Jesus nos ensina a orar com humildade
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Lucas 18.9-14
Leituras: Jeremias 14.7-10,19-22 e 2 Timóteo 4.6-8,16-18
Autoria: Antonio Carlos Oliveira e Gabriel Henrique de Oliveira Pinto
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/10/2022
1. Introdução
As leituras bíblicas propostas para este 20º Domingo após Pentecostes oferecem uma reflexão importante a respeito da prática da oração com humildade. Estamos na proximidade da celebração dos 505 anos da Reforma Luterana. Vale destacar que o tema da humildade, no que se refere à relação da pessoa humana com Deus, é assunto central na doutrina luterana. Como lemos no comentário de Lutero ao Magnificat: “[…] Deus é aquele que está no mais alto e nada existe acima dele, ele não pode olhar para além de si. Também não pode olhar para os lados, porque ninguém é igual a ele. Por isso precisa olhar fatalmente para si mesmo e para baixo. Quanto mais baixo alguém está, tanto melhor Deus o enxerga” (LUTERO, 1999, p. 13).
O texto do livro do profeta Jeremias traz a oração do povo de Judá feita em um momento de sofrimento por causa de uma grande estiagem. A seca trouxe fome e miséria. A crise atingiu o povo, que orou reconhecendo seus pecados e pedindo por perdão e misericórdia divina. Não são palavras de reivindicação, mas sim de humildade e clamor ao socorro de Deus.
Em 2 Timóteo, a passagem prevista não trata sobre uma oração propriamente dita, mas sobre uma confissão de fé do apóstolo Paulo. Pois ele, sentindo que o fim de sua vida se aproxima, deposita toda a sua confiança em Deus. Paulo, mesmo tendo do que se orgulhar diante de Deus, não coloca a sua esperança em seus feitos ou méritos, mas tão somente na preciosa e imerecida graça de Deus.
2. Exegese
No texto de Lucas 18.9-14 Jesus conta uma parábola em que dois homens de diferentes segmentos da sociedade se dirigem até o templo para orar. É válido lembrar que a oração é um tema pertinente no Evangelho de Lucas. O fariseu, que do ponto de vista religioso e social é bem visto por suas obras, não vai para casa justificado. Por sua vez, o publicano, cobrador de impostos, que é mal visto pela sociedade e também pela religião, vai embora justificado. Os fatores que a sociedade, a religião e os próprios personagens usam como critério de superioridade religiosa ou espiritual não refletem os critérios que Deus usa para a justificação.
A relação de Jesus com os fariseus é conturbada, como fica claro em várias passagens de conflitos. E a questão que complica essa relação é a forma como os fariseus se relacionam com Deus e com o próximo e também porque se consideram melhores ou superiores às outras pessoas do ponto de vista religioso e espiritual. Jesus sempre chama a atenção deles de que Deus vê aquilo que as pessoas não podem ver: as intenções do coração. Pouco antes dessa parábola, Jesus contou a parábola do administrador infiel e foi zombado pelos fariseus. Mas ele respondeu à altura (Lc 16.15): Vocês são os que se justificam diante dos homens, mas Deus conhece o coração de vocês; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus. Nesse mesmo sentido, encontramos em Mateus 23.27-28: Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas, porque vocês são semelhantes aos sepulcros pintados de branco, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vocês, por fora, parecem justos aos olhos dos outros, mas, por dentro, estão cheios de hipocrisia e de maldade. Essas situações anteriores à parábola do fariseu e do publicano ajudam a entender seu significado, como também fica evidente no início do texto de que ela é para as pessoas que estão convictas da própria justiça e, por isso, desprezam os outros (v. 9).
Os fariseus ou “os separados”, que é o significado de origem da palavra no aramaico, representavam um partido religioso do judaísmo. Eles eram radicais na observação da Lei. Por isso se achavam melhores e desprezavam as outras pessoas. Eram extremamente legalistas, ou seja, o cumprimento das regras e das leis era mais importante para eles do que qualquer outra coisa, para alcançar a justiça divina. Dessa forma, até mesmo a misericórdia com o próximo é desprezada. Isso é expresso pelos fariseus em relação aos publicanos não somente na comparação e desprezo demonstrado na oração (v. 11). Em outros questionamentos os fariseus perguntaram para os discípulos de Jesus sobre sua relação com os publicanos (Lc 5.30): Por que vocês comem e bebem com os publicanos e pecadores?. Afinal, os publicanos eram tidos pela sociedade como ladrões e evitados pelas pessoas, com bastante desprezo. Isso se deve ao fato de que os publicanos eram cobradores de impostos, faziam isso como arrendatários dos romanos e, para ganharem alguma coisa, deveriam arrecadar mais do que deveriam pagar em impostos, o que fazia com que fossem odiados e desprezados pela sociedade como um todo, inclusive no âmbito religioso.
As orações do fariseu e do publicano expressam como eles se sentem e como se julgam em relação a Deus. O fariseu agradece a Deus por não ser como as outras pessoas, por se considerar melhor que elas. Para ele, as outras pessoas são ladras, injustas e adúlteras. Entre as “piores pessoas” ele menciona o publicano com desprezo. Ao seu modo de ver a justificação, o fariseu acredita fielmente que suas boas obras e ações religiosas lhe garantem méritos com Deus. Ele inclusive pontua as práticas exteriores e espirituais em sua oração. Por isso chega a apontar para as outras pessoas, julgando-se espiritualmente superior, mesmo que tenha pecados encobertos no interior, pela prática externa da religião. O fariseu confiava em si mesmo e até orava de si para si mesmo, evidenciando que ele não se mostrava confiante na graça e na justificação de Deus, mas nos seus próprios méritos (v. 11). No extremo oposto, o publicano orou reconhecendo seus erros, de uma forma tão profunda e com tamanha demonstração de arrependimento, que sequer levantava os olhos ao céu, batendo no peito (tristeza extrema) e clamando por seus pecados, ou seja, demonstrava isso também fisicamente. Provavelmente se sentia inferior às outras pessoas na religião e na vivência de sua espiritualidade (orava de longe) das demais pessoas no templo. Seu único pedido é como uma súplica pela misericórdia de Deus, como demonstra sua oração (v. 13).
A conclusão da parábola é que o publicano foi para sua casa justificado por Deus e o fariseu não (v. 14a). O motivo dado é de que todo aquele que se exalta (o fariseu que confiou sua justificação em si mesmo, e não demonstrou nenhuma necessidade de Deus) será humilhado; mas o que se humilha (o publicano, ao reconhecer seus pecados perante Deus em oração e demonstrar que confia sua justificação na misericórdia de Deus) será exaltado (v. 14b). Na Carta aos Filipenses, o apóstolo Paulo se descreve nas duas situações. Como fariseu, quanto à justiça que há na lei, era irrepreensível (Fp 3.5-6). Mas para ser achado em Cristo, ele admite não ter mais justiça própria que proceda da lei, senão a justiça que procede de Deus, baseada na fé (Fp 3.7-9). Portanto a passagem de Lucas está muito próxima ao pensamento paulino da justificação por graça e fé.
3. Mensagem
A temática da oração recebe de Jesus uma atenção especial, sendo refletida e recomendada em muitas passagens dos evangelhos. De modo especial, Lucas se dedica ao tema da oração, dando grande importância a uma comunicação efetiva e afetiva com Deus. O próprio Jesus é apresentado como uma pessoa orante e que estimula seus seguidores e suas seguidoras a ter na oração uma de suas atividades principais. Pois algo fundamental para o seguimento de Jesus é a prática constante da comunicação com Deus. “Os discípulos de Jesus são convidados a orar o Pai-nosso [sic] (Lc 11.1), a perseverar na oração (Lc 18.1ss; 21.36), a orar com fé e com a familiaridade de um amigo (11.9-13), com a convicção de alcançar o que pedem; na luta pela justiça (Lc 18.1-8), com a humildade do publicano (Lc 19.9-14), a confiança do filho que abandonou o Pai (Lc 15.21) e com a consciência de Pedro que se sente pecador (Lc 5.8)” (MOREIRA, 2004, p. 48-49).
Lucas leva-nos a compreender que o ato da oração é uma forma de comunicação em que o mais importante é falar com sinceridade e humildade, expressar os sentimentos com confiança e fé, ou seja, abrir o coração para Deus na certeza de que ele ouve e acolhe. No entendimento judaico, o coração é o centro da vida, local das opções fundamentais e das decisões (Lc 6.45). Portanto uma oração, para ser verdadeira, precisa vir do coração, do concreto da vida, tratar do que é importante e impactante, daquilo que mobiliza nossos pensamentos e ações. A oração verdadeira deve nos levar ao coração da vida, nos fazer ouvir do que o coração está cheio, “seus sentimentos mudos, os medos inconfessos e as queixas silenciosas; entender o que está errado e atender às suas reais necessidades” (MOREIRA, 2004, p. 49).
Na perícope anterior, Lucas 18.1-8, a parábola da viúva persistente e do juiz iníquo é apresentada como um exemplo de que a oração deve ser perseverante. Orar sempre e nunca desanimar é um conselho valioso de Jesus para seus seguidores e suas seguidoras. Em Lucas 18.9-14 Jesus aborda mais uma importante dimensão da oração, a saber, a humildade.
Na sociedade em que vivemos, valorizam-se os méritos. Ou seja, considera-se uma pessoa melhor ou mais importante devido ao cargo que ela ocupa, à sua profissão, à sua formação, a títulos acadêmicos, à conta bancária e a suas propriedades. Tudo isso que uma pessoa ostenta faz com que ela seja considerada pelas demais pessoas como uma pessoa importante, bem-sucedida. Em outras palavras, “abençoada por Deus”. Esse era também o caso do fariseu, que se considerava melhor que as outras pessoas, como demonstra sua fala arrogante.
Mas, na visão de Jesus, esse comportamento não tem sentido algum. Não importa quem é a pessoa, seus status ou o lugar que ela ocupa na sociedade. Deus não liga para aparências, títulos ou posses. Deus busca apenas corações sinceros, arrependimento e a mudança de atitudes erradas. Conforme Hebreus 10.22, aproximemo-nos com um coração sincero, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e o corpo lavado com água pura.
Jesus ensina que, diante de Deus, ao orarmos, precisamos ter sinceridade e humildade, colocando-nos humildemente diante de Deus, sem autoelogios ou nos comparando a outras pessoas. Na relação com Deus, seremos sempre “pobres”, pessoas necessitadas de seu perdão. Pois nada que tenhamos ou façamos é capaz de comprar as benesses e as misericórdias de Deus. Sendo humildes, somos o que realmente somos, estaremos em nosso lugar e Deus estará no lugar dele.
Ao destacar a atitude do publicano, Jesus aponta para a correta relação com Deus. Na “justificação por graça e fé” entendemos que, diante de Deus, não somos pessoas justificadas por méritos ou boas obras, mas unicamente recebemos a justificação pela infinita graça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo. O publicano não exige ser justificado. Ele apenas expressa o profundo arrependimento que sente em seu coração, batendo no peito, entregando suas incoerências ao único que pode perdoá-lo. Talvez existam na vida desse publicano aspectos positivos que poderiam ser lembrados por ele, mas isso não vem ao caso. Diante de Deus ele é apenas um humilde pecador. O texto seguinte, Lucas 18.15-17, exemplifica essa relação com Deus. No v. 17, lemos: […] Quem não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Uma criança não pode ressaltar seus méritos ou se autojustificar com suas boas ações. Ela é totalmente dependente daquele que a pode cuidar, abençoar e salvar.
4. Imagens para a prédica
“Você sabe com quem você está falando?” Essa expressão é usada quando alguém quer dar um “carteiraço” e mostrar que se trata de alguém importante, não se tratando de uma pessoa qualquer. Assim na base do “carteiraço”, às vezes, se consegue o que se quer, passar na frente, receber primeiro, se livrar de uma multa. O fariseu, no texto citado, quer dar um “carteiraço” em Deus. Ele enumera para Deus seus méritos e boas ações para provar que é muito melhor que as outras pessoas, inclusive, do que aquele publicano ao seu lado. Não se sabe exatamente o que esse fariseu quer, pois sua oração é apenas autoengrandecimento diante de Deus. Talvez este seja justamente seu problema: sua arrogância pode camuflar sua baixa autoestima e o fato dele sentir em seu íntimo justamente o oposto, sua insignificância. Ele não pede nada, mas precisa que Deus o considere mais importante que as outras pessoas.
Também podemos entender que nós somos uma mistura de fariseu e publicano. Se “shipparmos” as palavras, resultaria em “faricanos” ou “publiseus”. Nossos comportamentos diante de Deus contêm, muitas vezes, esses dois lados, sendo uma falsa humildade. Isso porque, ao reconhecer a culpa e pedir perdão a Deus, já nos consideramos melhor que outros infiéis que não buscam a misericórdia divina. Ao orar, agradecemos por tudo de bom que recebemos de Deus e com isso rebaixamos as outras pessoas que não receberam o mesmo. Ao contribuir com a igreja, pensamos em outras pessoas que poderiam ajudar e não o fazem.
5. Subsídios litúrgicos
Oração silenciosa de confissão de pecados:
L.: (costura) Orar de maneira humilde significa, primeiramente, abrir o coração e desnudar-se de suas aparências diante de Deus. É preciso ser igual a uma criança que estende os braços e confia, que se aninha no colo de Jesus para ser abençoada, que chora quando sente vontade, que fala com sinceridade onde dói, onde pesa a consciência, onde não consegue melhorar. Agora coloquem as mãos próximas ao coração, fechem os olhos e silenciosamente falem para Deus os seus pecados, os seus erros e as suas omissões. Peçam humildemente e sinceramente o perdão de Deus.
C.: (A comunidade ora em silêncio por cerca de um minuto.)
L.: A Palavra de Deus em Lucas 18.13 nos diz: O publicano, estando em pé, longe, nem ousava levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: “Ó Deus, tem pena de mim, que sou pecador!”.
Anúncio da graça:
L.: (Mostre um cartaz com a palavra coração.) Dentro da palavra coração está a palavra oração. Isso significa que Deus acolhe a oração que vem do coração. Assim ele acolheu a confissão humilde e silenciosa que fizemos. Deus em seu amor e sua misericórdia perdoa quem com sinceridade e coração arrependido lhe confessa seus pecados. Deus também dá forças para que possamos corrigir nossos erros e reparar o mal que praticamos. Assim, a vocês que “abriram seu coração para Deus”, por ordem de Jesus Cristo, anuncio o perdão de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!
Bibliografia
LUTERO, Martim. O louvor de Maria (O Magnificat). São Leopoldo: Sinodal, 1999. 122 p. (Coleção Lutero para hoje).
MOREIRA, Gilvander Luís. Lucas e Atos: uma teologia da história teologia lucana. São Paulo: Paulinas, 2004.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).