Prédica: Lucas 23. (26-32) 33-49
Leituras: Oséias 5.15b-6.6 e Hebreus 9.15-17,26b-28
Autor: Silvia Beatrice Genz
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 17/04/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. O texto
V. 33: Menciona a localização geográfica do lugar das execuções não em hebraico-aramaico, Gólgota, mas sim em grego, Caveira-Calvário. Assim como na época era comum que certos lugares tinham dois nomes, em línguas diferentes, também aqui podemos aceitar as duas expressões como originais: Gólgota e Caveira-Calvário. Em Lucas é usada a versão grega. Para descrever a crucificação os evangelistas usam uma breve frase e Lc igualmente: Ali o crucificaram. Todos conheciam a terrível morte que se empregava para os escravos. Segundo o costume romano os condenados à morte de cruz (geralmente escravos e rebeldes, segundo Cícero, Verres 11,5,65,165: o mais bárbaro e terrível castigo) são primeiramente flagelados sem misericórdia. Em seguida, devem carregar às costas a travessa da cruz até o lugar da execução, onde já se encontra a parte vertical no chão. São desnudados, pregados na cruz, normalmente em forma de um T, e erguidos, ficando dois ou três metros acima do chão, por horas a fio ou por dias, até a morte por esgotamento… (Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, pp. 123 e 124).
A parte final do versículo localiza Jesus como crucificado no meio dos dois malfeitores, sendo ele o mais perigoso.
V. 34: Jesus intercede por seus inimigos. Aqui somos confrontados com as palavras de Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Elas soam estranhas ao nosso pensamento. Elas nos lembram palavras faladas anteriormente por Jesus em Lucas 6.27: Digo-vos… Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, que se tornam no momento crucial atitude concreta como ensinamento conforme conclusão de Jesus em 6.31: Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles. E neste sentido pode-se ler At 7.60, a oração de Estêvão. Ela tem o mesmo espírito que a oração de Jesus.
Suas vestes são repartidas, e lançam sortes sobre elas. Podemos ler as mesmas palavras no Salmo 22.18. Podemos ler ainda outras palavras, no relato da Paixão, que se encontram no Antigo Testamento. Não queremos nos ater à discussão sobre o valor histórico destes. Perguntamos: será que esta alusão de várias frases aos Salmos nos mostram a maneira como a história da Paixão é relatada, contada na comunidade cristã? E o que ela nos quer transmitir? Ligar a história do povo — passado e presente — ao sofrimento e morte de trabalhadores e trabalhadoras.
V. 35: O povo observa perplexo o que não queria que acontecesse. As autoridades zombavam: Salvou os outros; a si mesmo se salve, se é de fato o Cristo… Jesus é gozado como o mais fraco; isso certamente deu grande poder às autoridades. A visão era de que Jesus deveria se salvar a si mesmo.
Vv. 36 e 37: Os soldados romanos participam da gozação: oferecem vinagre a um rei que é morto na cruz como criminoso. Ideologicamente insistem em que Je¬sus se salve a si mesmo, de acordo com a sua compreensão de reinado.
V. 38: Este é o Rei dos Judeus. — Esta frase indicava a sua culpa, como gozação. Mas também os romanos queriam com ela diminuir a culpa que recaía sobre eles. Na verdade, o título expressa a todas as pessoas a chegada da realeza queda a vida. Vida que Jesus deu e devolveu às pessoas que iam ao seu encontro, os da margem da sociedade, pobres, aleijados, mulheres e crianças doentes, Lázaro, u filha de Jairo, o filho da viúva…
V. 39: O pensamento de um dos criminosos é idêntico ao pensamento dos matadores e mandantes: Salva-te a ti mesmo; é acrescido o pedido e a nós também, o que o coloca em situação inferior, como acusado.
Vv. 40 e 41: O outro criminoso malfeitor repreende o primeiro e diz: Nem ao menos temes a Deus estando sob igual sentença? Aparece a expressão temor a Deus, não se fala mais em salvar-se a si mesmo. Ele reconhece que o seu castigo é merecido; mais ainda, confessa que Jesus nenhum mal fez; em outras palavras, ele tem fé nas palavras e na ação de Jesus como Filho de Deus.
V. 42: Nas palavras deste versículo podemos perceber que o falar do criminoso, em forma de oração, carinho e emoção, vai além de um reconhecer a própria culpa e a inocência de Jesus. Parecendo tudo perdido, Jesus é reconhecido como portador da salvação. Jesus anunciou a salvação aos pecadores durante a sua vida; na cruz ele a anuncia ao malfeitor, após este lhe pedir: Jesus lembra-te de mim quando vieres ao teu reino. Confiança, esperança — FÉ em Jesus como MESSIAS. Jesus não está sozinho na cruz e responde ao malfeitor do mesmo modo carinhoso. Relacionamento de irmãos.
V. 43: Hoje estarás comigo no paraíso. Com esta resposta Jesus confirma que estão com ele todas as pessoas que clamam: Lembra-te de nós! Na hora da morte, quando normalmente se diz: De que adianta?, é que se manifesta a nos¬sa maneira irracional de fé e esperança (de que adianta agora; agora é tarde). Jesus age com amor e com o poder de Deus, confirmando a participação no reino de Deus àquele que pediu por consolação. É estabelecido um novo relacionamento com o criminoso — AMOR MAIOR, PERDÃO MAIOR e TOTAL = promessa certa, hoje. Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. — RESSURREIÇÃO — Vida Nova.
V. 44: Há uma indicação de tempo. Momento de escuridão e trevas. Ruptura.
V. 45: Rasgou-se pelo meio o véu do santuário. A boa nova do Cristo rompe com todos os sinais de morte. E clareia os conflitos. O que o templo esconde atrás da cortina santa aparece: a sujeira aparece.
V. 46: E Jesus na cruz ora: Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito! Jesus se entrega a Deus, como foi toda a sua vida. Ele ora com a certeza de que o que o levou à morte é a consequência da sua vida e atividade em favor das pessoas empobrecidas… Espírito que está sendo entregue é o próprio de Deus — pois Jesus cumpriu obediência total e confiante a Deus.
V. 47: Um centurião, ao ver o que se deu, conclui: Verdadeiramente este homem era justo.
V. 48: Havia muita gente assistindo à crucificação de Jesus — povo lamentando, mas dominado pelo poder que condenou e crucificou Jesus. O mesmo poder que empobreceu e empobrece as pessoas que os evangelhos nos mostram. Com quem Jesus se relacionou curando, ressucitando, devolvendo dignidade de vida.
V. 49: As pessoas mais chegadas a Jesus permaneceram a contemplar de longe estas cousas.
Chama a atenção neste versículo que se fala em conhecidos (gnostai) e em separado das mulheres (gynaikes): as mulheres não eram conhecidas de Jesus? São! Elas estão junto de Jesus desde a Galiléia. O Evangelho de Lucas diz que apoiavam Jesus e os discípulos com seus bens, enquanto que Marcos diz que mulheres seguiram Jesus como discípulas (akoluthein). A linguagem expressa o que é a realidade da mulher, a presença dela é o novo, estabelecido por Jesus. Durante sua vida Jesus devolve às mulheres as verdadeiras vias de acesso à vida verdadeira. A atitude deste grupo que está olhando de longe, não queremos caracterizá-la como passividade, mas eles e elas sabem que precisam esperar até que Jesus, o ressuscitado, ini¬cie a sua ação com eles e elas (Grundmann).
2. Novidade do texto — novo relacionamento
No Evangelho de Lucas podemos ler que o seguimento deve ser irrestrito, quer dizer, não deve mais haver amarras e nem desconfiança. Lucas 5.11 e 5.28 mostram que é necessário delxar tudo e ir. Deve haver confiança e entrega total em busca do novo — do Reino de Deus. O Reino de Deus se manifestará imediatamente em Lc 19.11; mais forte ainda em Lc 17.21: o Reino de Deus está dentro de nós. Este novo, estas palavras de esperança estão presentes com aqueles e aquelas que observam de longe (Lc 23.49). Tenho aqui as palavras:
Faz escuro, já nem tanto
Faz escuro, mas eu canto
Porque amanhã vai chegar…
(Thiago de Mello)
O novo vem, o novo virá! Foi e é necessário renunciar à tentação de auto-suficiência e do sentimento de posse do sagrado. Nada mais é possível fazer a não ser esperar a ação de Deus. É entrar na dinâmica da gratuidade e do amor de Deus revelado. É se colocar como discípulo e discípula sob as mesmas palavras que Jesus pronuncia na cruz — v. 46. É confiar totalmente e ter esperança.
Não há convite para a passividade, mas um chamado para a resistência e pa¬ra enfrentar, com a certeza da vitória de Cristo, os sinais de morte hoje. O perdão é oferta de Cristo para todos os que o buscam, os que buscam o Reino são agraciados com o Reino. Os que pedem por perdão o recebem (v. 43), mesmo sendo o(a) mais terrível dos(as) bandidos(as). Deus revela o amor maior, dando o perdão total a um preso condenado à morte.
Dando-lhe a certeza de participação no seu Reino, Deus partilha através de Jesus Cristo, no momento onde tudo parece perdido, sua capacidade de amar, sua sensibilidade para o clamor dos que querem participar do Reino. Deus pode mudar tudo. As estruturas que pareciam muito firmes e determinantes na vida das pessoas, não escapam ilesas.
O templo sob a proteção do Império Romano parece ser intocável. No entanto, a cruz é mais forte; o véu do santuário, símbolo de dominação e exploração, é descoberto. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. — Isto nos mostra Deus presente fora das instituições e dos dogmas — ele se manifesta a um ladrão, impuro e marginalizado. O rosto do Cristo crucificado é o rosto do Deus da vida, que se revela na luta contra as estruturas de morte, não só daquele tempo, mas também com estruturas de morte que ainda hoje imperam na sociedade e também existem nos espaços religiosos. À medida em que Jesus rompe as cadelas da dominação, também anima e faz com que os outros se libertem, tanto mulheres quanto homens.
Na América Latina faz-se cada vez mais necessária a leitura libertadora da vida. Vida de um povo que experimenta a fome, a dor, a morte provocada por um sistema opressor. Mas, este povo vive e experimenta a alegria, a esperança e o amor na luta por um mundo novo. É assim que a Palavra de Deus se torna viva no processo da leitura da Palavra no meio da luta. Por isso, o ponto de partida para uma leitura bíblica contextualizada deve ser a partir dos pobres e empobrecidos. Também na leitura feminista devemos ter claro esse pressuposto, pois na situação real dos empobrecidos estão incluídas as mulheres.
No texto, as mulheres ainda não são mencionadas como sendo conhecidas de Jesus, mas como seguidoras que o vinham acompanhando desde a Galiléia. Hoje temos a clareza de que a mulher participou no movimento cristão primitivo. A marginalidade da mulher hoje distancia do projeto de Jesus. Se Deus morre em Jesus, morre homem e mulher. Se Deus ressuscita em Cristo, ressuscita homem e mulher.
A humanidade é chamada a ser construída hoje a partir e em direção ao amor maior de Deus que é nomeado Pai, Filho e Espírito Santo, que se revela como força geradora e criadora — Pai e Mãe.
A maioria dos povos ainda é violenta e predadora. O poder se fortificou à medida em que o corpo foi sendo reprimido e oprimido (classes — homem sobre mulher — branco sobre negro). Já há sinais de mudança, embora uma boa parcela da humanidade ainda resista a tudo isso.
A esperança é de que a fé em Jesus ressuscitado nos torne capazes de usar as forças libertadoras para um novo relacionamento, para sermos NOVO homem-NOVA mulher.
Poesia:
Meu Deus que é Pai e Mãe…
Somos gerações sofridas, humilhadas crucificadas
Carregamos no corpo as marcas da história
* Nos ombros — a consciência de criar o que geramos,
* Nos braços — o jeito de conduzir o novo que ainda não caminha sozinho…
* No útero — a vida que se encontra e gera vida…
* Na cabeça — o contraste do que nos impuseram e, aquilo que juntas conquistamos…
* No coração — toda a capacidade de amar, amar, amar.
Meu Deus que é Pai e Mãe
Nós somos…
Enquanto menina. Enquanto moça… Enquanto mulher.
Enquanto amante. Enquanto católica
.. já mãe dos pequeninos
mão de obra barata
.. fardo maior — dona dos trabalhos da casa, companheira na roça, mãe de uma filharada vítima do demoníaco sistema que lhes tira o direito de serem crianças.
.. submissa aos caprichos do parceiro
… continuadeira do ouvir, obedecer, fazer…
Mas Meu Deus que é Pai e Mãe. … Dentro desse chão pisado, esmagado, enfraquecido e aparentemente derrotado,
Eu vi um rasgar de Esperança no útero desta terra… … Somos companheiras dos nossos companheiros … Somos animadoras das nossas comunidades … Somos geradoras do amanhecer que contigo já começamos a enxergar…
3. Sugestões para a prédica dialogada
Inicialmente comentar a partir do texto a ruptura com o poder da morte, o novo que Cristo traz. Na sua cruz são crucificados os males, todos os sinais contrários à vida são rasgados. Esta é a sua oferta.
Sugerimos confeccionar uma cruz e colocar papéis onde se encontrem realidades de morte (submissão; valorização do eu; dominação; valorização do capital ao invés da vida). Escrever diversos sinais de morte (mal).
— Comentar…
Como final da parte da pregação: rasgar os papéis com realidades de morte e, com a participação de pessoas da comunidade, homens e mulheres, colocar na cruz a mensagem do povo. Enfatizar o compromisso do envio a partir da cruz (certeza da ressurreição e outros sinais de vida). Nova esperança, necessária hoje, que já estava presente naquele momento na conversa do ladrão com Jesus.
Ainda, a maioria das pessoas são violentas, predadoras, mas enfatizar que uma parcela já resiste a isso. Mencionar fatos concretos da comunidade local. Desprendimento para que Deus faça de nós seus mensageiros e mensageiras.
4. Subsídios litúrgicos
1. Versículo introdutório: Jesus diz: Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. (Jo 12.46.)
2. Confissão de pecados: Ó Deus, teus filhos e filhas se encontram aqui reunidos confessando sua culpa devido à realidade de morte ao nosso redor. Perdoe-nos por fazermos tão pouco para mudar esta situação. Perdoe-nos pelo medo e pela falta de iniciativas.
Lembrar:
— mortes por conflitos de terra;
— morte de menores;
— morte por causa da fome;
— realidade da mulher pobre;
— idosos, aposentadoria irrisória;
— falta de diálogo entre casais.
Nós te pedimos, ó Deus, faze-nos entrar na dinâmica da gratuidade e do amor revelados em Jesus.
Faze-nos renunciar à tentação da auto-suficiência e do sentimento de posse do Sagrado.
Ó Deus, faze-nos ter a fé e a esperança semelhante à do ladrão crucificado com Jesus…
3. Versículo de absolvição: Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mor tos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita. (Romanos 8.11.)
4. Oração final: Ideias:
— perguntar à comunidade o que deve ser lembrado;
— lembrar doentes da comunidade;
— idosos;
— força e coragem para lutar contra a realidade de morte;
— ter esperança quando tudo parece estar no fim;
— lembrar dos presos — realidade das prisões;
— citar a participação de mulheres e homens na missão cristã através dos tempos e hoje. Enfatizar que não é realizada só pelos homens.
5. Bibliografia
BOFF, L. Paixão de Cristo, Paixão do Mundo. 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1978.
BOFF, L. A Ressurreição de Cristo, a Nossa Ressurreição na Morte. 4. ed., Petrópolis, Vozes, 1976.
BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. Petrópolis, Vozes, 1976.
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. 8. ed., Evangelische Verlagsanstalt GmbH-Berlin, 1970.
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1977.