Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 21.5-19
Leituras: Malaquias 4.1-2a e 2 Tessalonicenses 3.6-133-17
Autor: Eloir Enio Weber
Data Litúrgica: 26º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 17/11/2013
1. Introdução
Penúltimo domingo do ano litúrgico. Este tempo de “fim de ano” traz textos bíblicos que desafiam o pregador. Basicamente, três tipos de pregadores destacam-se diante de um conjunto de textos como o que se apresenta para este domingo: aqueles que leem e “fogem do texto”; os fundamentalistas, que apontam para as catástrofes atuais e dizem que a “Bíblia já previa tudo” (para esses, o texto é ótimo – não dá trabalho); e os que encaram o texto e o respeitam em seu contexto histórico. Esse último grupo tem um desafio, mas também tem a oportunidade de trazer uma mensagem de esperança para a comunidade reunida.
Pode-se perceber nos três textos uma unidade temática. O estilo apocalíptico, a referência ao fim dos tempos, a parusia, de uma forma ou de outra, perpassam os três textos. O texto de Malaquias anuncia a vinda de um tempo de “fornalha ardente” para os “perversos” e “soberbos” (v. 1), enquanto o “sol da justiça” nascerá trazendo salvação aos que “temem o meu [de Deus] nome” (v. 2). No texto de leitura neotestamentária, a comunidade de Tessalônica defronta–se com a situação de algumas pessoas que esperavam a parusia imediatamente (como, aliás, é bem corrente no Novo Testamento – inclusive Paulo tinha essa esperança) e por isso se acomodaram: não trabalhavam porque logo o Reino viria. Como não trabalhavam, estavam desocupadas e “se intrometiam na vida alheia” (v. 11). Essa linha de pensamento é combatida por Paulo, que escreve de forma dura: “Se alguém não quer trabalhar, que não coma (v. 10)” e admoesta a comunidade: “Não vos canseis de fazer o bem” (v. 13).
No texto do evangelho, que é também o texto de pregação, Jesus fala da destruição do templo e, em estilo apocalíptico, fala dos sinais e das perseguições e sofrimentos que seus seguidores deverão ainda enfrentar.
O desafio, portanto, é encarar o conjunto de textos e tirar uma mensagem de esperança para este penúltimo domingo do ano eclesiástico.
2. Exegese
O Evangelho de Lucas, conforme defendido amplamente por estudiosos, é a primeira parte de uma obra maior que se completa no livro de Atos dos Apóstolos. No evangelho, o autor (seria Lucas, o companheiro do apóstolo Paulo em suas viagens?) apresenta o “caminho de Jesus”, e em Atos os Apóstolos, o “caminho da igreja”. Juntos, os dois livros apontam para o “caminho da salvação”.
A característica do Evangelho de Lucas é apresentar o caminho de Jesus como o caminho que acontece dentro da história, valorizando, de forma especial, os pobres e oprimidos. O autor visa auxiliar as pessoas a fazer história de uma forma mais justa e humana. Nesse caminho, Jesus é companheiro de caminhada.
O texto do capítulo 21 faz parte de um bloco maior dentro da narrativa de Lucas. Esse bloco compreende os capítulos 19 a 24 e descreve os acontecimentos na cidade de Jerusalém nos últimos dias antes da morte e ressurreição de Jesus. Nesse bloco, Jesus envolve-se em uma série de controvérsias com líderes religiosos ligados ao templo. Esses eventos, em boa medida, explicam os motivos que levaram Jesus a ser crucificado.
O lugar do episódio refletido no capítulo 21 é o templo de Jerusalém, como mostra o texto anterior, em que Jesus faz uma observação a respeito das ofertas depositadas no gazofilácio, especialmente a oferta de uma viúva pobre.
A perícope é conhecida como o “pequeno apocalipse”. Tem como ponto de partida a predição de Jesus em relação à destruição do templo. Em vista da admiração das pessoas frente à beleza e ao tamanho do mesmo, Jesus diz que “dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada” (v. 6).
O templo causava admiração nas pessoas pela beleza, mas Jesus via o que as pessoas não enxergavam. Por trás da edificação aparentemente indestrutível estava uma religiosidade decadente, opressora e falsa. O povo, inclusive os discípulos, esperava ardentemente uma era áurea, que seria instituída em seus próprios dias. O templo tinha um lugar privilegiado nessa era de poder e de glória para o povo. Essa espera tinha a ver com a vinda do Messias poderoso e líder guerreiro. Diante dessa espera, a afirmação de Jesus é chocante, pois mexe com a religiosidade e a esperança imediata do povo. O templo era símbolo da relação de Deus com o povo escolhido. É preciso perceber que o fim da instituição/edificação não significa o fim da relação de Deus com os seres humanos.
A perplexidade tomou conta dos discípulos que relacionaram a destruição do templo ao fim do mundo e quiseram saber os sinais de aviso que deveriam esperar. A primeira parte da resposta de Jesus diante do assombro dos interlocutores é uma advertência contra os falsos messias e todas as suposições sobre a iminência do fim. Ele conclama os discípulos para se tranquilizar diante de possíveis sinais apocalípticos e a proclamação da iminência dos acontecimentos. O fanatismo deve ser combatido, e diante das catástrofes é necessário estar sóbrio, não se deixar influenciar e não seguir os ensinamentos de falsos profetas.
A literatura apocalíptica dá-nos a percepção de que situações de crise são propícias para o surgimento de “messias de plantão” para apontar as catástrofes e dizer que o fi m se aproxima. Jesus conclama os discípulos para uma análise corajosa e livre da tentação de tirar proveito da situação.
O que dá segurança ao ser humano neste mundo será afetado. A religiosidade ligada ao templo na época de Jesus trazia segurança para as pessoas, mas essa segurança era ilusória, pois, ao invés de libertar, escravizava. As bases sobre as quais o ser humano constrói sua vida precisam ser estremecidas para que surjam a verdadeira confiança e fé em Deus. As predições descritas por Jesus sempre têm caracterizado a história da humanidade. Sempre existiram e sempre existirão. A queda do ser humano, o pecado, trouxe consigo as paixões egoístas e as desavenças, sejam elas entre seres humanos ou povos. As catástrofes naturais varreram vidas ao longo de toda a história humana.
Quatro perturbações da natureza são descritas por Jesus: terremotos, fomes, epidemias e terríveis fenômenos no firmamento. São símbolos apocalípticos comuns. “Tempos de terror levam pessoas a Deus: A vida nunca é tão insegura como quando nos apegamos a ela; e nunca é tão segura quando a deixamos nas mãos de Deus. Esse momento é um momento de criação. Não o ponto onde desistimos, é o ponto onde realmente começamos” (CHAMPLIN, p. 202).
As calamidades não pouparão os crentes. Haverá perseguições e traições generalizadas (até mesmo dentro do núcleo familiar). As perseguições aos crentes têm um motivo claro: “por causa do meu [de Jesus] nome” (v. 12). Diante dessa real situação, Jesus trata de tranquilizar o seu grupo de discípulos: “Assentai em vosso coração de não vos preocupardes” (v. 14). A vivência da fé dá-se na caminhada. Não antevendo e prevendo situações, mas agindo onde estiverem as necessidades e onde estiver um coração aberto para acolher a mensagem do evangelho. A verdadeira rejeição não se dirige às pessoas portadoras do evangelho, mas ao evangelho em si, pois esse estremece o poder estabelecido (simbolizado, nesse texto, pelo templo).
Nada acontece sem que Deus tenha o controle da situação: “Não se perderá um fio de cabelo da vossa cabeça” (v. 18). Tudo o que é criado por Deus permanece em sua memória. Por isso Jesus ressalta que é na “perseverança” (v. 19) que a salvação é recebida de forma graciosa, total e irrestrita. Viver a fé é um desafio diário. Ninguém é colocado dentro de uma redoma, protegido do mundo e do poder estabelecido, mas é amado por Deus, salvo em Cristo e santificado pelo Espírito Santo.
3. Meditação
O ponto de partida para todas as outras questões levantadas nesse texto do evangelho é a frase de Jesus: “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada” (v. 6). Fiquei meditando longamente sobre essa frase. Não é uma frase irrefletida. Não é algo que alguém diz só porque está com raiva de uma construção. Ela reflete sobre a relação do ser humano com Deus, cujas bases o Criador estabeleceu, mas que a criatura transformou para cultivar sua própria religiosidade.
Concordamos facilmente com Jesus quando esse fala da destruição do templo de Jerusalém. Dizemos que aquele tipo de religiosidade já não servia mais, porque tinha se desviado totalmente do propósito inicial de Deus: “Eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho, para que me temam todos os dias, para o seu bem e bem de seus filhos. Farei com eles aliança eterna” (Jr 32.38-40a). Mas… e a igreja? (Refiro-me à instituição, à igreja visível).
Hoje nos defrontamos com um problema sério. As pessoas estão cada vez mais espiritualizadas, mas cada vez mais longe da igreja. As pessoas estão cada vez mais cientes de que a religiosidade é intrínseca à vida, à condição humana, e que o ser humano, entre outras coisas, é um ser espiritual. As pessoas têm saudade de Deus, mas da igreja, como instituição, não raras vezes elas não querem saber. Será que não estaríamos nós, como igreja, pagando o preço pelos descaminhos históricos pelos quais andamos e insistimos em caminhar? O nosso modelo é cristão, ou seja, ele agrada a Cristo?
Fazendo uma análise, grosso modo, temos uma instituição igreja, a maior delas, que é regida por um regime de principado (papado). A palavra dele é lei, em alguns momentos maior do que a Bíblia. Temos um outro modelo mais recente, que está em plena expansão, que são as igrejas/empresa, em que se vendem e compram a esperança e tudo o mais que Deus pode oferecer. Nós luteranos (IECLB) temos um outro modelo. Defendemos que é um modelo mais próximo e baseado em nossa compreensão eclesiológica. Acreditamos que a igreja são as pessoas. A comunidade, onde as pessoas congregam, é onde acontece a igreja. Temos a ideia de “caminhar juntos na mesma direção” (sínodo), mas muitas questões ainda precisam ser revistas e ensaiadas ao longo da viagem.
Eu não tenho a intenção de “azedar” o discurso de ninguém. Até porque também sou desafiado a buscar uma eclesiologia saudável. Somos agentes que têm a tarefa e a pretensão de semear sinais do Reino, que inclusive se fazem presentes em nossa igreja, nossa visão eclesiológica. Diferente do que o templo de Jerusalém, a igreja (visível) não é só um prédio ou uma instituição. Ela é feita de pessoas. É feita por uma caminhada de fé, que busca vivenciar a mensagem do evangelho para dentro do contexto histórico. Esse evangelho faz diferença neste mundo.
Tenho a convicção de que a igreja cristã não será destruída porque, enquanto duas ou três pessoas com fé estiverem reunidas, ali é a igreja de Cristo. O tema do ano da IECLB, que será encerrado em breve, mostra a preocupação da igreja com os vínculos das pessoas em sua comunidade de fé. Refletir sobre formas de vínculos saudáveis, onde seja possível compartilhar a vida, é colocar-se sob o poder de Cristo e buscar respostas para uma eclesiologia cristã, baseada no evangelho.
Quando o ser humano sente-se acolhido, integrado, cria vínculos afetivos. É respeitado em suas limitações, suas necessidades e convicções. Então ele fica mais fortalecido para enfrentar a vida. Nenhum ser humano está imune aos “terremotos, fomes, epidemias e terríveis fenômenos no firmamento” (v. 11) da vida. Passamos por muitas situações nas quais nos perguntamos sobre o sentido da fé. Nesse ponto, não raras vezes, manifesta-se o amor de Deus. E ele se manifesta pelos vínculos saudáveis que criamos. Isso é igreja. Isso significa pertencer a Cristo. Bendito é o ser humano que tem uma mão estendida, em nome de seu Deus, no momento de tragédia e abalo pessoal, familiar ou social. Podemos ter a certeza de que “não se perderá um fio de cabelo da vossa cabeça” (v. 18).
Essa igreja feita de pessoas chamadas pelo Batismo, congregadas pelo poder do Espírito Santo, unidas na mesma fé em Cristo, essa não será destruída. Ela pode ser abalada, sacudida, mas sobreviverá porque não é estática. Mesmo não sendo estática, é balizadora da vida de fé. O mundo precisa dela. Caso contrário, tudo é válido em termos de fé.
4. Imagens para a prédica
Talvez seja bem mais fácil dizer o que o pregador não deve fazer nesse texto. Um grande erro seria descrever as últimas tragédias humanas e apontar para comunidade com o dedo em riste e dizer que tudo já estava previsto. A literatura apocalíptica não foi escrita com o propósito único de facilitar a vida do pregador, ou seja, deixar a prédica pronta ao transformar em espetáculo as tragédias humanas.
Não temos esse direito. Os propósitos de Deus são maiores do que as nossas vontades. Vivemos em um mundo difícil. Não tenho dúvida! Mas as pessoas precisam ter a sua inteligência respeitada. Precisam, acima de tudo, que as suas chagas, suas necessidades, suas sedes e fomes sejam levadas a sério. Os abalos que elas sofrem na vida precisam ser vistos à luz do evangelho da graça e do amor de Deus. Sugiro que essa seja a tônica da pregação. Para dentro dessas situações da vida, a pregação poderia apontar para a eclesiologia. Para a necessidade humana de estabelecer vínculos saudáveis. A comunidade de fé é o lugar, por excelência, para a criação de vínculos saudáveis.
A comunidade de fé, diferente do templo, não será destruída porque é feita de pessoas chamadas pelo Batismo e congregadas pelo Espírito Santo. A comunidade é um lugar onde a vida flui pelas relações de confiança, estabelecidas a partir da fé em Cristo.
5. Subsídios litúrgicos
O local da celebração poderia ser preparado com tijolos* espalhados pelo ambiente, simulando uma demolição. Nos tijolos, podem-se colar palavras (na parte que fica virada para baixo) que digam algo da importância de fazer parte de uma comunidade. Exemplos: vínculo, partilha, comunhão, consolo, fé, oração, intercessão, aceitação, amparo,…..
Durante a celebração, algumas pessoas podem ser desafiadas a pegar um tijolo. Quando as pessoas pegam o tijolo, descobrirão a palavra e poderão ser desafiadas a lê-la em voz alta.
No fim, juntam-se os tijolos e, com as palavras voltadas para fora, constrói-se uma igreja.
A reflexão vai ser direcionada para a eclesiologia, relacionando com a predição de Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém. Fazer o olhar de que não estamos livres dos abalos e relacionar com a importância da comunidade de fé para nos fortalecer e nos recolocar em pé depois dos abalos sofridos na vida (resiliência).
* Pode-se usar a criatividade. Não precisam ser tijolos; podem ser caixinhas de leite revestidas ou mesmo tacos de madeira. Cada qual pode usar o material disponível em sua realidade.
Hinos do HPD: 336 (Quando o povo se reúne); 393 (Para os montes olharei); 221 (Senhor, porque me guarda a tua mão); 432 (Se caminhar é preciso).
Bibliografia
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. V. 5, 4. ed. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural, 1983.
GEORGE, A. Leitura do Evangelho Segundo Lucas. 3. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).