O grande anúncio
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Lucas 2.(1-7)8-20
Leituras: Isaías 52.7-10 e Hebreus 1.1-4
Autoria: Kurt Rieck e Rafael Mosak Krüger
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/2018
1. Introdução
O texto previsto para a prédica deste dia de Natal é Lucas 2.8-20 (opcionalmente também os v. 1-7). Os textos paralelos são Isaías 52.7-10 e Hebreus 1.1-4. Um tema comum aos três textos é o anúncio da salvação.
O texto de Isaías inicia saudando o mensageiro que traz uma boa notícia. O conteúdo dessa notícia é a salvação de Sião, que será operada por Deus. Tal boa nova traz paz e alegria aos seus habitantes. No texto de Lucas, o anúncio da boa notícia se dá através de um anjo, que aparece aos pastores durante a noite. Ele também traz alegria, pois é a notícia do nascimento do Salvador, de forma que não se refere a um evento futuro, mas a um fato acontecido. Após esse anúncio, os pastores vão a Belém e encontram a situação exatamente como descrita pelo anjo.
O texto de Hebreus apresenta o anunciador, sendo ele o próprio conteúdo da mensagem. O Filho, por meio de quem Deus falou, é o próprio Salvador. Esse
que purificou os seres humanos por meio de sua morte e ressurreição, agora se assenta ao lado de Deus, com toda a glória.
2. Exegese
Vejamos detalhes de cada versículo.
v. 8 – Apresenta a figura de pastores de ovelha, cuja prática é outra do que a conhecida no contexto brasileiro. No período patriarcal, devido ao estilo de vida nômade, as tribos dependiam dos seus rebanhos. A tarefa era difícil, pois consistia em encontrar pastagens durante os períodos de seca, assim como proteger o rebanho contra ladrões e animais selvagens. Mesmo após a ocupação de Canaã, após o êxodo, a cultura do pastoreio permaneceu como uma das alternativas de vida.
No período pós-exílico, o pastoreio é desvalorizado, especialmente por parte dos fariseus. Os pastores recebiam baixos salários, eram tidos como desonestos e lhes eram negados seus direitos civis. Devido aos seus ofícios, eram incapazes de cumprir as exigências da lei, resultando em ainda mais desprezo por parte dos fariseus.
Apesar desse conceito negativo, o Novo Testamento apresenta a profissão pastoral como honrosa e utilizada por Jesus como metáfora do amor de Deus para com os pecadores. Apenas na perícope em análise, pastores exercem uma função ativa. Nas demais menções, trata-se de fi guras de linguagem ou parábolas.
v. 9 – O grego clássico emprega o termo angelos para o mensageiro/embaixador, que fala em nome de quem o enviou. No Antigo Testamento, anjos são seres celestiais, pertencentes à corte de Javé. Esses o louvam e servem. Por outro lado, o AT conhece a figura do Anjo de Javé, como vemos em Êxodo 14.19, Números 22.22 e 2 Reis 1.3-4. É um ser celestial com uma tarefa específica. Neste caso, a personalidade do anjo fica em segundo plano, pois se trata de uma aparição de Javé através do seu Anjo, que vem para ajudar Israel.
No evento da aparição de anjos acontece a irrupção do mundo sobrenatural no mundo natural. No NT, os principais momentos da história de Jesus são marcados pela presença de anjos.
v. 10 – Essa irrupção sobrenatural causa medo nos pastores. Porém, os anjos os acalmam. Sua missão é pacífi ca e traz uma boa nova de grande alegria. Esse “evangelho de alegria” se destina a todo o povo.
v. 11 – Anuncia aos pastores a identidade do menino nascido, ou seja, conformidade com o que mais tarde se transformou na confissão de fé da igreja primitiva, Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador.
A palavra soter/salvador remonta a conceitos veterotestamentários atribuídos a um líder nacional ou a Deus. Nesse sentido, Jesus é o Salvador de Israel, escolhido e capacitado por Deus para tal missão. A origem da designação de Jesus como Salvador se deriva a partir do próprio nome “Jesus”, que significa “Javé é salvação”.
A palavra Cristo é o correspondente grego da palavra hebraica “Messias”, que se refere a uma pessoa cerimonialmente ungida para ocupar determinado cargo. No AT, os detentores de dois cargos recebem essa denominação: o sumo sacerdote e o rei. Porém, apenas sobre o rei recaem as expectativas messiânicas. O NT não olha mais para a chegada do Messias como expectativa, mas como cumprida em Jesus de Nazaré, de tal forma que todas as menções a Jesus pressupõem que ele seja o Cristo. Tanto é que a palavra “Cristo” logo veio a se tornar nome próprio.
O termo kyrios é o correspondente grego para o hegraico adonay e, portanto, foi utilizado para traduzir o tetragrama YHWH, na versão grega do AT, seguindo a tradição de não pronunciar o Nome de Deus. O senhorio de Deus é consequência do seu domínio sobre a criação, visto que essa é obra sua. O senhorio de Jesus é resultado de sua exaltação, que passa pela cruz e pela ressurreição, por meio da qual ele recebe “nome sobre todo nome” (Fp 2.9). Assim, a comunidade cristã paulina confessa que “Jesus Cristo é o Senhor”.
v. 12 – Como, porém, reconhecer esse Messias que nasceu? Antes de sua canção de despedida, os anjos anunciam um sinal, a fim de que os pastores tenham certeza da identidade do Salvador. Ele não se encontra em um palácio, mas “envolto em faixas e deitado em manjedoura”.
v. 13 – A expressão grega plethos stratias ouraniou (uma multidão de outros anjos/NTLH; uma multidão da milícia celestial/RA) é semelhante ao texto hebraico zeba ha-schamain (com todos os seus anjos/NTLH; e todo o exército do céu/RA) que encontramos em 1 Reis 22.19. O texto de Lucas ressalta ser “uma multidão”, mas permite deduzir ser apenas uma parte de um todo maior. Os pastores foram testemunhas de uma grande festa de anjos. O primeiro canto de Natal foi executado pelos anjos.
v. 14 – Glória a Deus nas maiores alturas do céu e paz na terra para as pessoas a quem ele quer bem! Os anjos louvam o nascimento de Jesus. Algo transcendente aconteceu. É lá do alto, de um lugar indescritível, que procede um louvor e desce entre os humanos. Deus é glorificado. Trata-se de uma expressão extraordinária, de enorme impacto naqueles que fazem parte desse momento.
Lutero, baseado em edições bíblicas de seu tempo, dividiu essa frase em três partes: 1. Glória a Deus nas alturas; 2. paz na terra; 3. entre as pessoas a quem ele quer bem. Nessa versão, eudokia encontra-se no nominativo. Eudokia, em manuscritos mais antigos, como o Vaticanus e Sinaiticus, encontra-se no genitivo. Desta forma, o texto se divide em dois: 1. Glória a Deus nas maiores alturas do céu!; 2. E paz na terra para as pessoas a quem ele quer bem! A primeira parte tem seu olhar dirigido ao céu. A expressão grega doxa significa glória, honra, majestade, esplendor. No hebraico, kabod signifi ca “sua honra/reputação”. A encarnação de Deus na pessoa de Jesus é um fato histórico extraordinário, único, que não pode ser compreendido apenas com a dimensão da nossa humanidade.
A segunda parte relata o que acontece na terra. A versão portuguesa IB (Imprensa Bíblica Brasileira) traduz: “entre os homens de boa vontade”. Considerando essa tradução, a paz não se destina a todos? É de Deus que procede a paz. As atitudes de Jesus frente a diversas situações cotidianas demonstram uma postura capaz de promover a paz entre as pessoas. A paz é presente divino para todos os que creem e vivem a boa nova de Cristo. Essa fé redunda em salvação da humanidade. Eirene, Shalom – quanta força há por trás dessas palavras. A paz é o próprio Senhor Jesus (Ef 2.14-17). Ele é a paz que temos de viver.
v. 15 – Os anjos voltam ao céu. Eles transitam entre o céu e a terra. Trata-se de uma perspectiva não humana. Os pastores foram para Belém. Convencidos da autenticidade da experiência vivida, colocaram-se a caminho, obedientes ao que ouviram. Eles reagem positivamente. Acreditam. Reconhecem ser revelação de Deus. A experiência de fé lhes faz andar. A palavra dita pelos anjos foi primeiramente apenas ouvida. Essa palavra precisava ser vista. A boa nova não é apenas ouvida, mas é também presenciada. Ela é experimentada com todos os sentidos. Vamos ver o que o Senhor nos contou.
v. 16 – Os pastores reagiram depressa. Foram e encontraram a manjedoura tal qual lhes havia sido contado (v. 12). Aquele bebê era nada mais nada menos do que o Messias, motivo suficiente para se ter pressa em vê-lo. A imagem da estrebaria foi retratada de diversas formas. Dentre as não tão conhecidas encontramos a caverna, dentre as muitas que haviam nas rochas calcárias da Judeia. Também poderia ser um cômodo estendido de uma casa.
v. 17 – Os pastores contaram para Maria e José a experiência vivida quando da aparição do coro dos anjos. O que se lhes tinha sido dito agora estava na sua frente. Eles contaram o que ouviram e viram.
v. 18 – Maria, José, enfi m, todos que ali estavam ficaram admirados pelo relato que ouviram dos pastores. Maria sabia do que se tratava. Um anjo também
a havia visitado. O mesmo se deu com José. Embora admirados pelo relato, havia uma linguagem comum e compreensível para os que ali se encontravam. Todos foram visitados por anjos.
v. 19 – Neste momento nada de apoteótico acontece. Maria não está sendo visitada pelo exército celestial. Ela está sendo visitada por pessoas muito simples que têm algo para lhe contar. Ela se encontra na sua pequenez, numa estrebaria, com poucos recursos. Tem seu primeiro fi lho, com tudo para aprender acerca da maternidade. Ela não recebe outra revelação a não ser as palavras trazidas pelos pastores. O que naquele instante move a sua alma são essas palavras. Meditar nas palavras ditas foi o que Maria se colocou a fazer. Meditação é aquilo que move o íntimo, está no centro da pessoa e tem nela a sua morada.
v. 20 – Os pastores voltaram ao seu cotidiano, ao relento, às noites frias, aos perigos do ofício, aos dias de sol e chuva, em busca de água e pastagens. Certamente a experiência tida impactou positivamente no seu modo de vida. O que provém do transcendente repercute diretamente no imanente, proporcionando uma nova forma de encarar a vida.
3. Meditação: O grande anúncio
Lá estavam os pastores, gente simples, com a expectativa de um novo dia. Algo inesperado e extraordinário acontece. A presença de um anjo é impactante, mas ainda maior que a presença dele é a notícia trazida.
a) Nasceu o Salvador de vocês
A circunstância em que o povo se encontrava era deplorável. A espera por uma boa notícia era latente. Não mais se suportava a realidade social, política e religiosa. Algo precisava acontecer. Mudanças se faziam necessárias. A hora chegou para que essa expectativa fosse cumprida.
De que forma uma notícia dessa envergadura poderia ser difundida? Percebam a singeleza dos fatos. Os primeiros chamados foram pessoas do campo, pastores, gente muito simples. Segue a mesma lógica do nascimento de Jesus. No versículo 11 temos uma descrição detalhada de quem se trata. Dá-se o endereço e a identidade. O título dado ao que nasceu é extremamente claro. Não há dúvida, esse que nasceu é realmente o Messias esperado.
b1) Glória que vem dos céus
Acreditamos nas palavras do evangelho. Sabemos que anjos existem. Eles se manifestam quando as circunstâncias exigem a sua presença. Nossa fé não depende desse evento. Mas se necessário for, também presenciaremos semelhante experiência.
Anjos são seres celestiais, não humanos, com a missão de proclamar a boa nova. Possuem um poder de convencimento que extrapola a realidade humana. O anúncio simples se deu por intermédio de um anjo, e esse anúncio foi sublinhado por um exército celestial. Muitos “anjos” nos rodeiam no nosso cotidiano, pessoas comuns que nos auxiliam com palavras de alento e orientação, ou ajudando concretamente em situações diversas. Porém, aqui se trata de um acontecimento transcendente.
Um coro de muitas vozes é impactante. Emociona, toca a alma, fala com uma linguagem que transcende simples palavras. É uma composição de texto e melodia. Assim, os pastores são visitados. É algo extraordinário. Nasceu o Messias e essa verdade devemos repassar aos que estão celebrando o Natal.
A força desse evangelho é impactante. A encarnação de Deus é impactante. Portanto a celebração de Natal precisa ser impactante. Não é qualquer coisa que aconteceu. Deus se fez gente. Essa notícia foi e é única, e jamais se repetirá. Não pode haver notícia maior do que essa. Cabe fomentar uma sincera e profunda adoração a Deus.
b2) Paz que desce à terra
Jesus é o príncipe da paz e ele deseja que as pessoas vivam em paz. São as pessoas que causam o caos, a injustiça, o desgoverno, a miséria, a corrupção e as guerras. O propósito de Deus para com a humanidade é o que se encarna no Cristo. As comunidades cristãs querem ser um ensaio dessa nova ordem que Jesus chamou de reino de Deus.
Paz não é um sentimento, mas uma situação de vida¸ que não pode ser abalada por sofrimento algum. Paz não é ausência de conflitos, mas é saber lidar com eles. Paz acontece lá onde Jesus se torna Senhor. São inúmeras as situações em que Jesus agiu pela paz. Mostrou concretamente como se exercita o amor incondicional, movido por uma força transcendente. Há situações nos relacionamentos humanos em que a reconciliação parece impossível. Dotados do Espírito Santo de Deus, tornamo-nos promotores do perdão, da reconciliação, da misericórdia, da compaixão. É desse ambiente que procede a verdadeira paz.
c) A resposta dos pastores
A mensagem, tão surpreendente, não poderia ser ignorada. Tal evento precisa ser visto com os próprios olhos. Os pastores vão depressa para Belém. Depois de tudo que experimentaram, eles não hesitam em fazer tudo o que lhes foi dito. A visita dos anjos lhes pôs a caminho. De muitas formas também Deus nos visita. A palavra de Deus nos visita e nos põe a caminho. Temos uma tarefa nobre em nossa existência e ela se dá neste momento de adoração, quando aqui nos encontramos para festejar o nascimento de Jesus. Repetimos o gesto dos pastores, chegando em comunidade para celebrar o Natal. Também damos a nossa resposta em decorrência desse evento único, magnífico, extraordinário da encarnação de Deus em Jesus.
d) Meditar com Maria
Ir meditar com Maria é se aquietar, silenciar, entrar em um espaço de introspecção. No fundo da alma reside o sentimento de fé, a convicção da verdade do fato ocorrido. O exemplo de Maria, o meditar, precisa ser reaprendido. Implica contemplar a grandeza dos feitos de Deus. Maria sabia quem era o pai da criança. Sabia, embora admirada, do significado do testemunho dos pastores. Tudo convergia na natureza divina de Jesus. Aquele bebê é o próprio Deus visitando a humanidade.
A certeza da obra salvífi ca de Cristo nos leva a crer em Deus. Sem Cristo, não temos como fazê-lo. Deus desce de sua grandeza e se torna gente, valendo-se da linguagem humana para comunicar a salvação que há para a humanidade.
4. Imagens para a prédica
Canalizando a mensagem na figura dos anjos, enfatizaremos a força de elementos transcendentes no imanente. É necessário encontrar algum exemplo local em que se possa relatar esse extraordinário. Deus continua se valendo de experiências que fogem à lógica racional. Os anjos são arautos da paz, arautos daquele que traz a paz.
Observando os pastores, poderemos olhar para aqueles que foram tocados pelo evangelho de Jesus Cristo e saíram correndo para ver a mensagem de Deus encarnada. Ela é tão impactante que retornam ao seu cotidiano, expressando a enorme alegria provinda da pessoa do Messias.
Poderíamos nos deter na canção entoada pelos anjos: Glória a Deus nas maiores alturas do céu! E paz na terra para as pessoas a quem ele quer bem! Dirigimos nosso olhar aos céus e também ao nosso redor. Dos céus percebemos a glória de Deus. Essa glória repercute nas relações humanas, promovendo a paz.
Maria nos impulsiona a ter uma atitude de meditação. Num mundo atribulado, bombardeado de informações, somos convidados a nos aquietar e refletir acerca da grandeza da realidade da encarnação ocorrida na pessoa de Jesus.
5. Subsídios litúrgicos
A canção a seguir merece ser vista com atenção pela sua melodia e texto.
Depois de “Noite Feliz”, é a canção natalina mais cantada em nossa comunidade.
Já é Natal no meu coração
Já chegou mais um Natal e o presépio está a nos lembrar que nasceu na manjedoura o Rei e vieram os pastores para o adorar.
Brilha a estrela a anunciar: Nasceu Jesus, o Rei. Venha adorar ao Rei, Senhor da Criação.
Com Maria e José os reis magos adoraram o Salvador; e os anjos a cantar louvores deram glória e majestade ao Criador.
Nasceu o Salvador da humanidade. A luz da verdade brilhou seu esplendor.
/: Já é Natal no meu coração. Brilhou a luz na escuridão. O meu caminho iluminou; minha vida transformou. :/
Ele veio para nós; com humildade ensinou que seu reino é de paz, de gratidão, perdão e amor.
Que é preciso acreditar num mundo bem melhor, que existe uma razão pra ser Natal no meu coração.
Texto e música: Daniel Muniz (membro da Comunidade da Paz de Porto Alegre)
Bibliografia
BROWN, Colin; COENEN, Lothar (Orgs.). Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. v. 1. Guaratinguetá, SP: A Sociedade Religiosa; A Voz Bíblica.
RIENECKER, Fritz. Das Evangelium des Lukas. Darmstadt: Brockhaus Verlag Wuppertal, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).