso texto deve ser interpretado, parece-nos imprescindível relacionar este dito com a parábola do grão de mostarda, devido à proximidade e simultaneidade das figuras.
[Veja figura 1 anexa.]
Parábola: Com determinismo nasce, do grão de mostarda, uma árvore de 2 a 4 metros de altura (símbolo de grandes reinos). Com o mesmo determinismo nascerá, do início insignificante do Reino de Deus, um reino que abarcará todos os povos. Dentro da semente esta o projeto da árvore. Dentro da insignificante palavra de Jesus esta o projeto do novo reino. (Schniewind, pp. 69-70)
Dito: A fé do tamanho de um grão de mostarda dará poder para transplantar árvores.
Na fé do tamanho de um grão de mostarda está presente toda a promessa de participação nos poderes inerentes ao Reino: Mesmo a fé mais fraca… dará participação nos plenos poderes escatológicos. (Lc 12.31-32 — Jeremias. Teologia, p. 255)
Devido à forma proverbial e à brevidade deste e de outros ditos, o contexto é determinante na sua interpretação. Desconsiderar o contexto significa colocar o dito em moldura estranha, consciente ou inconscientemente.
Sobre o contexto original, em que Jesus proferiu este dito sobre o poder da fé, pouco se sabe. Jeremias (Gleichnisse, p. 101) pressupõe que tanto a parábola do grão de mostarda, quanto a do fermento foram proferidas por Jesus numa situação, em que sua missão estava sendo posta em dúvida. Então aqueles maltrapilhos e analfabetos seriam os iniciadores do novo reino,, a comunidade escatológica? Talvez, examinando a sua própria situação, sua carência de poder, os discípulos se perguntassem: Que queremos nós, uns semimortos de fome? Lutar por uma causa que é rejeitada e combatida pelos que têm o monopólio do conhecimento, o poder econômico e militar e a hegemonia da religião?
Em sua redação final, os ditos sobre o poder da fé foram transmitidos em contextos diferentes. Em Mt 17.14-20, encontramos um deles, estreitamente vinculado à incapacidade dos discípulos em expulsar demônios; naquele texto a expulsão de demônios é anunciada como um dos sinais do início do novo reino.
Ninguém pode deixar de observar que nossos evangelhos narram repetidamente curas de possessos, que em Atos isso continua e que nas cartas do NT, e, de um modo especial, no Apocalipse, é festejada a vitória do Senhor ressuscitado, como libertação da escravidão dos poderes e potestades. Pensa-se naqueles poderes que flagelam tanto o mundo, quanto cada um pessoalmente, que desencaminham, alienam e desgraçam tanto o orgulhoso, quanto o desesperado. Pode-se criticar a linguagem e a cosmovisão dos antigos, qualificando-as de superadas, e propor sua demitização. Eventualmente até seja necessário fazer isso, porque somente assim a realidade de nossa vida e de nosso mundo atual se abre aos nossos olhos. Esta realidade não revoga a experiência da comunidade primitiva, mas a radicaliza. A sociedade de consumo do homem branco talvez deboche de demônios. No entanto, só pode fazê-lo porque é cega, surda, insensível e idiota, à sombra de seus progressos tecnológicos, porque desvia o seu olhar diante dos privilégios defendidos a força bruta e é caolha diante de seus preconceitos tradicionais. Cresce inexoravelmente a montanha de culpa não reconhecida e expiada… (Tradução de Kaesemann, p. 11). Neste contexto deve ser entendido o dito sobre o poder da fé, em Mateus.
Não muito diferente, pelo menos no que se refere à sua essência, é o contexto do dito em Lc 17.3-10, que fala, por um lado, da necessidade de perdoar, e, por outro, da necessidade de viver coerentemente a condição de criaturas de Deus.
Esta é a ordem social fundamental que Jesus des-cobre: Nós estamos unidos uns aos outros numa solidariedade sem limites. Temos uma dívida infinita uns para com os outros… Temos uma divida uns para com os outros, porque estamos unidos uns aos outros. Somos devedores uns dos outros, porque somos unidos por e em Deus, porque somos irmãos. Somos devedores uns dos outros, porque com tudo pertencemos a Deus. Somos infinitamente devedores uns dos outros, porque estamos infinitamente ligados a Deus. Tudo a nós pertence, porque tudo a Deus pertence e nós também pertencemos a Deus. Somos responsáveis por tudo — por assim dizer, em nome e como representantes de Deus. Tudo nos diz respeito, de nada somos eximidos. Somos sacerdotes e sumos sacerdotes. De uma maneira especial, no entanto, nos interessa o homem, o irmão. Somos somente administradores. Somos devedores eternos do homem. Somos eterna e infinitamente responsáveis por ele. Acima de tudo está o santo direito e a santa justiça de Deus — um direito e uma justiça infinita, como infinito é Deus… Este é, por assim dizer, o socialismo e comunismo de Deus, em todos os casos, o mais profundo e único verdadeiro fundamento de todo o socialismo e comunismo, ou, mais genericamente, de toda a ordem social, de todos os deveres sociais, de todo o sentimento social… (Ragaz pp. 52-53).
Esta é a primeira parte do contexto. A segunda parte abrange os vv.7-10: no exemplo da relação senhor-escravo — linguagem que fere a nossa suscetibilidade liberal — é abordado o senhorio de Deus sobre as suas criaturas. O que, na primeira parte do contexto, servia de pano de fundo, ou melhor, de chave de interpretação, aqui é exposto sem meios-termos: Deus é o Criador. Deus é o Senhor. Nós somos criaturas dependentes. Nós somos devedores. Nós somos servos-escravos. O nosso direito à vida está nas mãos daquele que nos criou.
Na condição de criaturas dependentes, co-responsáveis pela sua criação, a nossa culpa-dívida para com Deus e os homens é ilimitada e infinita.
II — Meditação
Um passar de olhos por sobre a nossa vida, um olhar para dentro de nosso mundo, um observar superficial de nossa sociedade bastam para que se descubra que pouco resta do projeto original da criação: a morte assumiu o lugar da vida, a injustiça o da justiça, o ódio o do amor, a dominação o da fraternidade…. Um passar de olhos por sobre a realidade que nos cerca nos fará compreender o apelo dos discípulos: Aumenta-nos a fé!; manifestação de homens, a quem a radicalidade de Deus ficou clara. Nada de meios-termos. Nada de tentativas de encobrimento. Nada de mistificações. Nada de saldas medíocres pela tangente. Nada de apelos morais. Nada de um reconhecimento de culpa forjado. A impotência diante da culpa-dívida não é usada como biombo para esconder a própria nudez, como álibi para justificar o status quo do mundo caído, da sociedade desencaminhada, do relacionamento pessoal destruído.
Aumenta-nos a fé! é uma atitude de disposição autêntica para enfrentar, transformar, revolucionar.
Aumenta-nos a fé! é disposição para ir em frente e é o contrário da atitude derrotista de grande parte dos cristãos, que em lugar dela afirmam: sempre foi assim…, não tem jeito, o mundo é um mundo caído…, um álibi para o seu conservadorismo, um atestado da sua total imersão na ideologia dos que gozam os privilégios deste mundo.
Os que não tiverem coragem de fazer coro com os discípulos, aumenta-nos a fé!, ao menos deveriam arregimentar forças para imitarem Jó e berrarem: Não concordo com esta droga de mundo; assim como ele é não pode ser criação daquele Deus que conheço da Bíblia.
Sem coragem para fazer coro aos discípulos, sem coragem para imitarem Jó, os cristãos se afundam na própria mediocridade e deixam de participar da maravilhosa promessa de Jesus:
Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta amoreira: Arranca-te e transplanta-te no mar; e ela vos obedecerá.
Esta é a promessa: participação nos plenos poderes da comunidade escatológica, participação na construção do Reino de Deus, já agora neste mundo caído, uma caricatura do projeto original de Deus.
Fé, neste contexto, é confiança irredutível contra todas as aparências, fé que não cessa de confiar na realização desse projeto de Deus, apesar de todos os sempre foi assim (Jeremias. Teologia, p. 250). Fé, portanto, não como posse, como garantia de uma futura participação no reino dos céus, mas como dádiva que a cada dia se renova e nos libera para participarmos agora na edificação do reino dos céus.
O estreito relacionamento existente entre este dito do Jesus histórico sobre o poder da fé e a sua mensagem central, a proclamação do Reino, não permite uma interpretação bitolada deste termo no sentido de uma união mística, individualista e particularizante com Deus. Fé, como relacionamento pessoal, é outra coisa: é saber-se incumbido por Deus para, a cada novo dia, sair e colocar tijolo sobre tijolo na construção de seu Reino, mesmo ciente de que se trata de uma região de constantes terremotos.
III — Pistas para a prédica
A interpretação deste texto não se deve esgotar num apelo moral — que a nada leva em termos de transformação. Deve, isto sim, desembocar numa análise sem meios-termos de nossa realidade e de nossa culpa-divida social e pessoal, evidenciar a nossa aparente impotência e encaminhar para a comprometedora promessa de Jesus aos discípulos que tiveram coragem de pedir: Aumenta-nos a fé! A prédica deve dar pistas sobre onde e como, concretamente, esta nova esperança, nascida da promessa de Jesus, poderá manifestar-se na luta do dia-a-dia, na família, no trabalho, na política, enfim, na preocupação pelo homem como criatura de Deus, sem perder de vista o projeto maior de Deus, a edificação de seu Reino. Se perdermos de vista o projeto maior, forçosamente nos esgotaremos na preocupação pelas pequenas falhas na pintura das janelas e deixaremos de enxergar que os cupins já comeram a estrutura da casa que está por cair sobre as-nossas próprias cabeças.
Passos concretos possíveis:
1. Analisar dois ou três casos da realidade mais imediata ou abrangente, em que é caracterizada a destruição da relação Deus-homem-mundo (a história de uma família marginalizada, como exemplo da marginalização de mais da metade das famílias brasileiras; um caso de poluição, como exemplo da destruição da natureza; um caso de briga, por ninharias ou não, dentro da comunidade….). A nossa evidente culpa-dívida e a nossa aparente impotência precisam tornar-se evidentes.
2. Desafiar a comunidade para o reconhecimento radical e corajoso de que vivemos em classes sociais, nas quais se cristalizou a injustiça, a exploração, a dominação: a classe dos privilegiados e a dos miseráveis; de que estas não são destino, mas consequência de atividade humana injusta e pecaminosa, como o próprio homem, que determina e é determinado por esta sociedade.
3. Denunciar a saída pela tangente (são todos uns preguiçosos…; sempre foi assim…; não tem jeito), como sendo a nossa demissão de colaboradores de Deus. Desafiar para assumir solidariamente a culpa-divida da humanidade. Aguentar com a comunidade — e a gente faz parte dela, do dedão do pé ao último fio de cabelo — esta culpa, sem saídas pela tangente, sem desculpas, sem emplastros, e assumi-la: Aumenta-nos a fé!
4. Desafiar a comunidade para a comprometedora promessa de Jesus: Se tiverdes…, para a esperança de que o assim não precisa ser assim, para uma conversão total de vida, de valores, de ótica, de ideologia. Através de perguntas, apontar para caminhos concretos que esta esperança quer seguir.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Pai, tu és justo; para ti o certo é certo e o errado é errado; junto a ti não há tapeação. Tu nos criaste e nós precisamos de ti para podarmos ser realmente livres e felizes. Tu és o Criador e Senhor. Assim mesmo, em nossa ingenuidade, procuramos domesticar-te, para que a tua vontade confira com os nossos interesses. Perdoa-nos esta má fé. Deixa-nos descobrir que não é possível uivar com os lobos e te adorar simultaneamente, sem te perder. Deixa-nos descobrir que o nosso mundo não reflete mais a tua imagem de amor e de justiça, mas a carranca demoníaca do ódio, da exploração e da injustiça. Assim mesmo, em nossa vesguice procuramos justificar e legitimar, muitas vezes até em teu nome, o estado de pecado em que vive a nossa sociedade de classes, com evasivas, com o silêncio, com a nossa concordância tácita. Perdoa-nos esta ‘má fé. Deixa-nos descobrir toda a feiúra e profundidade de nossa culpa-divida que se reflete nos olhos das crianças esfomeadas, e te rogar em coro com os discípulos: Aumenta-nos a fé!
2. Oração de coleta: Pai amado, muitas vezes temos medo de olhar cara a cara a injustiça e a destruição de teu mundo, nosso mundo, e preferimos virar o nosso rosto, assim como se tu não te importasses mais com ele. Pai amado, muitas vezes temos medo de apostar no teu senhorio sobre este mundo, escondendo-nos atrás de desculpas e evasivas esfarrapadas. Estamos diante de ti e te pedimos que nos dês fé do tamanho de gm grão de mostarda, para que em nós nasça a esperança para lutar pela edificação do teu Reino, em meio a destruição, tristeza e dominação neste mundo. Amém.
3. Oração final: Senhor, é tão bom saber que a humanidade não te é indiferente. É tão bom saber, Senhor, que podemos contar com o teu senhorio na luta por uma vida melhor e mais justa para os que choram de fome e impotência. E tão bom saber, Senhor, que não precisamos viver de consciência embotada e violentada, aceitando o errado pelo certo, o injusto pelo justo. É tão bom saber, Senhor, que não nos precisamos justificar a nós mesmos. Pela liberdade que há na dependência de ti, queremos agradecer e louvar-te. A tua criação geme e sofre, porque se libertou de ti e ficou presa na rede de suas próprias iniquidades, prepotências e injustiças. Quando mandaste o teu Filho, nós o crucificamos primeiro e depois o transformamos em Salvador de almas somente. Quando criaste a tua Igreja, nós começamos a entredevorar e a acomodar-nos, dizendo: Não tem jeito, sempre foi assim, eles são todos uns preguiçosos, pobre é pobre, porque é preguiçoso, neste mundo é assim mesmo: quem mais pode menos chora. Substituímos a tua verdade por meias-verdades. Transformamos a tua Igreja em capacho de poderes mundanos, em porta-voz de ideias e legitimações estranhas à tua Palavra. Por tudo isto te pedimos perdão. Deixa-nos descobrir que somos eternos devedores uns dos outros. Deixa-nos descobrir que tudo a ti pertence e que também nós te pertencemos. Deixa-nos descobrir a força da promessa de teu Filho, de que a fé tão pequena como um grão de mostarda tem poderes para transformar. Deixa-nos descobrir a esperança que há nesta promessa de que o assim não precisa ser assim; que ainda hoje comecemos a discordar das mil formas sutis ou grosseiras de manipulação, de opressão, de exploração e de destruição dos mais fracos de tua criação, de nossos irmãos. Em nome de Jesus Cristo. Amém.
V — Bibliografia
– GOLLWITZER, H. Befreiung zur Solidarität. München, 1978.
– JEREMIAS, J. Die Gleichnisse Jesu. Göttingen. 1976.
– _____. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, 1977.
– KAESEMANN, E. Königsherrschaft Gottes. In: Der Überblick, Stuttgart, 2/80: 10-14, 1980.
– RAGAZ, L. Die Gleichnisse Jesu. 2. ed. Gütersloh, 1979.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Markus. Göttingen, 1968.
Sugestões para leitura complementar:
– CENTRO ECUMÊNICO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO (CEDI), ed. Missão e Evangelização. In: Tempo e Presença. Vol. 28. Rio de Janeiro, s.a.
– GOLLWITZER, H. Die kapitalistische Revolution. München, 1974.