Prédica: Lucas 2.1-7
Leituras: Isaías 11.1-9 e Romanos 1.1-7 ou Gálatas 4.4-7
Autor: Vera Cristina Weissheimer
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2009
Proclamar Libertação – Volume: XXXIV
Deus estava louco de paixão pela humanidade, quando olhou para este mundo e disse: ‘
Vou visitá-lo!’ E veio!
E, como os apaixonados cometem loucuras, fez-se carne e habitou entre nós de forma simples, humilde e cheia de amor.
Nasceu em Belém, que não tinha cinco estrelas.
Apenas uma clara e bonita para anunciar a louca paixão de Deus por todos nós.
1. Introdução
“Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles;
eles serão o seu povo,
e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus.
Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte,
nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!”
Apocalipse 21.3-4
São trechos que remetem aos profetas Ezequiel e Isaías, que há quase três mil anos foram impelidos a manifestar os juízos de Javé ao povo de Israel, exortando-o à conversão e fortificando a sua fé no aguardo não de um “salvador da pátria”, mas do próprio Senhor Deus, que viria em breve morar junto com os seus, dando uma nova vida, de igualdade e justiça, a todos os homens e mulheres.
É até um tanto engraçado que mais ou menos por volta do ano 5 a.C. o primogênito de Maria, Yehoshu’a ben Yosef, nasça na pequena Belém da Judeia. O problema desse ligeiro adiantamento está na fixação do calendário durante a Ida- de Média. No entanto, isso é o que menos importa, pois um grande número de pessoas, que a princípio era pequeno – constituindo-se em mais um grupo do judaísmo daquele período –, crê que essa criança, nascida do mesmo modo como nós, em condições tão precárias quanto a de qualquer criança excluída pelo sistema por nós mesmos criado, é o próprio Deus feito homem, feito carne, feito gente. Só mesmo sendo Deus para se fazer tão, mas tão humano.
Neste Natal comemoramos não o aniversário de Jesus, mas sim a sua encarnação em nosso meio, aliás coisa muito mais significativa.
2. Exegese
O evangelista escolhe a brevidade e a simplicidade para narrar o nascimento do salvador. O Messias nasce como qualquer um de nós: “No ventre materno foi esculpida minha carne… também eu respirei o ar comum, e ao cair na terra que todos pisam, estreei minha voz chorando, como todos; criaram-me com mimo, entre cueiros” (Sabedoria 7.3-6; Gálatas 4.4). No entanto, mais pobremente do que a maioria: “As raposas têm tocas, as aves têm ninhos, mas este Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9.58).
V. 1 – Os planos humanos de poder, controle e domínio sobre a população (recenseamento) se subordinam ao plano divino, como é anunciado pelo profeta: o Messias, como descendente de Davi (1Sm 16.1; Mq 5.1). “No sexto mês, Deus enviou o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem prometida a um homem chamado José da família de Davi” (Lc 1.27). São 42 gerações ao todo, de Adão, passando por Davi, até o Messias. Uma genealogia entre carpinteiros e reis. Mencionar a genealogia de Jesus não é um mero detalhe nessa história. Assim os evangelistas mostram que Deus fincou raízes entre a humanidade.
Ao alistar-se, José, Maria e o menino que está por nascer entram oficial- mente na lista dos súditos do imperador Augusto (30 a.C.-14 d.C.). Jesus nasce como súdito do imperador do mundo de então.
V. 2 – Para explicar discrepâncias históricas, alguns traduzem: “Este recenseamento foi precedente/anterior ao governo de Quirino/Cirênio na Síria”.
V. 4 – Sobe-se à Judeia e a Jerusalém: primeira subida para nascer; chegará outra para morrer (9.51). Belém é a cidade de origem de Davi, não de reinado (1Sm 16; Mq 5.2).
A palavra Bet-lehem significa a casa do pão; o que, aliás, é uma bela imagem para a prédica. O pão vivo que vem para saciar nossa mais profunda fome.
V. 5-6 – Uma jovem israelita chamada Maria aguardava de forma mais in- tensa do que qualquer outra pessoa a vinda do Messias. Depois de haver aceito a inusitada gravidez, Maria passou a carregar em si uma esperança ainda mais concreta. Uma certeza que os outros ainda não poderiam ter. Ela estava grávida. Ela era o barco que singrava pelas areias de Nazaré e vinha carregado de uma novidade ainda secreta. Nove meses de espera, de alegria e de dificuldades, nove meses de certezas e dúvidas. Mas, antes de tudo, eram nove meses de gestação. Algo novo estava sendo criado, algo muito novo estava por nascer. O mundo passaria a conhecer uma nova imagem de Deus — não mais um Deus distante, riquíssimo e poderoso, mas um Deus próximo, humano, nascido de uma mulher. Enquanto todos continuavam suas vidas, esperando a salvação para um futuro qualquer, Maria gestava e carregava o futuro em seu útero. Engravidar antes do casamento, e não do noivo, José, era no mínimo um disparate para a comunidade em que eles viviam. Era preciso coragem. Ela era a única que tinha certeza da chegada do filho de Deus. Mais do que isso: Ele já se encontrava com ela! E nós? Como acontece conosco hoje? A história de Maria mostra-nos a diferença entre uma espera passiva, que simplesmente aguarda o passar do tempo, e uma espera que se deixa seduzir pelo toque divino.
V. 7 – Manjedoura – Além das representações tradicionais, podia tratar-se de uma casa semiescavada na rocha ou de uma gruta adaptada como moradia, com uma parte destinada à habitação familiar e outra parte destinada a ser estábulo.
3. Meditação
Quando Deus inverte tudo
É um desafio meditarmos sobre os textos natalinos, pois eles já foram tão usados, que quem fala deles dificilmente escapa de repetir o que outros já falaram.
Ao mesmo tempo, de tanto serem usados, lidos e relidos, esses textos ficam familiares, íntimos de nosso pensamento, e acabamos por não perceber suas qualidades e sutilezas.
Por isso, mais uma vez voltamos a eles, mas buscando detalhes que normalmente são esquecidos ou enfeitados. É. São enfeitados. Temos uma certa dificuldade em ver aquele menino deitado entre palhas.
O Salvador, o Cristo-Senhor, será encontrado como recém-nascido numa estrebaria – num estábulo – e como criança. Ele não vem como guerreiro, super- herói. Vem frágil. Vem como criança. A maioria das traduções faz uma troca por “manjedoura”. Essa palavra é mais bonita; é até poética. Usamos a palavra manjedoura para diminuir o impacto. Jesus então nasce numa manjedoura porque na casa principal não havia lugar. É como tentar tapar o sol com a peneira: o sentido do Natal foi “amansado”. Construímos presépios perfumados, com jogos de luzes, vaquinhas de carinhas angelicais, numa festa em que o tamanho dos presentes importa, e muito.
É difícil ler que Jesus nasceu num estábulo porque não havia outro lugar para ele. Mais uma vez, temos uma inversão. A concretização de nossas esperanças vem de onde ninguém pode esperar: de um recém-nascido num estábulo. Inversões que nos levam a pensar. Esse singelo texto que aparece nos evangelhos e é revisitado todos os natais, que tanto nos emociona nos teatros natalinos das crianças, traz em cada palavra um forte desafio. Um desafio que se encontra presente no cristianismo e deve nos questionar hoje.
Enquanto a religião oficial esperava a salvação de Deus vinda de um guerreiro manifestando-se aos puros, o Messias surge em meio ao cheiro de esterco de animais, tendo como uma das primeiras visitas os pastores de ovelhas, um grupo que não merecia muita confiança na época. Não é interessante? Deus inverte a lógica das coisas. Deus inverte a lógica de nossa vida. Quando não acontece o que desejamos, acontece o que necessitamos. E isso geralmente é melhor do que tínhamos capacidade de sonhar. Ou não estávamos preparados para aquilo que tanto sonhamos e planejamos.
O menino Jesus brinca com os sonhos e vira uns em cima dos outros, diz Fernando Pessoa em “O guardador de rebanhos”.
“Num meio-dia de fim de primavera, Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que Ele é o Menino Jesus verdadeiro.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver. Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum, Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
Ele dorme dentro da minha alma e às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar. Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho, Sorrindo para o meu sono.
Esta é a história do meu Menino Jesus. Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam?”
(Do “Guardador de Rebanhos”, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)
Quando achamos que somos senhores de nossa vida, a própria vida nos mostra o contrário. Ela nos mostra caminhos diferentes e nos emociona com a simplicidade de cada Natal.
Recebi num desses natais um cartão que dizia o seguinte: “Natal é muito simples. É um menininho que nasceu em meio aos bois, vacas, ovelhas, cavalos, jumentos. Era um menininho pobre. Mas diz a história que, quando ele nasceu, aconteceu uma mágica com o mundo: tudo ficou diferente”.
Na noite do Natal, antes da ceia, antes de abrir os presentes, por favor, contem a história do menininho.
4. Imagens para a prédica
É possível contar essa história de diversas maneiras. Por exemplo, jogando estrelas (pode-se confeccionar com um grupo da comunidade estrelas de diversas cores e somente uma verde).
A história da estrela verde
Eram uma vez… milhões e milhões de estrelas no céu. Havia estrelas de todas as cores: brancas, prateadas, douradas, vermelhas, azuis. Um dia, elas procuraram o Senhor Deus, Todo-Poderoso, o Senhor Deus do Universo, e disseram-lhe:
– Senhor Deus, gostaríamos de viver na Terra entre as pessoas.
– Assim será feito, respondeu Deus. Conservarei todas vocês pequeninas, como são vistas, e podem descer à Terra.
Conta-se que naquela noite houve uma linda chuva de estrelas. Algumas se aninharam nas torres das igrejas, outras foram brincar e correr com os vagalumes no campo, outras misturaram-se aos brinquedos das crianças, e a Terra ficou maravilhosamente iluminada.
Porém, passado algum tempo, as estrelas resolveram abandonar as pessoas e voltar para o céu, deixando a Terra escura e triste.
– Por que voltaram?, perguntou Deus, à medida que elas chegavam ao céu.
– Senhor, não nos foi possível permanecer na Terra. Lá há muita miséria, muita desgraça, muita fome, muita violência, muita guerra, muita maldade e mui- ta doença.
E o Senhor lhes disse:
– Claro, o lugar real de vocês é aqui no céu. A Terra é o lugar do transitório, daquilo que se passa, do ruim, daquele que cai, daquele que erra, daquele que morre, é onde nada é perfeito. Aqui no céu é o lugar da perfeição. O lugar onde tudo é imutável, onde tudo é eterno, onde nada padece.
Depois de chegarem todas as estrelas, e conferindo o seu número, Deus falou de novo:
– Mas está faltando uma estrela. Perdeu-se no caminho? Um anjo que estava perto retrucou:
– Não, Senhor. Uma estrela resolveu ficar entre os homens. Ela descobriu que seu lugar é exatamente onde existe imperfeição, onde há limites, onde as coisas não vão bem.
– Mas que estrela é essa?, voltou Deus a perguntar.
– Por coincidência, Senhor, era a única estrela dessa cor.
– E qual é a cor dessa estrela?, insistiu Deus. E o anjo disse:
– É a estrela verde, Senhor. A estrela do sentimento de esperança.
E quando então olharam para a Terra, a estrela não estava só. A Terra estava novamente iluminada, porque havia uma estrela verde no coração de cada pessoa. Porque o único sentimento que o homem tem e que Deus não tem é a esperança. Deus já conhece o futuro, e a esperança é própria da natureza humana. Própria daquele que cai, daquele que erra, daquele que não é perfeito, daquele que ainda não sabe como será seu futuro.
5. Subsídios litúrgicos
Um responsório para o início do culto, uma oportunidade para valorizar as velas da coroa de Advento:
Todos: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz…” Acendemos a primeira vela.
Todos: “Vejam, estou mandando o meu mensageiro para preparar o caminho à minha frente”.
Acendemos a segunda vela.
Todos: “Terminou para Israel o tempo de gravidez e ela deu à luz um filho…”
Acendemos a terceira vela.
Todos: “Alegrem-se o deserto e a terra seca, o campo floresce de alegria…” Acendemos a quarta vela.
Oração de Natal:
Senhor, esperávamos-te maior, e vieste na fraqueza de uma criança. Esperávamos-te numa outra hora, e vieste no silêncio da noite. Esperávamos-te pode- roso como um rei, e vieste ser humano e frágil como nós. Esperávamos-te de outra maneira, e vieste assim tão simples. Quase não havia quem te reconhecesse ao ver-te assim, tão homem. Nós havíamos feito uma ideia de ti, e vieste, Senhor, rompendo todo o previsto. Dá-nos fé para crer em ti e reconhecer-te assim como vieste. Fortalece nossa esperança para confiar em ti, na simplicidade em que vies- te. Ensina-nos a amar como tu amas, que sendo forte te fizeste fraco para ser nossa força em todo momento e pelos séculos dos séculos. Amém. (J. J. Coma)
Credo de Natal:
Cremos em Deus, que se tornou gente para chegar mais perto da humanidade. Cremos em Jesus Cristo, Deus feito gente, e no poder do evangelho, que
começou em Belém.
Cremos naquele para quem não havia lugar para hospedar-se e teve pastores de ovelhas como primeiras testemunhas do seu nascimento.
Cremos naquele cuja vida transformou o curso da história e a quem os reis da terra desprezaram e a humanidade orgulhosa não conseguiu compreender.
Cremos naquele a quem os pobres, os oprimidos, os tristes, os enfermos, os cegos e os leprosos deram as boas-vindas e o aceitaram como Senhor e Salvador.
Cremos naquele que, por meio do amor, transformou os corações de homens e mulheres.
Cremos na paz, no perdão e na reconciliação e no poder transformador do evangelho.
Cremos que este mundo pode transformar-se através da humildade e fé. Cremos que ele faz soprar em nossas vidas o poder do seu Santo Espírito
para nos animar, capacitar e inspirar.
Cremos no verdadeiro sentido do Natal. Amém.