Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 18.9-14
Leituras: Jeremias 14.7-10, 19-22 e 2 Timóteo 4.6-8, 16-18
Autor: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 22º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/10/2010
1. Introdução
Vivemos tempos de religiosidade intensa e exacerbada em nosso país. Todos querem contar com a ajuda de Deus. As orações ocorrem por toda parte e em todas as situações. Nesse contexto, temos de perguntar: que importância têm tido as orações de confissão de pecado nos cultos, nas celebrações coletivas e na espiritualidade individual? Será que elas são valorizadas?
Estão cada vez mais difundidas as orações por bênçãos materiais. São muitos os pregadores que até ensinam que temos o direito de fazer reivindicações e exigências para Deus.
Tudo isso serve para indicar que o problema dos nossos tempos não é a falta de oração, mas o modo como oramos. Os três textos bíblicos de hoje oferecem contribuições nessa direção.
O texto de Jeremias apresenta a oração feita pelo povo de Judá num tempo de crise, quando uma prolongada seca trouxe muita miséria e sofrimento. Suas palavras são de reconhecimento do pecado e de apelo por misericórdia divina. O povo não reivindica direitos, mas simplesmente afirma que “os nossos pecados nos acusam” (Jr 14.7).
Já os versículos da Epístola a Timóteo não são de uma oração, mas de uma autêntica afirmação de fé. Preso, antevendo o fim de sua vida, o apóstolo deposita sua confiança exclusivamente em Deus, “que me livrará de todo mal e me levará em segurança para o seu Reino celestial” (2Tm 4.18). Apesar de ter combatido o bom combate, de ter acabado a carreira e de ter guardado a fé, ele não se fia em seus próprios méritos, mas tão-somente no Senhor (2Tm 4.8).
A parábola do fariseu e do publicano foi colocada por Lucas ao lado da parábola da viúva e do juiz (Lc 18.1-8). Em ambas, o motivo da parábola é explicitado logo no início. A primeira parábola foi contada para “mostrar aos discípulos que deviam orar sempre e nunca desanimar” (Lc 18.1). A segunda, “para os que se achavam que eram muito bons e desprezavam os outros” (Lc 18.9). Com essa última, aprendemos como orar para ter paz com Deus (Lc 18.14).
2. Exegese
2.1 – Uma parábola com endereço certo (v. 9)
O texto inicia esclarecendo a quem se aplica a parábola, o que também ocorre na parábola anterior. Isso representa uma exceção. De um modo geral, a aplicação das parábolas aparece no final. O texto de Lucas, portanto, faz uma inovação. Ao dizer que a parábola “foi contada para os que achavam que eram muito bons e desprezavam os outros”, o texto indica que ela foi apresentada contra eles. Na vida da igreja, com frequência essa parábola tem o seu valor. Pessoas que cultivam uma vida religiosa costumam cair na tentação de se considerar melhores e superiores às demais.
2.2 – Duas pessoas extremamente diferentes (v. 10)
Os fariseus representavam um partido religioso do judaísmo que se caracterizava pelo apego ao estudo e à observância rigorosa da lei mosaica. Seu nome tem origem de expressão aramaica, que significa “os separados”. De fato, o cuidado exagerado na prática de todo o sistema legal religioso fez com que se isolassem dos outros, que eram considerados por eles tanto ignorantes como impuros, pois não estudavam a lei com tanto cuidado nem se aplicavam a observá-la com rigor semelhante ao deles. Por outro lado, no extremo oposto estavam os publicanos. Os romanos costumavam arrendar a cobrança de taxas. Assim, eles mesmos não as arrecadavam, mas transferiam a outros o direito de fazê-lo. Com isso, aqueles que adquiriam tal direito precisavam arrecadar mais do que deviam pagar. Tais pessoas eram os publicanos, que passaram a ser odiados e desprezados por seu próprio povo. J. Jeremias diz: “Em julgamentos públicos, situavam-se ao nível dos ladrões, não tinham direito civil de honra e eram evitados por todas as pessoas de projeção”.
2.3 – A oração do fariseu (v. 11-12)
O fato de o fariseu orar de pé não deve ser interpretado como arrogância. Orava-se de pé. O problema não estava na posição do seu corpo, mas no conteúdo de sua oração. Ela se divide em duas partes. Na primeira, o fariseu agradece a Deus pelos pecados que não cometeu. Na segunda, apresenta a Deus o que fez de positivo. Ao agradecer pelos pecados evitados, fazia questão de destacar que era um “separado”, diferente e superior às outras pessoas. Ao apresentar suas obras, mostrava, mais uma vez, sua superioridade. A lei estabelecia um jejum por ano; o fariseu jejuava duas vezes por semana. Quanto ao dízimo, ele fazia questão de declarar: “Pago o dízimo de todas as coisas que adquiro”. Era um dizimista sensacional. Não se limitava a dizimar o que ganhava, mas também o que comprava. Não queria correr o risco de consumir mercadoria que não tivesse sido dizimada por seu próprio produtor.
2.4 – A oração do publicano (v. 13)
Duas atitudes do publicano na oração, antes que começasse a falar, já demonstram sua humildade: ele “ficou de longe e nem queria levantar o rosto para o céu” ao mesmo tempo em que “batia no peito”. De fato, o publicano não se sentia digno de se aproximar. Apesar de ser hábito entre os judeus elevar os olhos para orar, ele não se atrevia a fazê-lo. Por outro lado, o gesto de bater no peito, isto é, no próprio coração, representava uma manifestação de arrependimento intenso. A tais atitudes do publicano correspondem as palavras de sua oração. Ele nada exige nem reivindica. Simplesmente se atira na dependência da misericórdia divina.
2.5 – O resultado final (v. 14)
Depois de colocar lado a lado as figuras e as orações do fariseu e do publicano, Jesus apresenta o resultado surpreendente da parábola: somente o publicano desceu justificado para a sua casa. Segundo J. Jeremias, “justificado significa aqui agraciado com a aceitação de Deus”. Acrescenta: “Nossa passagem é a única dos evangelhos em que se usa o verbo justificar num sentido próximo do uso paulino do verbo”. E chega à seguinte conclusão: “Nossa passagem mostra que a doutrina paulina da justificação tem suas raízes na pregação de Jesus”. Isso é muito importante. A doutrina da justificação pela graça mediante a fé é uma das mais importantes do ensino de Paulo e da Reforma Protestante do século XVI. Desenvolvida pelo apóstolo principalmente na Carta aos Romanos, suas raízes podem ser encontradas na conclusão da parábola do fariseu e do publicano.
3. Meditação
3.1 – A parábola aos olhos dos judeus daquela época
Dois homens foram ao templo para orar. A oração podia ser feita em qualquer lugar. No entanto, os judeus tinham certas concepções a respeito do templo. Para eles, o templo era considerado a morada de Deus. Representava o espaço que Deus habitava na terra. Isso significa que ir ao templo era um ato de busca da presença de Deus. Se aqueles dois homens foram ao templo, era porque sentiam a necessidade de Deus. E, ao irem àquele lugar para orar, estavam certos. Séculos antes de Jesus, o profeta já dissera em nome do Senhor: “A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Is 56.7). Todavia, houve uma grande diferença entre os dois. A diferença foi o tipo de oração que fizeram a Deus. Ao tomar conhecimento da oração do fariseu, temos de reconhecer que ele apresentava qualidades e virtudes. Para começar, sua oração foi de gratidão. Isso é coisa rara. São poucas as pessoas que se lembram de orar para agradecer. Em geral, oram para pedir. Portanto o fariseu fez algo raro: agradeceu. Mais ainda, agradeceu pelos defeitos que não possuía: não ser avarento; não ser desonesto; não ser imoral. Não rendeu graças somente pela ausência de imperfeições. Ao contrário, foi além e manifestou gratidão por suas virtudes e práticas positivas: jejuava muito mais do que a lei prescrevia; dizimava além do que era estabelecido pelas normas divinas.
Só havia um problema. Ele se considerava superior aos outros. Achava que era melhor do que os outros. Chegava até a desprezar os outros por causa de suas qualidades e virtudes pessoais. Porém isso não devia ter a menor importância. No cômputo geral, ele era sensacional diante de Deus. Certamente Deus precisava de gente semelhante a ele. Aos olhos dos judeus do tempo de Jesus, se houvesse muito mais fariseus semelhantes àquele, o mundo seria melhor.
Na realidade, as boas qualidades do fariseu destacavam-se ainda mais tendo em vista a pessoa que tinha subido ao templo, junto com ele, para orar. O fato é que o companheiro do fariseu no templo era um desprezível publicano. Para os judeus daquele tempo, ele representava um dos piores tipos existentes na face da terra. Eram traidores de seu próprio povo. Cobravam taxas em favor dos dominadores romanos. Para conquistarem vantagens pessoas, tinham se aliado aos inimigos estrangeiros. Por ambição, cooperavam com os adversários.
Além disso, era público e notório que ficavam ricos com sua atuação. Boa parte dos recursos que coletavam não ia para Roma, mas para seus próprios bolsos. Por causa de tudo isso, na concepção geral dos judeus, era difícil haver gente pior do que eles. Aliás, o jeito de orar e a própria oração daquele publicano demonstravam que ele não valia nada. Ficou lá no fundo do templo. Não teve a coragem de levantar a cabeça. Apresentava-se cabisbaixo. Não podia ser de outra maneira. Seus pecados não eram ocultos. Todo mundo sabia de suas falhas. E, certamente, Deus sabia e conhecia muito mais a respeito de sua vida pecaminosa. Pior ainda: ele se atrevia a colocar seus pés pecaminosos no sagrado templo do Senhor. Tinha a audácia de dirigir-se a Deus em oração. Manifestava a petulância de solicitar que Deus tivesse misericórdia dele. E, além disso, não fazia nenhuma promessa. Não prometia que iria mudar de vida. Não prometia que iria distribuir seus bens entre os pobres. Nada disso! Só rogava a Deus que tivesse misericórdia dele.
Diante dos fariseus e publicanos, era exatamente assim que reagiam os judeus do tempo de Jesus. Era isso o que pensavam ao acompanhar a exposição da história que lhes estava sendo contada.
3.2 – A parábola aos olhos de Jesus
Foi duro de engolir! Foi difícil de aceitar! Mas o fato é que Jesus terminou sua parábola dizendo assim: “Eu afirmo a vocês que o publicano voltou para casa em paz com Deus”.
Por que isso? Será que Deus é injusto? Será que Deus é sempre do contra? Na verdade, a parábola tem um ensino e uma mensagem. Seu ensino é que o ser humano depende, exclusivamente, da graça de Deus. Todas as pessoas podem desfrutar de paz com Deus unicamente se confiarem não em seus próprios méritos, mas tão-somente na misericórdia do Senhor.
Foi este o grande erro do fariseu: ele confiou em si mesmo, em suas obras, em suas virtudes, em suas qualidades. Na verdade, ele confiava tanto em si mesmo, que nem precisava de Deus. Era Deus quem precisava dele. Um comentarista chegou a escrever que “as palavras do fariseu não eram nem oração, mas fanfarronada”.
Por outro lado, essa foi a única coisa correta no comportamento do publicano: ele confiou em Deus, em sua misericórdia e em sua graça. J. Jeremias comenta: o publicano ora usando “as palavras do começo do Salmo 51, apenas acrescentando ‘pecador’… No mesmo Salmo 51, porém, diz-se: ‘O sacrifício que agrada a Deus é um espírito contrito; um coração contrito não desprezarás, ó Deus’ (v. 19). Assim é Deus, diz Jesus, como está escrito no Salmo 51. Ele diz sim ao pecador desesperado e não àquele que se autojustifica. Ele é o Deus dos desesperados e sua misericórdia com os de coração contrito é sem limites. Assim é Deus”.
4. Imagens para a prédica
4.1 – Uma oração do Talmude, do século I dC, semelhante à oração do fariseu
“Eu te agradeço, Senhor meu Deus, porque me deste parte junto daqueles que se assentam na sinagoga, e não junto daqueles que se assentam pelas esquinas das ruas; pois eu me levanto cedo, e eles também se levantam cedo; eu me levanto cedo para as palavras da Lei, e eles para as coisas fúteis. Eu me esforço, e eles se esforçam; eu me esforço e recebo a recompensa; eles se esforçam e não recebem recompensa. Eu corro e eles correm; eu corro para a vida do mundo futuro, e eles para a fossa da perdição” (citado por J. Jeremias).
4.2 – Uma oração de ação de graças
“Portanto, que o corpo que formamos em Cristo esteja todo em bom estado e que cada um seja submisso ao próximo conforme a graça que lhe foi dada. Que o forte proteja o fraco; que o fraco respeite o forte; que o rico ajude o pobre; que o pobre dê graças a Deus, que lhe deu com que suprir sua insuficiência; que o sábio mostre sua sabedoria, não em palavras, mas em boas ações; que o humilde não dê testemunho de si mesmo, mas espere dos outros a aprovação. Meditemos, pois, irmãos meus, de que matéria nascemos, quem somos e em que estado viemos ao mundo, de que túmulo e de que trevas aquele que nos formou e criou nos fez passar para seu universo, depois de nos ter preparado seus benefícios antes de nosso nascimento. Possuindo tudo por ele, devemos dar-lhe graças por tudo. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém” (Carta de Clemente de Roma).
5. Subsídios litúrgicos
Salmo 51
Tem piedade, Senhor, tu que és o amor fiel! Pela tua bondade imensa apaga a minha culpa.
Lava toda a minha iniquidade. Só tu, Senhor, podes purificar-me dos meus pecados.
Agora vejo claro o mal que cometi; tenho consciência de ser pecador. Agi contra ti, Senhor! Foi esse o meu pecado.
Pratiquei o que é mau aos teus olhos. Reconheço agora o teu direito de condenar-me.
A tua sentença contra mim será inteiramente justa. Sinto a iniquidade dentro de mim desde o nascimento.
Já no seio de minha mãe estava contaminado pelo pecado. Essa é a verdade que te agrada encontrar em mim.
É a sabedoria que me ensinas pela voz da minha consciência.
Purifica-me, Senhor, dos meus pecados e ficarei limpo, tão puro quanto a neve.
Faze-me sentir de novo a alegria de viver,
E meu abatimento se transformará em ânimo e coragem.
Desvia de uma vez o teu olhar do meu pecado, apaga a mancha da minha culpa.
Senhor, cria em mim um coração puro e infunde-me maior firmeza.
Não me afastes da tua presença, jamais retires de mim teu Santo Espírito. Faze reviver em mim a alegria da tua salvação,
Desperta-me novamente uma generosidade maior.
Então poderei revelar aos transgressores os teus caminhos, E os pecadores voltarão para ti.
Rompe o silêncio que me envolve, pois quero anunciar que és um Deus justo.
Tu, Senhor, que me salvaste, ajuda-me a encontrar palavras para cantar o teu louvor.
Não me pedes grandes sacrifícios, não te agradam os holocaustos que te ofereço.
O sacrifício que tu aceitas é a contrição do espírito.
Um coração contrito e humilhado tu não desprezas, Senhor!”
(Francisco Teixeira e Carlos Mesters. Rezar os Salmos hoje. São Paulo: Duas Cidades, 1998).
Oração:
“Ó Senhor, nosso Deus. Tu te humilhaste para que fôssemos exaltados. Tu te tornaste pobre para que pudéssemos ser enriquecidos. Tu vieste a nós para que fôssemos a ti. Tu te fizeste humano, como nós, a fim de que participássemos na vida eterna. Tudo isto em virtude de tua graça livre, que não merecemos, e por meio de teu Filho, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”. (Karl Barth, in: Conselho Mundial de Igrejas. Em favor de todo o povo de Deus. Petrópolis: Vozes,
1981).
Oração:
“Sou feliz porque tu me aceitas, querido Senhor. Algumas vezes nem sei o que fazer com tanta felicidade. Jogo-me em tua graça como as baleias no oceano. Dizem que o oceano jamais há de secar. Nós sabemos que a tua graça jamais há de falhar. Querido Senhor, a tua graça é a nossa felicidade. Aleluia!” (Oração procedente da África Ocidental, in: Conselho Mundial de Igrejas. Em favor de todo o povo de Deus. Petrópolis: Vozes, 1981).
Bibliografia
CERFAUX, L. O Tesouro das Parábolas. São Paulo: Edições Paulinas, 1974.
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus. São Paulo: Edições Paulinas, 1976.
STUHLMUELLER, C. P. Evangelho de Lucas. São Paulo: Edições Paulinas, 1975.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).