Encontros e desencontros: a superação das barreiras nos caminhos da vida
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Lucas 19.1-10
Leituras: Isaías 1.10-18 e 2 Tessalonicenses 1.1-4, 11-12
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/10/2016
1. Introdução
No tempo comum, somos desafiados e desafiadas a pensar na fé que acontece e se desenvolve em nosso cotidiano. A fé em ação é tema central na perícope desta reflexão e também nas demais perícopes. Porém há um questionamento à fé que se estabelece em torno de rituais repetitivos, mas que não promovem justiça. Assim, o texto de Isaías é um clamor contra a injustiça praticada por aqueles que celebram as festas e praticam os rituais. O texto de 2 Tessalonicenses é a gratidão por uma fé ativa. Fé ativa que promove a prática da justiça. Esse é o desafio. Esse tema permeia a perícope de Lucas e leva-nos a perceber como o exercício da fé consolida-se na relação de luta pela justiça e pela dignidade do outro e da outra, de modo especial daquelas pessoas que mais sofrem em nossa sociedade.
2. Exegese
Dois temas importantes na obra redacional lucana (Lucas e Atos) encontram-se nessa perícope: o caminho e a mesa. Para entender a importância desse tema, precisamos compreender o entorno da comunidade lucana.
2.1 – O contexto da comunidade
a) Localizando a comunidade: memória de Antioquia Teremos que assumir alguns pressupostos para nortear nosso entendimento sobre a comunidade. O primeiro é que a comunidade está localizada em Antioquia. No livro de Atos, percebemos o destaque que essa cidade recebe. É para onde Barnabé é enviado; é onde Paulo, depois da conversão e de um tempo em Tarso, é acolhido; é onde o título de cristão é atribuído aos seguidores de Jesus; é de onde partem as missões que levarão o evangelho até os confins da terra – na linguagem irônica de Lucas: Roma.
A importância dessa cidade marca a memória da comunidade. Localizar Lucas/Atos em Antioquia aponta-nos uma realidade de fronteira entre o mundo siro-palestinense e o mundo greco-romano. Tradição judaica e tradição gentílica encontram-se e convivem nesse espaço. Por isso o caminho e a mesa são tão importantes.
b) Caminho – onde os diferentes se encontram
A ênfase no caminho dá-se tanto na perspectiva de movimento como de oportunidade. Movimento do evangelho e oportunidade do encontro.
A obra lucana, quando lida em conjunto, oferece ao leitor o caminho do evangelho. A boa notícia anunciada aos pastores no início do evangelho passa por Jerusalém e é difundida até Roma, os confins da terra. Esse movimento possibilita que um evangelho diferente do evangelho de Roma faça o caminho inverso. Não é a boa notícia da vitória violenta de um imperador saindo de Roma e espalhando-a pela terra. É a boa notícia de salvação e de restauração saindo da manjedoura, passando por Jerusalém, espalhando-se pelo mundo e chegando a Roma.
Mas o caminho é espaço plural. Nele os diferentes encontram-se. No evangelho, temos dez capítulos descrevendo Jesus caminhando da Galileia até Jerusalém (9.51-19.40). Nesse caminhar, Jesus envia discípulos às cidades; encontra-se com samaritanos; hospeda-se em casa de mulheres – Marta e Maria; cura impuros (enfermos, possuídos) e senta-se à mesa com impuros – o tema de nossa perícope. No livro de Atos, a partir do capítulo 6, o caminho e o caminhar tornam-se ênfase. Pedro, mesmo contra a vontade, vai pregar para Cornélio em Cesareia. Paulo, ora impelido, ora impedido pelo Espírito, caminha levando o evangelho.
O caminho é lugar de encontros, desencontros e superação das diferenças.
c) Hospitalidade e mesa – espaço de conflito
Um segundo tema importante e que atravessa os dois escritos da obra redacional lucana é a mesa. A mesa é um lugar decisivo nesses escritos. Porém não podemos esquecer que a mesa de refeições é tema recorrente nas discussões sobre a prática da hospitalidade. Por isso, mesmo que a palavra mesa ou refeição não apareça em nossa perícope, a afirmação de Jesus de que ele necessitava permanecer na casa de Zaqueu insere o texto na prática da hospitalidade, fundamental nessa sociedade. Devido à influência greco-romana, a hospitalidade, praticada por um patrono, era espaço de intercâmbio, de uma partilha mínima, de alguma distribuição ou redistribuição de bens. Por isso, na dinâmica do recebimento do hóspede, a refeição tornava-se parte importante nessa mudança de status: de estrangeiro para hóspede. Porém as percepções do mundo greco-romano e do mundo judaico sobre a hospitalidade e sobre o assentar-se à mesa eram diferentes.
Para a cultura greco-romana, a mesa era um lugar de superação de diferenças. O estrangeiro tornava-se hóspede. Com isso as relações de amizade, aliança, negócios etc. faziam-se possíveis. Na mesa, os estranhos tornavam-se próximos.
Para a cultura judaica, no entanto, a mesa era um lugar de afi rmação étnica e ética. Não se assentava à mesa com um impuro. Os critérios de pureza eram defi nidos em termos de rituais de purificação (como, por exemplo, lavar as mãos), rituais de saúde (enfermos e portadores de deficiência estavam banidos) e sanguíneos (um judeu deveria sentar-se à mesa com um judeu). Com essas práticas culturais a mesa tornava-se espaço de segregação.
O problema é que o cristianismo tem na participação na mesa o seu sacramento cotidiano. “Toda vez que comer” pode indicar que toda refeição seria feita em memória de Cristo. Na leitura a partir da tradição, pelo menos uma vez por semana as pessoas deveriam ter uma refeição digna, realizada na comunidade em memória de Cristo. Em uma comunidade de fronteira isso se torna complicado. Judeus e gentios convertidos ao cristianismo deveriam sentar-se à mesa juntos. Aqui o conflito se estabelece.
Frente ao conflito, a ênfase da obra literária lucana é sentar-se à mesa com os pecadores (como é o caso de nossa perícope), sentar-se à mesa com o estrangeiro desconhecido (os discípulos de Emaús). Não desprezar as viúvas gregas na partilha do alimento e não impor ao povo de Antioquia valores do mundo judaico são exemplos do livro de Atos. A mesa que congrega os diferentes restaura a vida e propicia salvação. É aqui, nesse ponto, que nossa perícope se localiza.
2.2 – A perícope
Nossa perícope, como afirmamos, encontra-se no conjunto de relatos da viagem de Jesus em direção a Jerusalém. Alguns detalhes merecem destaque:
a) Jesus atravessava a cidade
O verbo usado (dierchomai) é comum em Lucas e Atos e fortalece esse sentido de movimento. Jesus está no caminho, atravessando a cidade. No caminho, o encontro acontece.
b) Jesus, Zaqueu e a árvore
Zaqueu é um impuro. Um cobrador de impostos era considerado impuro. Cobrador de impostos aparece no Evangelho de Mateus na mesma categoria das prostitutas (Mt 21.31). O recebimento do tributo colocava-o em contato com moedas e produtos ou tocados e conduzidos por pessoas impuras ou de origem impura. Desse modo, além de odiado pela população devido à função de recolher o imposto da dominação, era também religiosamente excluído devido à impureza adquirida pelo contato com tributos contaminados. É nessa situação que o encontro acontece. Há muitas discussões sobre a árvore em que Zaqueu sobe (se seria uma árvore ou uma varanda, por exemplo, uma vez que a palavra usada para definir a árvore só aparece uma vez no Novo Testamento e, consequentemente, é de difícil tradução). O grande foco deve ser o olhar. No caminho, as adversidades são superadas e Jesus vê Zaqueu. O impuro é enxergado.
c) Jesus, Zaqueu e a refeição
O olhar de Jesus ao encontrar o impuro no caminho provoca uma mudança. Como afi rmamos acima, na cultura judaica, tomar a refeição junto era sinal de encontro dos puros, enquanto no mundo grego o anfitrião, ao convidar o estrangeiro para sua casa e consequentemente à sua mesa, mudava-lhe o status, tornando o estrangeiro/diferente em hóspede. No encontro de Jesus e Zaqueu, tudo acontece diferente. Jesus vê o impuro Zaqueu e convida-se a permanecer na casa dele. Para a cultura judaica, hospedar-se com o impuro é inaceitável. Para a cultura grega, ao se convidar, destitui Zaqueu do papel de anfitrião, de patrono do acolhimento e, consequentemente, da refeição. Encontramos aqui a novidade. Os valores são confrontados e transformados. O que segue a partir desse ponto é surpreendente.
d) Jesus, Zaqueu e um novo olhar
Quando lemos os diversos comentários sobre a atitude de Zaqueu após partilhar o alimento com Jesus, encontramos uma ênfase na conversão, na restituição do que foi roubado. Há uma ênfase na disponibilidade de mudar de vida. Ou seja, o foco recai sobre a salvação que chega à casa de Zaqueu à medida que ele muda sua postura. A ênfase é na mudança de atitude, de postura do indivíduo. Não podemos negar que isso faz parte do texto. Porém temos que perceber que há dois movimentos que devem ser valorizados aqui.
O primeiro movimento é que, no encontro de Jesus e Zaqueu, a dignidade de Zaqueu é resgatada. Ele é designado como filho de Abraão. O impuro Zaqueu agora é descendência pura. No encontro dos diferentes, a dignidade é recuperada.
O segundo movimento é de Zaqueu. Ao anunciar que dará metade dos bens aos pobres, o ato transforma-se em palavras de salvação. Não é apenas a mudança de atitude, tão valorizada como afirmamos acima. É também uma mudança de olhar. Ele passa a perceber os pobres. O olhar de Jesus que resgatou a dignidade de Zaqueu transforma-se no olhar de Zaqueu, que enxerga os pobres e assume o compromisso de resgatá-los. Esse novo olhar é salvífico.
No caminho e no encontro dos diferentes, a vida é resgatada, a dignidade recuperada. Não apenas a de Zaqueu como também a dos pobres. Isso é verdadeiramente palavra de salvação.
3. Meditação
Vivemos em um mundo imagético. Com o poder das mídias de comunicação temos acesso a imagens provindas dos mais diferentes espaços de nosso globo terrestre. Muitas dessas imagens compartilham situações de degradação da vida humana, de violência contra animais e destruição do meio ambiente. Temos acesso, em escala global, à percepção da maldade do ser humano. O problema é que esse acesso não gera indignação, não gera mobilização. A sociedade moderna perdeu a capacidade da indignação. O nosso olhar ao outro, ao diferente, acaba gerando indiferença, medo ou violência. A intolerância cresce. A apatia também.
Zygmunt Bauman lembra, em seu livro Confiança e Medo na Cidade, que no passado as cidades construíam muros para proteger os que viviam nela (contra os ataques externos). Hoje, as cidades constroem muros dentro dela para proteger grupos de outros grupos da mesma cidade.
O olhar para o outro, para o diferente, gera muros. O medo, a violência e o preconceito crescem em nosso mundo e em nossas cidades. Diante disso, o texto do Evangelho de Lucas leva-nos a repensar nossa forma de vivenciar a fé. Jesus aparece no relato como aquele que tem a capacidade de enxergar na multidão aquele que não é visto. Não apenas enxerga como muda as relações esperadas tanto na sociedade judaica (não se aproximar de alguém nessa condição) como também na sociedade greco-romana (ser acolhido como hóspede pelo patrono). Jesus enxerga, aproxima-se e possibilita a restauração da dignidade de Zaqueu.
Porém a restauração da dignidade acontece quando Zaqueu, à luz do olhar de Jesus que o enxergou no caminho, tem também o seu olhar transformado, passa a enxergar os pobres e divide seus bens com eles. O processo de dignifi cação do ser humano completa-se. A salvação chega à casa de Zaqueu.
A capacidade de olhar o que sofre, o que é diferente, o que está à margem da vida pede uma transformação na forma de olhar. Torna-se necessário sair da zona de conforto. O Evangelho de Lucas coloca o caminho como lugar das oportunidades. Ao sair dos guetos da existência e colocar-se a caminho, encontros e desencontros, conflitos e superações forjam uma nova forma de existir. A vida acontece “no caminho”. Por isso, na obra literária lucana, são chamados de cristãos “os do caminho”. Ser cristão é ser peregrino, um peregrino com a capacidade de olhar e amar.
4. Imagens para a prédica
Caso haja possibilidade de projeção de imagens, sugerimos projetar a imagem que se encontra no seguinte site: http://imghumour.com/categories/comic-strips/view/people-nowadays (Veja imagem logo abaixo)
A charge mostra alguém se afogando (apenas com a mão fora da água) e um grande grupo de pessoas tirando fotos com o celular. Lamentavelmente, em nossos dias, a tragédia humana não tem despertado compromisso. Tem se tornado alvo das câmeras fotográficas.
Outra possibilidade para trabalhar imagens com a comunidade é trazer à memória situações vividas em seu entorno, onde o olhar das pessoas diante de situações de tragédia e de limites da vida humana foram apenas olhares de curiosidade ou de indiferença.
5. Subsídios litúrgicos
Colocamos como subsídio para a liturgia a música de Xico Esvael, O Olhar de Quem Sabe Amar. Essa canção pode ser cantada se a comunidade a conhecer ou a letra pode ser lida em forma de responso. Nós a sugerimos no momento final do culto como ato de dedicação e compromisso da comunidade.
O Olhar de Quem Sabe Amar
Xico Esvael
O olhar de quem sabe amar
Tem o brilho das manhãs de sol
“Ilumina as faces e distingue as cores
Canta a vida como um rouxinol”
O olhar de quem sabe amar
Não tem medo de mirar no olhar
“Partilhar os sonhos, sem fitar medonho
No caminho a fé lhe faz andar”
Refrão
O olhar de quem sabe amar
Se umedece quando vê a dor
Fruto da ternura de quem tem doçura
É Simão com a cruz do sofredor.
O olhar de quem sabe amar
Acredita e luta pela paz
“Sabe que a justiça é dever, premissa
Pra fazer a vida germinar.”
O olhar de quem sabe amar,
Tem poder pra terra semear.
“Pega no arado sem olhar pra trás,
Não se cansa da vida esperançar.”
O olhar de quem sabe amar…
(fonte: http://letraclub.com/xico-esvael/o-olhar-de-quem-sabe-amar.html acesso em 15 de junho de 2015).
Bibliografia
FITZMYER, Joseph A. El Evangelio según Lucas – IV. Madrid: Ediciones Cristandad, 2005.
LOCKMANN, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta. São Bernardo do Campo: Editeo, 2011.
MOXNES, Halvor. A Economia do Reino – conflito social e relações econômicas no Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1995. PL
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).