Prédica: Lucas 19.41-48
Autor: Lothar Hoch
Data Litúrgica: 10º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 11/08/1985
Proclamar Libertação – Volume: X
l — A localização do texto na estrutura do evangelho e da teologia de Lucas
O Evangelho de Lucas está estruturado de tal forma que ele converge para a atuação de Jesus em Jerusalém e no templo. O Evangelho culmina na atuação de Jesus no centro do poder político-religioso do judaísmo. Essa culminância só é ultrapassada pelo próprio evento da cruz, o qual, por sua vez, se origina, em grande parte, na atuação de Jesus em Jerusalém.
A atividade de Jesus é concebida de forma a se constituir numa continuidade histórica e geográfica. As perícopes não são reunidas em blocos de temas, como, por exemplo, em Mateus, mas em etapas progressivas de atuação. A primeira etapa é a do pregador ambulante na Galiléia (até 9.15). A segunda etapa se constitui num relatório de viagem rumo a Jerusalém (até 19.27). A. terceira etapa representa a culminância da sua atuação e tem como palco Jerusalém (19. 28 até 24.53). O estar a caminho de Jerusalém é mencionado em 9. 51; 13.22,33; 17.11; 19.31.
Jerusalém é o centro do poder e do culto. Ao entrar em Jerusalém, Jesus se dispõe a atacar a coluna vertebral das instituições político-religiosas do judaísmo. E o faz não de fora para dentro, mas de dentro para fora, a partir do próprio palco dos acontecimentos.
A destruição de Jerusalém e do templo, acontecida no 70 d. C., já havia se consumado na época da redação do Evangelho de Lucas (entre os anos 80 e 90). Na teologia de Lucas esse fato representa simultaneamente um fator de descontinuidade e de continuidade da história salvífica. A destruição de Jerusalém e do templo é uma quebra de continuidade com a consciência da eleição exclusiva de Israel. Com Jesus a história salvífica se universaliza. O próprio livro de Atos dos Apóstolos, descrevendo os inícios da missão entre os gentios, é prova disso. Por outro lado, a continuidade se evidencia para Lucas no fato de que Israel continua sendo o centro a partir do qual a salvação se irradia. Ele se preocupa em ver a história salvífica em continuidade com a eleição de Israel. A Igreja evolui em continuação histórica do Israel piedoso (Goppelt, p. 538).
A mesma dialética se observa em relação à interpretação que Lucas dá à purificação do templo. De um lado ela equivale à decretação do fim do templo como centro da religiosidade particular de Israel. Por outro lado, simboliza o ato de dar ao templo uma nova destinação, qual seja, a de ser o centro de irradiação da missão dos gentios. Agora não se espera mais que os gentios venham para Jerusalém, conforme a expectativa profética em Is 2.1-5 e Mq 4.1-5. Ao contrário, de Jerusalém se vai aos gentios, conforme At 1.8 e 2.46 (cf. Schmithals, p. 190s).
II— O contexto imediato do texto
Lc 19.41-48 se constitui de três perícopes ou três cenas que se colocam entre a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (19.28-41) e a disputa em torno da autoridade de Jesus (20.1ss). Com a chegada de Jesus a Jerusalém, todo o cenário se agita e desde logo se colocam questões cruciais para todas as camadas da população. De um lado, a multidão dos discípulos (v. 37) o recebe entusiasticamente e vincula uma série de expectativas com a sua chegada. Por outro lado, a hierarquia política e religiosa que representa as instituições vigentes se sente ameaçada e temerosa com o rumo dos acontecimentos. Entre esses dois extremos encontramos os fariseu (veja abaixo) que pedem moderação (v. 39). É inevitável, pois, que a pergunta pela autoridade de Jesus se coloque com toda a veemência a partir do cap. 20. As três cenas de Lc 19.41-48, pela sua brevidade, tendem a ser ofuscadas pelo peso das perícopes adjacentes. Não fosse pelo papel central que Jerusalém e o templo ocupam na teologia lucânica, não seria possível aquilatar a importância do nosso texto. Por isso, ao contrário do que possa parecer, Lc 19.41-48 ocupa um lugar de destaque no Evangelho de Lucas, na medida em que o templo é o ponto de convergência de toda a atuação de Jesus. Voigt (p. 366) chega a afirmar que a entrada de Jesus em Jerusalém é uma entrada no templo.
III — Considerações quanto ao texto
Depois de termos visto a importância de Lc 19.41-48 como um todo no contexto do Evangelho de Lucas, cabe-nos tecer algumas considerações sobre cada uma das três cenas separadamente.
Vv. 41-44: A lamentação de Jesus sobre Jerusalém se dá quando ele ia chegando, depois de ter avistado a cidade (v. 41), antes da sua entrada na cidade. Portanto, a entrada de Jesus em Jerusalém, conforme Lucas, não se deu em 19.28ss como normalmente se presume. A entrada triunfal em Jerusalém, de fato, não passa de uma recepção triunfal nos arredores da cidade, mais precisamente na descida do Monte das Oliveiras (37a). Seria intenção de Lucas ver Jesus sendo aclamado por discípulos e pessoas da periferia? Entre a recepção triunfal no Monte das Oliveiras e a entrada em Jerusalém propriamente dita, Lucas inseriu a cena da lamentação de Jesus sobre a cidade. Esta cena faz parte do material exclusive de Lucas. Em nenhum dos evangelhos Jerusalém tem a relevância que tem em Lucas (Goppelt, p. 538). Jerusalém é o alvo da atividade de Jesus, é ali que ele morre, mas é também ali que os discípulos haverão de receber o Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.4), sendo que as aparições do Ressurreto igualmente se restringem à área de Jerusalém e arredores (Lc 24). A Igreja se desenvolve concentricamente a partir de Jerusalém. As novas igrejas mantém comunhão com a igreja-má e, Jerusalém (At 8. 14-25; 11.22; 12.25; 13.13) (ibid). Também a destruição de Jerusalém é mais enfatizada em Lucas do que nos demais evangelhos. Assim, além das referências comuns aos sinóticos (Lc 13.31-35 e 21.20-24), encontram-se em Lucas referências em 13.1-5; 19.14,27; At 6. 14. O nosso texto, juntamente com 23.27-31, representa uma espécie de emolduração da história da paixão (Goppelt). Eis aí a grande responsabilidade de Jerusalém em meio aos acontecimentos salvíficos. Eis aí também a justificativa para a lamentação de Jesus. As lágrimas de Jesus são lágrimas que resultam da conjugação do verdadeiro Deus e do verdadeiro homem E como homem ele expressa sua sincera tristeza pelo fato de não ter outra alternativa a não ser proclamar a destruição e o juízo. E isso quando, na verdade, ele gostaria de reunir os filhos de Jerusalém como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas (13.34). A sua tristeza está em flagrante contradição ao júbilo do povo.
Jerusalém está cega. Ela não vê a paz (v. 42). É provável que Lucas esteja fazendo uma alusão consciente à etimologia da palavra Jerusalém: RAA = ver, SHALOM = paz, (cf. Strack/Billerbeck, p. 253 e Voigt, p. 367). E por não ver, e por não conhecer a oportunidade da visitação (v. 44) ela atrai sobre si o juízo. Primeiro não se quer reconhecer e aceitar, depois não se pode mais fazê-lo. Isto num certo sentido já é o juízo (Voigt, p. 367). Quanto à visitação, cf. Lc 1.68,78 e 7.16.
Vv. 45-46: Chama atenção que Lucas se limita ao essencial na sua narrativa da purificação do templo. Ele não fala em derrubar mesas (cf. Mc 11.15) nem em usar cordas para a expulsão dos comerciantes (Jo 2.15). O seu interesse principal consiste em se reportara Is 56.7 e a Jr 7.11. A purificação do templo é mais do que um ato de revolta momentânea de Jesus. É sinal do advento do tempo messiânico (Ez 40-48). Dentro da expectativa messiânica se aguardava a auto-revelação do Messias diante de todo o povo dentro do próprio templo (cf. Lc 2.25ss), Eis porque a atividade de Jesus, desde o início, converge para o templo. Ou vejamos: ainda criança Jesus é saudado no templo (Lc 2.25-31,37); aos doze anos o encontramos ensinando no templo (Lc 2.41ss); o evangelho termina com os discípulos reunidos no templo louvando a Deus (Lc 24.531; o livro de Atos dos Apóstolos fala dos discípulos diariamente perseverando unânimes no templo (At 2.46). O nosso texto representa, por isso mesmo, o momento em que Jesus toma posse do templo e dá ao mesmo a sua verdadeira destinação, qual seja a de ser casa de oração (46b) e do ensino (47a) e não covil de salteadores. Doravante Jesus ensina diariamente no templo (47a). A partir do nosso texto e do todo da teologia de Lucas não se pode, portanto, afirmar que Jesus quisesse abolir o templo como instituição. O que está em jogo não é o templo como tal mas o uso que dele se faz, não o culto como tal mas a forma do culto vigente. O fato de Jesus querer preservar o templo não significa, contudo, que ele fosse indiferente à rede de interesses que com sua malha envolvia todo o aparado religioso centrado no templo. Isso se evidencia na cena seguinte.
Vv. 47-48: Que motivo teriam os principais sacerdotes, os escribas e os maiorais do povo (membros leigos do Sinédrio) em eliminar Jesus? A entrada em Jerusalém e a aclamação popular revelaram um certo índice de popularidade de Jesus e isto constitui, por si só, um fato de instabilidade a quem detém o poder. O ostensivo ato da purificação do templo e da expulsão dos que lá (possivelmente a serviço dos mais privilegiados) faziam comércio com animais destinados ao sacrifício, juntamente com o ato de passar a ensinar diariamente no templo, questiona toda a autoridade teológica e cúltica do clero. Não é por acaso, portanto, que, enquanto Jesus ensinava no templo, os detentores do poder viessem a Jesus com o intuito de esclarecer (tirar satisfação!) a questão da autoridade de Jesus (Lc 20.1-2). O dado que fecha o quadro como um todo e que reforça a necessidade dos poderosos de eliminar Jesus é o fato dele ter colocado o contraste entre ricos e pobres no centro da sua atividade. Corn exceção da Epístola de Tiago, nenhum outro documento do NT trata desse tema com tanta profundidade. No Magnificat, Jesus é apresentado com o anúncio formulado em estilo veterotestameníário: Ele derrubou os poderosos dos tronos, e exaltou os humildes. Saciou os famintos com bens, e despediu vazios os ricos (Lc 1.52s) (Goppelt, p. 253). Não que Jesus tivesse pretendido uma simples inversão da situação social, no sentido de que o rico se perca pelo simples fato de ser rico que o pobre seja salvo pelo fato de ser pobre. O que leva o rico a se perder é a sua relação com a riqueza. Em consequência, quem é pecador se define primordialmente pelo seu fracasso em relação à riqueza e ao poder. Isso é tanto mais importante quando comparado a Mateus, onde o pecador se caracteriza por seu fracasso em relação à lei. Ora, quanto à lei as classes dominantes ligadas ao templo (os sacerdotes, os escribas e os maiorais do povo) procuravam se manter irrepreensíveis. Não por último, porque tinha poder de legislar e de interpretara lei em causa própria. Na medida, porém, em que Lucas coloca a questão da riqueza e, por extensão, a questão do poder no centro da pregação de Jesus, se torna inevitável o conflito. Pois Jesus lhes tira a base de sustentação para a sua segurança pessoal — a lei —e a prática cúltica que a ela se vincula e que é exercida no templo. A busca por argumentos que justifiquem a eliminação de Jesus (v. 47b) se torna inevitável. A pergunta pela autoridade (20.1ss) é o primeiro passo nesse sentido. Essa linha de argumentação de Lucas explica o fato de que os fariseus não se encontram entre aqueles que participam diretamente da articulação do assassinato de Jesus. Os fariseus se limitam a exortar Jesus à moderação (cf. Lc 19.39) e até mesmo pedem a ele que fuja diante da ameaça de Herodes (Lc 13.31). O papel dos fariseus em Lucas é diferente do que em Mateus, na medida em que a lei deixa de ser o divisor das águas na teologia de Lucas, conforme vimos acima.
Enquanto é tramado o assassinato de Jesus, o povo se achegava a ele para ouvir sua palavra (v. 48). Mais adiante, todavia, também este irá gritar: Crucifica-o, crucifica-o! (Lc 23.21).
IV — Reflexões em direção à prédica
Os primeiros destinatários do nosso texto são os que servem no templo e os que dele se servem para proteger os seus interesses. Antes de pensarmos, pois, na modalidade de atualização desse texto para os frequentadores dos nossos templos hoje, convém que nós nos coloquemos como primeiros ouvintes do texto. O texto nos anima à coragem de falarmos sobre nós mesmos e sobre as tentações a que estamos expostos como pessoas que servem no templo e que dele vivem.
a) Que tipo de serviço nos prestamos no templo? O que nós ensinamos?
b) Que pessoas nós atingimos com o nosso serviço? Donde elas procedem? A que classe pertencem?
c) Há pessoas que questionam o nosso culto? Que tipo de questionamento é esse? De que pessoas e de que camadas ele parte?
d) Como e de que forma os centros do poder político e do poder religioso estão hoje vinculados? A nível da história universal e da história brasileira a aliança de trono e altar é conhecida. Mas a nível local e a nível de nossa comunidade como se coloca essa questão? Poderiam haver interesses político-econômicos vinculados, por exemplo, ao exercício de cargos de liderança na comunidade?
d) De quem partem os apelos à moderação quanto à radicalidade do Evangelho? Como nós nos posicionamos frente a esses apelos?
f) A que riscos nós estamos nos expondo quando aceitamos viver do nosso serviço no templo? Até que ponto os que nos sustentam compram o nosso silêncio?
g) Onde se localiza(m) o(os) templo(s) no(s) qual(is) nós servimos? No centro? Na periferia?
h) Até que ponto a nossa auto-consciência de sermos vocacionados para o serviço no templo não é um ato de subjetividade e individualidade que inibe outros e participarem desse serviço?
i) Em que medida identificamos fidelidade ao templo com fidelidade a Deus?
O texto questiona o culto vigente, o cerimonial, o aparato religioso, as ofertas, o poder sacerdotal do clero na sua qualidade mediadora entre Deus e os homens. Ele questiona igualmente os centros do poder, as romãs e as Jerusalém de hoje, com sua função centralizadora do poder e seu perigo de corrupção e aponta a cruz como o único caminho viável para a Igreja e para os que querem servir a Jesus. Também a mensagem do 10o Domingo após Trindade centrada no Salmo 33.12 e em Provérbios 14.34 oferece subsídios importantes para uma pregação na linha acima esboaçada.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão dos pecados: Senhor Jesus, Pai-Mãe-Irmão nosso, tu nos conheces a fundo, sabes das nossas fraquezas e dos nossos temores, apesar de querermos ocultá-los; nós nos chegamos a ti na confiança de que tu nos entendes e nos aceitas apesar de tudo. Nós te pedimos, tem paciência nas nossas fraquezas e ajuda-nos a que também tenhamos paciência com as pessoas que estão ao nosso lado. Faze com que o teu perdão nos dê uma nova chance e que ele abra novas portas na nossa convivência. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração da coleta: (Sugiro que o oficiante do culto colete, conforme a oração de coleta o propõe, assuntos de relevância especial que dizem respeito ao culto e à situação da comunidade. O que segue, é apenas uma sugestão de oração.) Senhor nosso, tu sempre de novo reúnes a tua Igreja através do Santo Espírito, queremos expressar o nosso humilde desejo de que tu tenhas reunido também a nós nesta hora sob a tua palavra. Sabemos que existem as mais diferentes expectativas entre nós: alguns buscam consolo pela situação aflitiva que estão vivendo; outros estão alegres e agradecidos pelas bênçãos que têm recebido de tuas mãos; ainda outros esperam neste culto uma orientação para as suas vidas. Dá, Senhor, que nenhum de nós saia de mãos vazias. Sê também com aquele que tem a responsabilidade de dirigir este culto. Fala conosco por seu intermédio e ajuda a cada um de nós na nossa tentativa de sermos tuas testemunhas. Por Jesus Cristo. Amém.
3. Oração final: (vide assuntos propostos no ponto IV).
VI – Bibliografia
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo/ Petrópolis, 1982.
– RENGSTORF, K. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. v. 3. Göttingen, 1969.
– SCHMITHALS, W. Das Evangelium nach Lukas. ln: Zürcher Bibelkommentare. Zürich, 1980.
– SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. v. 3. Göttingen, 1982.
– STRACK, H. L./BILLERBECK, P. Kommentar zum Neuen Testament. v. 2.5. ed. München, 1969.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lc 19.41-48. In: Der schmale Weg. Göttingen, 1978.