Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Lucas 2.1-7
Leituras: Isaías 11.1-9 e Gálatas 4.4-7
Autor: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2013
1. Introdução
Isaías 11 anuncia o messias criança, o novo Davi. Expressões como “Do tronco de Jessé” (v. 1) fomentaram a esperança de que o prometido seria descendente de Davi, “da casa e família de Davi” (Lc 2.4). “Renovo” e “rebento” sugerem o frescor e a novidade do novo tempo anunciado. Sobre o messias repousará o Espírito de YaWeH. Será diferente dos reis que o antecederam, pois “julgará com justiça os pobres e decidirá com equidade a favor dos mansos da terra” (v. 4). O messias será uma criança (“um pequenino os guiará” – v. 6), capaz de trazer o Shalom e fazer habitarem em paz lobos e cordeiros, leopardos e cabritos, vacas e ursas, leões e bois, crianças e serpentes (cf. v. 6-8). O medo dará lugar à esperança; a guerra, à paz. O restante do povo de Deus será finalmente resgatado do exílio e da diáspora (v. 11). Uma criança, descendente de Davi, cheio do Espírito de YaWeH, trará justiça aos pobres, decidirá em favor dos mansos, estabelecerá o Shalom e guiará as nações no caminho da paz.
O texto de Gálatas também anuncia o messias como uma criança (huios), nascida de mulher na plenitude dos tempos para resgatar a humanidade de debaixo da Lei e fazer igualmente de nós crianças (huios) de Deus, herdeiros/as aptos/as a chamá-lo “Abba”, o Pai. O termo huios (criança, filho) aparece seis vezes em quatro versículos, denotando a força da ideia de que a criança é protagonista na economia da salvação. A relação direta entre Isaías 11, Gálatas 4 e Lucas 2 é, portanto, a referência à descendência de Davi e ao protagonismo da criança na
história da salvação.
2. Exegese
O nascimento de Jesus é tratado somente em Mateus e Lucas em perspectivas muito distintas. Ambos concordam quanto aos nomes José, Maria e Jesus e quanto ao local do nascimento, Belém, bem como sobre a descendência de Davi. Não obstante, parece consenso que os dois evangelistas se serviram de fontes autônomas para compor suas narrativas. Isso explica tantas diferenças quanto aos demais detalhes. Supõe-se que a tradição lucana seja mais primitiva do que a de Mateus e por isso mais “ingênua”.
Lucas compila, ao que parece, duas tradições autônomas: uma conforme registrado no capítulo 1 e outra que se lê no segundo capítulo. Os relatos do primeiro capítulo, que incluem os primórdios do nascimento do predecessor João e do próprio Jesus, desde quando seus nascimentos eram apenas promessas para o futuro, enfatiza o aspecto sobrenatural. A segunda narrativa (cap. 2) parece desconhecer essa história, pois não a retoma nem faz alusão a ela.
O capítulo 1 é dominado, conforme se supõe, pela ideia do nascimento virginal e sobrenatural de Jesus (Maria não está casada com José), ao passo que, no capítulo dois, Maria é apresentada como esposa de José e ambos sendo os pais naturais de Jesus. Tomado somente o relato do capítulo 2, não há sugestão quanto a um nascimento sobrenatural. Jesus nasce como qualquer outra criança: depois de nove meses (“cumpridos os dias”), do ventre materno (cf. Gl 4.4). Só que vem ao mundo mais pobre do que a maioria de nós (cf. nota da Bíblia do Peregrino).
Diferentemente de Mateus, Lucas procura vincular didaticamente a história do nascimento de Jesus à história do Império Romano. Para Lucas, o nascimento de Jesus não se restringe à história dos judeus, mas se trata de um evento mundial. Daí a alusão a César Augusto, a Quirino, ao senso… Os planos divinos subordinam a si os planos humanos e seus governantes.
A despeito da boa intenção do evangelista, com isso as dificuldades quanto à coerência histórica do texto se multiplicaram. Nos poucos versículos que compreendem Lucas 2.1-7 abundam dificuldades exegéticas.
“Naqueles dias […] de César Augusto” – César Augusto foi imperador de 29 ou 30 a.C. a 14 d.C. Quanto à ocasião específica do nascimento, que dias seriam, afinal? A narrativa em vez de esclarecer ainda obscurece mais esse dado.
“Decreto (dógma) […] para recensear-se” – Segundo Lucas, o imperador do tempo de Jesus teria ordenado um senso universal (gr. passen tén oikoumenen), levado a efeito por Quirino, que fora governador da Síria por duas ocasiões (7-2 a.C. e 6-9 d.C.). Teria havido, sim, um senso no ano 6 d.C., mas essa data não se coaduna com a proposta da narrativa. Apologetas tentam harmonizar essas discrepâncias com manobras engenhosas (teria havido um outro, ou “primeiro”, recenseamento no ano 6 a.C.). No entanto, essa parece ser uma discussão infrutífera.
“Todos iam alistar-se, cada um em sua própria cidade” – Pelo que se sabe, não era necessário que o indivíduo tivesse que viajar à terra de seus antepassados para recensear-se. Os sensos romanos baseavam-se no local de residência, e não na ancestralidade. O próprio Lucas informa que José e Maria residem em Nazaré na Galileia. Ou essa não seria sua residência permanente, estando o casal em Nazaré apenas temporariamente em função de trabalho artesanal ocasional, ou devemos supor que há objetivos mais teológicos do que históricos para essa alusão.
“José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré” – Trata-se da periferia do mundo de então. Expressões preconceituosas como a de Natanael – “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” (Jo 1.46) – denotam a condição secundária a que eram relegados os galileus em geral. A não omissão a essa origem humilde é uma das características de Lucas como narrador e sua preferência por destacar tais inversões: o Salvador pode ser descendente de Davi, mas vem da periferia do mundo.
“Cidade de Davi, chamada Belém” – No Antigo Testamento, a cidade de Davi é sempre Jerusalém, a cidade de seu reinado, não a de seu nascimento. Essa atribuição a Belém é própria de Lucas e deve-se, provavelmente, à sua interpretação de Miqueias 5.1 (cf. nota da TEB).
“Maria, sua esposa” – Em gr. emnesteumene, o mesmo de Lucas 1.27, que pode ser traduzido por “desposada” ou “que foi prometida em casamento”. Segundo alguns exegetas, essa expressão deve ter sido agregada quando da redação final de Lucas para harmonizar essa com a tradição reportada no capítulo 1. Assim sendo, deve-se assumir que Maria era esposa de José. Eles estão juntos na viagem sem constrangimento, e o texto faz referência a “seu primeiro filho” ou “primogênito”, retratando-a como mãe de família, o que sugere o mesmo tipo de nascimento do primeiro e dos demais filhos. Versões siríacas trazem simplesmente “Maria, sua esposa”.
“Grávida” – A narrativa do capítulo 2 não retoma a tradição da concepção sobrenatural. Completaram-se-lhe os dias” sugere uma gravidez normal. “Enfaixou-o e o deitou numa anjedoura” – Aspectos que destacam as condições humildes e precárias do nascimento. Esses detalhes conferem um tom sentimental, vívido e dramático à narrativa. As faixas e a manjedoura servirão de sinal identificador para os pastores (cf. 2.12).
“Não havia lugar para eles na hospedaria” – Habitualmente traduzida por “hospedaria”, o termo grego katalumati é o mesmo empregado em 22.11 para designar a sala da última ceia, portanto o cenáculo. Em Bethlehem, a casa do pão, não há lugar para Jesus na sala de refeição. No Evangelho de Lucas, o cenáculo tornar-se-á espaço privilegiado da comunhão e do anúncio do reino de Deus e lugar da manifestação e revelação do Cristo ressuscitado (cf. 24.13ss).
“Manjedoura” – Trata-se de um cocho que servia de comedouro ou bebedouro para o gado. A estrebaria ou o estábulo ficam sugeridos. A tradição da gruta apareceria somente no séc. II com Justino (cf. nota da TEB).
3. Meditação
Causa admiração que um evento de tal magnitude para a fé cristã seja relatado de maneira tão sucinta. A chegada daquele que era esperado por séculos, daquele que haveria de transformar o mundo com suas ideias e salvá-lo com seu amor não merece mais do que cem palavras.
No entanto, nessa breve narrativa que descarta o acessório, as informações essenciais estão lá, precisas: o que, quem, quando, onde, em que circunstâncias…
O que – O ápice da narrativa é o nascimento de uma criança. Para isso concorrem todos os demais “detalhes”.
Quem – O nome “Jesus” não aparece nesses sete versículos. A personagem principal da história recebe, no texto, a designação “criança” ou “filho” (em gr. huios) de Maria e José. Outros personagens são mencionados, inclusive imperadores e reis, mas esses são secundários ou subordinados à criança recém-nascida.
Onde – Conquanto descendentes de Davi, está aí uma família humilde e pobre, que não tem recursos para hospedar-se com luxo ou maior conforto em Belém. Não havia lugar no cenáculo (hospedaria?) para eles. A família enfrenta com resignação ver vir à luz o primeiro filho em tão precárias condições. Ao longo do Evangelho de Lucas, Jesus tratará de transformar os cenáculos em espaço de acolhimento comunal do banquete do reino. Ressurreto, o Cristo tornará a apresentar-se aos discípulos e discípulas no cenáculo. Dessa vez será recebido om hospitalidade e se sentará com eles e elas à mesa (cf. Lc 24.13ss). Jesus nasce em Bethlehem, a “casa do pão”, e passará sua vida lutando para que ninguém mais fique sem pão nem seja excluído da mesa.
Quando – Se isso se deu em 6 a.C. ou em 6 d.C., não dá para saber com certeza. A despeito das dificuldades quanto à historicidade, o que Lucas deixa claro é que a história humana está subordinada à história divina. Nessa perspectiva, mesmo sem ter consciência disso, os maiores e mais poderosos governantes estão a serviço de Deus e daqueles mais pequeninos, que são os seus filhos e filhas. “Completaram-se-lhe os dias” (v. 6), e é isto que importa: a “plenitude dos tempos” (Gl 4.4). Chegou o tempo em que Deus nasce criança.
Circunstâncias – O recenseamento, a falta de lugar, a gravidez, as faixas que envolveram a criança, a manjedoura na qual foi colocada… tudo dá um colorido discreto à narrativa. Da periferia do mundo, sem pompa nem circunstância, na discrição que lhe é peculiar, Deus vem. Deus revela-se nas coisas pequenas que mal se veem. Para ver essas coisas pequenas, é preciso abrir os olhos da fé (cf. Hb 11.1).
4. Auxílios litúrgicos
Eterna criança nascida em Belém!
Nós te saudamos e acolhemos em nosso coração,
ó eterna criança nascida em Belém,
Deus de Deus, Luz de Luz!
Celebramos aquele a quem os céus não podem conter,
contudo aconchega-se no calor dos braços humildes da humanidade;
aquele que, sendo o Senhor do universo,
hospeda-se em uma modesta estrebaria;
e, tendo a história nas mãos,
dorme tranquilo numa rústica manjedoura.
Que a tua estrela nos aponte o caminho;
Que para toda a gente haja paz e não falte o pão.
Envia o teu sol sobre nós neste Natal
e no advento de cada novo dia.
Luiz Carlos Ramos
(Inspirado em Santo Agostinho)
Eucaristia às avessas!
O primeiro Natal foi uma Eucaristia às avessas. Na Santa Ceia, nós nos alimentamos do corpo de Deus. No Natal, Deus, no colo da humanidade, alimenta–se de sua carne e bebe de seu leite (aprendemos isso com Rubem Alves).
É véspera de Natal, e tudo está preparado para a Ceia. Comamos e bebamos com a moderação e a solenidade de quem está dando de comer à criança divino–humana, de nascimento humilde e amor eterno, que se aninha em nossos braços… Santa ceia, ceia santa. Deus no colo! Pietá.
Luiz Carlos Ramos
Liturgia de cordel (Advento & Natal)
Estou vendo nestas páginas
Como tudo começou,
Em silêncio e no escuro,
Onde a vida se formou:
Do nada se fez tudo
Por um gesto de amor.
Ah, que música divina!
Tanta luz, quanta beleza!
Quando Deus se fez ouvir,
Se formou a natureza.
Só que algo aconteceu…
Cresceram mato, dor, tristeza.
Desde então ninguém descansa:
Tanta luta, dor, maldade…
Mesmo assim não falta gente
Que deseja com saudade
Que o Éden refloresça
E encha o mundo de bondade.
Um clarão brilhou no céu:
uma nesga de esperança…
vagalumes rebrilhando:
Paz na terra e em toda a estância!
Já se ouve, está chegando:
A salvação é uma criança!
Advento inusitado:
Nova aurora alvoreceu.
No curral se ouve um choro…
O impensável aconteceu:
A promessa se fez corpo!
Nosso Deus recém nasceu!
Sugestões de músicas:
Com frequência, por ocasião do Natal, a igreja tem a oportunidade de participar de eventos em lugares não eclesiásticos, tais como escolas e eventos públicos em praças, shoppings etc. Particularmente nessas ocasiões, mas não só, a música popular pode ser uma boa maneira de estabelecer pontes de comunicação.
Seguem algumas sugestões:
Clara e Ana: “Um coração / De mel de melão / De sim e de não / É feito um bichinho
/ No sol de manhã / Novelo de lã / No ventre da mãe / Bate um coração /
De Clara, Ana / E quem mais chegar / Água, terra, fogo e ar” (Joyce & Maurício
Maestro)
Borboleta: Borboleta pequenina que vem para nos saudar.
Venha ver cantar o hino que hoje é noite de Natal.
Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira,
ando no meio das flores procurando quem me queira.
Borboleta pequenina, saia fora do rosal.
Venha ver quanta alegria, que hoje é noite de Natal.
Borboleta pequenina, venha para o meu cordão.
Venha ver cantar o hino, que hoje é noite de Natal.
Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira,
ando no meio das flores, procurando quem me queira.
Borboleta pequenina, saia fora do rosal,
venha ver quanta alegria, que hoje é noite de Natal. (Marisa Monte).
Outras sugestões são A Paz e Natal Todo Dia, ambas do grupo Roupa Nova, e ainda Mary Cristo, dos Tribalistas. Todas facilmente encontradas na internet e no YouTube.
Desejemos uns aos outros um Natal divino e um Ano Novo mais humano!
Bibliografia
BRUCE, A. B. I The Synoptic Gospels. In: NICOL, R. The Expositor’s Greek Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1974.
BUNDY, W. E. Jesus and the fi rst three gospels. Cambridge: Harvard University Press, 1955.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).