Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 2.15-21
Leituras: Números 6.22-27 e Filipenses 2.5-11
Autor: Werner Wiese
Data Litúrgica: Ano Novo: Nome de Jesus
Data da Pregação: 01/01/2010
1. Introdução
Atrás de nós está uma das principais celebrações do calendário eclesiástico: a comemoração do nascimento de Jesus. Neste dia, salvo exceções, a casa de Deus (“igreja”) está cheia. Isso se sabe de antemão e pode ser um incentivo para preparar o culto e, dentro dele, a prédica com dedicação e alegria. Mas como será a frequência do primeiro culto após o Natal? Em comunidades mais rurais, após o Natal a vida no campo segue seu ritmo. No contexto urbano, muitos membros de nossas comunidades já vivem em clima de férias. Aliás, nós mesmos podemos estar contagiados por esse clima. Quem sabe, este primeiro culto depois do Natal seja o último culto antes de nós pessoalmente usufruirmos merecidas férias. Somado ao cansaço das intensas atividades das comemorações que precederam o Natal e se condensaram nesse dia, poderíamos pensar: só mais esse culto e só mais essa prédica, então posso descansar. Seja como for, não esqueçamos que, independente do número de pessoas que virão para o culto, para muitos dos que estarão no culto, o Ano Novo pode estar carregado de perguntas e preocupações, como: O que o novo ano trará consigo? Como vou passar por este ano? Outras pessoas que estão no culto entram neste ano cheias de projetos para realizar. Levando esse possível cenário em conta, o texto para a prédica é orientador. O texto sinaliza para atitudes geradas pelo agir de Deus (anúncio do nascimento de Jesus): assim que os anjos se ausentam, os pastores de ovelhas se “mobilizam” e, de ouvintes do recado de Deus, tornam-se anunciantes do que viram e ouviram. E assim a mensagem vai se propagando como efeito de uma “reação em cadeia”. É a dinâmica do evangelho que se manifesta. Olhemos com mais atenção os detalhes do texto.
2. Exegese
2.1 – Inserção do texto no seu contexto literário imediato
Tal qual o texto nos foi transmitido e preservado, nossa perícope é parte de uma unidade literária maior, composta de Lc 2.1-20 (21). Exegeticamente, essa unidade não deveria ser dividida. Contudo, são vários os auxílios homiléticos que separam o texto para a prédica de hoje de sua unidade maior.
Homileticamente falando, isso não só é possível, mas é até recomendável, pois dentro da unidade maior se detectam unidades menores: a) Os v. 1-7 narram o nascimento de Jesus propriamente dito. Essa narrativa não tem paralelo sinótico exato. Obviamente, nós não conseguimos mais lê-la sem pensar em Mt 2.1ss e seu contexto. b) Os v. 8-14 narram o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores de ovelhas no campo. E, por fim, c) os v. 15-20(21) destacam reações evocadas pelo anúncio do nascimento de Jesus. A observação consciente desses fatos é importante para a elaboração da prédica.
2.2 – Contexto histórico e teológico
A unidade literária maior da qual nossa perícope faz parte não deve desconsiderar seu contexto maior. Dele fazem parte aspectos históricos seculares e teológicos: a) Aspectos históricos seculares são claramente sinalizados pela expressão adverbial de tempo “naqueles dias” e pelos nomes de “César Augusto”, “Quirino” (Lc 2.1-2) e “Herodes” (Mt 2.1, 3, 16, 19; cf. ainda Lc 1.5) – mandatários políticos da época e local dos acontecimentos narrados pelo escritor bíblico. b) Aspectos teológicos são nítidos nos “prefácios” às narrativas do nascimento de Jesus em Lc 1.5ss e Mt 1.1ss. Também os aspectos teológicos querem ter acento histórico concreto (Lc 1.5). Tudo isso deixa claro que o agir de Deus não é virtual nem somente uma questão de interpretação existencial individual, mas ocorre em meio aos desafios da vida diária e política, na maioria das vezes contrários ao evangelho. Aliás, o interesse pela história ou pela “pesquisa histórica” é nítido no Evangelho segundo Lucas (Lc 1.1-4).
2.3 – Aspectos linguísticos e teológicos internos do texto
Dentro do texto para a prédica de hoje ainda podem ser destacados alguns aspectos distintos úteis, inclusive a estruturação da prédica para fins didáticos comunicativos: a) Os v. 15-17, 20. Esses destacam acima de tudo resoluções e atitudes dos pastores de ovelhas após terem ouvido o recado do anjo. b) O v. 18 enfatiza a reação das pessoas à mensagem ouvida da boca dos pastores. c) No v. 19, sobressai a atitude de Maria. d) O v. 21 (e v. 22): a criança nascida recebe o nome Jesus. O v. 21 é, de fato, um elo que marca a transição entre o evento natalino em si e a inserção de Jesus no contexto histórico-teológico do seu povo. Desdobremos esses aspectos:
V. 15-17,20 – No v. 15 fecha-se a cena aberta no v. 9 e forma-se, por assim dizer, um contraponto à locução “um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam”; contrapõe-se “ausentando-se deles os anjos para o céu”. Chama a atenção que no v. 9 fala-se de anjo e aqui de anjos. Certamente o plural subentende a milícia celestial mencionada no v. 13. A presença de anjos (= mensageiros “celestiais”) não é comum no cenário do povo de Deus, mas constitui um momento singular em circunstâncias específicas e para uma tarefa específica. Eles são hermeneutas/intérpretes do agir incompreensível de Deus. Acabada a tarefa que lhes cabe, não se justifica mais sua presença. Chama a atenção que, entre a função do(s) anjo(s) e a atitude dos pastores, existe um paralelismo: os anjos são os anunciantes e intérpretes primários dos grandes feitos de Deus. Os pastores do campo – gente humilde e até desprezada – “assumem” o bastão e anunciam o evangelho em segunda instância a outros. É significativa a resolução: “Vejamos os acontecimentos…” A palavra grega traduzida por acontecimento é rêma e pode ser associada à palavra hebraica dabar, que significa “palavra, evento”. A palavra do Senhor é mais do que simples junção de fonemas ou emissão de sons. Ela é e realiza o que diz – é acontecimento. Esse acontecimento não dispensa a verificação ou certificação, mas a torna possível. Veja para tal o v. 12: “Isto vos servirá de sinal…” Um sinal estranho, pois a criança na manjedoura não trazia consigo uma auréola que pôde ser vista a distância e que atestava ser essa o messias. Era preciso crer a partir do ouvir e ir ver para confirmar a fé. Assim como os anjos louvaram a Deus e voltaram ao céu, os pastores dos campos também louvaram a Deus e voltaram para o seu lugar, a seus afazeres diários.
V. 18 – A palavra grega traduzida como “admirar” é thaumazein e expressa surpresa, estar atônito. Isso mostra que, de fato, na criança nascida em Belém (Jesus) não havia nenhum sinal extraordinário que por si só evidenciasse o sentido mais profundo do nascimento dela. O que aconteceu careceu do anúncio por parte dos pastores do campo de acordo com o que ou como esses haviam ouvido da boca dos anjos (cf. os v. 16 e 20. Nesse último versículo, a expressão grega kathôs = como). Admirar-se não significa um êxtase que desencadeia um movimento que arrasta multidões sem que essas percebam o que estão fazendo. É uma reação à percepção, ainda que momentânea, de algo que normalmente não é captado pelos quatro sentidos do ser humano. “Todos… se admiraram…” é o início do cumprimento daquilo que foi dito pelo anjo no v. 10. No contexto das narrativas em torno do nascimento de Jesus e de João Batista, essa reação aparece quatro vezes (Lc 1.21, 63; 2.18, 33).
V. 19 – A atitude de Maria é outro fator surpreendente. Causa-nos bastante estranheza. Pois como essa atitude combina com o que fora dito a ela em Lc 1.26-38? Essa estranheza, contudo, não nos deve levar inevitavelmente a pensar que apenas nos movemos num campo lendário. Nos “todos” do v. 18, Maria está incluída. E, em última instância, o que aqui acontece e se expressa é fortalecimento de fé para Maria, pois o que lhe fora dito em Lc 1.26-38 não a torna imune contra a dúvida séria (cf. Lc 1.27). Mesmo alguém que é “usado” por Deus como seu “instrumento” necessita de fortalecimento e confirmação da fé. A postura de Maria registrada no v. 19 reaparece mais uma vez em Lc 2.51.
Se, por um lado, Maria está incluída nos “todos” (v. 18), sua postura ainda se distingue ou vai além do admirar-se.
“Admiraram-se” (no grego usa-se o aoristo ethaumasa) pode sinalizar algo momentâneo, não necessariamente duradouro. De Maria diz-se que ela “guardava todas essas palavras” e “meditava-as no coração“. Para guardar no grego emprega-se o imperfeito synetêrei, que está ligado ao raciocínio humano consciente. Já para meditar usa-se o particípio presente symballousa, que significa “refletir sobre”, colocar algo lado a lado para comparar. Talvez se deva pensar aqui inclusive num exercício de comparação das palavras ditas pelos pastores do campo e pelo anjo em Lc 1.26ss.
Teologicamente falando, onde Deus age, também e especialmente fora dos padrões normais, a postura correta do ser humano é o silêncio ou o ouvir meditativo, a partir do qual podem nascer outras atitudes.
V. 21(22) – Estamos tão acostumados com o nome JESUS, principalmente em textos que são abordados em datas próximas ao Natal, que nem sempre nos damos conta da sua relevância ou da ênfase que se está dando ao mencionar esse nome. Assim pode acontecer com o texto para a pregação. À primeira vista, o nome parece estar mais à margem. Mas, no fundo, é para ele que tudo conflui. Há dois momentos importantes a serem mencionados. Um é que, quando se destaca que deram ao menino (à criança) o nome JESUS, deparamo-nos com um sinal de cumprimento de promessa dada por boca de anjo (Lc 1.31). No fundo, é desse nome que tratam todo o evento Natal e a prédica deste domingo. Teologicamente falando, aqui também está uma conexão muito nítida do nosso texto com as leituras indicadas: a centralidade desse nome e o vínculo que ele estabelece com o Deus verdadeiro.
O outro momento é que a circuncisão dessa criança também é sinal de cumprimento, não de uma promessa, mas da exigência da lei do Antigo Testamento. Se o apóstolo Paulo diz: “O fim (no grego é usado telos = cumprimento/alvo) da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4; cf. também Mt 5.17), então na circuncisão da criança já inicia o cumprimento desse telos. Inclusive ao se submeter ao batismo de João Batista, Jesus cumpre a justiça de Deus (cf. Mt 3.15). Pode-se dizer que o Senhor da lei submete-se à lei para cumpri-la (compare também Lc 2.21-24 com Gl 4.4).
3. Para a prédica
3.1 – Meditação do texto
O recado primário transmitido pelo anjo (v. 10-12) e entoado em forma de louvor a Deus pela milícia celestial (v. 14) não se perdeu no vazio da noite nos campos ao redor de Belém. Pelo contrário, ressoou em duplo sentido pela boca dos pastores de ovelhas: Por um lado, os pastores que eram os ouvintes primários da mensagem do nascimento de Jesus tornaram-se os primeiros proclamadores dessa mensagem a terceiros. Parece que os pastores dos campos de Belém estavam sob o peso da alegria do céu, de modo semelhante ao que é testemunhado em At 4.20: “Pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos“ (cf. também 1Jo 1.1-4). Assim se desencadeou um processo de proclamação dos grandes feitos de salvação de Deus, que, desde então, passa as gerações, percorre o mundo até hoje e chega a nós sempre de novo. O primeiro efeito público da proclamação feita pelos pastores foi a admiração dos ouvintes (v. 18). O que aconteceu com essas pessoas depois dessa proclamação não nos é dito. A atenção está centrada no evento em torno da criança recém-nascida que recebe o nome JESUS, pois somente nessa criança e não em todas as crianças que nascem está o Emanuel – o Deus conosco (cf. Mt 1.23). De qualquer forma, os ouvintes dessa mensagem tornam-se representantes de todos os ouvintes posteriores dessa mensagem. E a proclamação do evangelho pode ser feita sob a perspectiva e expectativa de encontrar eco entre os ouvintes. Nem sempre esse eco é como nós o esperamos, pois o efeito da proclamação da palavra de Deus não está em nossas mãos. E isso é bom, caso contrário o pregador teria que produzir resultados; o que não só não seria bom, mas altamente perigoso e facilmente perverteria a proclamação da palavra sob nossas mãos ou em nossa boca.
Por outro lado, é da boca dos pastores que o louvor que desceu dos céus sobe aos céus (v. 20). E de forma semelhante aos ouvintes da mensagem dos pastores (v. 18), nada sabemos desses pastores, a não ser que retornaram às suas atividades diárias, “glorificando e louvando a Deus”. Mas aqui está toda a diferença. G. Voigt diz: “Desde que ele nos está tão próximo, vive-se diferente”. Aqui há um aspecto importante a ser enfatizado, tanto para o próprio anunciante da palavra como para os ouvintes dela: o nosso dia-a-dia depois do dia de Natal na maioria das vezes não é diferente do que era o nosso dia-a-dia antes do dia de Natal, mas a presença de Deus faz com que possamos encará-lo de modo diferente. Na medida em que nos é dado compreender isso de mente e coração, podemos fazer coro com os pastores de Belém e dessa forma convidar e motivar outras pessoas a fazer o mesmo.
3.2 – Sugestões para estruturar a prédica
O domingo ou o texto para a prédica de hoje destaca que não se trata de qualquer palavra, prédica nem qualquer fé. A palavra e, por conseguinte, a pregação e a fé estão focadas no que Deus fez ao vir a este mundo na criança da manjedoura de Belém, que recebe o nome JESUS. Dele vale o que é testemunhado em Atos 4.12: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”.
O nome JESUS é o Deus conosco – Emanuel. Por isso:
1) Dele, de Jesus, precisamos e podemos ouvir. Aqui é indispensável que se destaque a relevância do testemunho bíblico a respeito de Jesus. Sugere-se atenção especial para que a prédica não se torne genérica, de modo a ofuscar o específico da mensagem a proclamar a partir do texto sugerido para este dia. Aqui inclusive é possível e recomendável fazer a conexão com Fp 2.5-11, um dos textos das leituras bíblicas do culto de hoje. A singularidade do nome JESUS é muito clara nessa leitura bíblica.
2) A ele proclamamos. A partir do testemunho bíblico surgem a pregação e a fé, como o apóstolo Paulo registra em Rm 10.17 e seu contexto: “E, assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”. Poderíamos traduzir também: “Ora, a fé surge a partir do ouvir a pregação e pregação vem pela palavra (rema) de Cristo”. É importante enfatizar mais uma vez que o ouvir precede o ver e crer. Isso é um específico do texto sobre o qual pregamos hoje.
3) Nele cremos. Se, por um lado, a pregação se baseia no testemunho bíblico, isto é, na palavra de Deus que nos é preservada, então, do outro lado, a pregação está sob a promessa de gerar a fé; não qualquer fé, mas a fé no nome de Jesus. E aqui é possível fazer a ligação com Nm 6.22-27 – outro texto da leitura bíblica para o culto. Vale refletir sobre a ligação entre a bênção sacerdotal no final do culto e a fé que surge a partir do ouvir o anúncio da palavra que testemunha os grandes feitos de Deus.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados:
Senhor, nós te agradecemos por poder estar reunidos na tua presença neste dia. Mas, Senhor, na tua presença não apelamos para a nossa justiça, pois pecamos contra ti e nosso próximo em pensamentos, desejos, palavras e atitudes. Por isso pedimos que queiras ser misericordioso conosco e perdoar os nossos pecados por causa de Jesus, teu Filho, que é nosso Salvador. Conceda-nos, Senhor, a tua alegria para viver na tua presença hoje e todos os dias do novo ano. Amém.
Intercessão:
Sugerir primeiramente que a comunidade cite motivos de intercessão. Dependendo da quantidade dos motivos, é possível que se interceda por alguns e se intercale o Kyrie eleison. E, por fim, que o pastor ou a pastora abranjam os pedidos pela igreja no mundo, pelas autoridades, pela comunidade local e encerrem com o Pai-nosso, se não houver Ceia.
Bibliografia
L’EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993
VOIGT, Gottfried. Der schmale Weg. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1978. p.44-50.
VOLKMANN, Martin. Proclamar Libertação, v. 32. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007. p. 41-45.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).