Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 23.33-43
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Colossenses 1.11-20
Autora: Iára Müller
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 21/11/2010
1. Introdução
O Domingo Cristo Rei é o último domingo antes do Advento. Todo Advento nós aguardamos ansiosamente o nascimento do grande Rei, que vem como menino frágil. E neste texto de Lucas 23 é a crucificação desse mesmo Rei que está em cena.
Que coisa extraordinária que em nossos atuais dias, em que vale quem tem muito poder, vale quem aparentemente tem dinheiro, em que as aparências é que comandam, ser um rei significaria ser e ter tudo, ser servido do bom e do melhor. Um texto desses nos chega chocando, questionando, fazendo-nos ver a vida pelo revés.
Esse Cristo é um Rei absolutamente diferente. Ele está humilhado na cruz, mal vestido, constrangido, suas palavras aparentemente foram confundidas, seus amigos o abandonaram, tem sede e é mal servido, é tentado a mostrar sua divindade, que parece que falhou diante de todos e não há alguém por ele. Somente dois malfeitores estão a seu lado, pendurados igualmente na cruz. Qual é sua realeza? Onde reside seu poder? Qual é a sua glória?
A promessa feita lá em Jeremias 23.1-6, que é um dos textos de leitura previstos para este domingo, também cai por terra, porque lá foi prometido um Rei justo, que praticaria justiça, apascentaria e juntaria as ovelhas, trazendo segurança para Israel. E agora, ali na cruz, jaz um Rei impotente. Que pela forma de morrer espalha mais do que ajunta as suas ovelhas. O projeto desse Rei parece que ruiu e assim a esperança de seus seguidores.
Colossenses 1.11-20, no entanto, nos diz que nele habita toda a plenitude, e através do sangue da sua cruz ele reconcilia todas as coisas que estão no céu e na terra. Como podemos inverter essa história de desgraça de crucificação constrangedora em graça e chegar a entender as palavras da Carta aos Colossenses?
2. Exegese
Pensa-se que Lucas foi o médico que acompanhou Paulo em algumas de suas viagens missionárias. Ele se apega a três fontes para escrever: o Evangelho segundo Marcos, a fonte Q e suas próprias vivências, enfatizando o amor de Deus pelos pobres, aqueles em desvantagem, pecadores e doentes. Também se sabe que mulheres têm mais espaço e ação nos seus relatos.
V. 33 – (resumo até aqui dos versículos anteriores) Jesus foi traído, preso, debochado, recebeu sua sentença de morte. Além de Jesus, Simão Cirineu (o que carrega a cruz), dois criminosos e alguns policiais, uma multidão e mulheres caminham para o lugar chamado A Caveira. Ali ele é crucificado com outros dois malfeitores, um de cada lado.
V. 34 – Jesus continua seu ministério, mesmo dependurado na cruz, dando perdão aos que não ouviram e não entenderam a mensagem de Deus. A divisão de suas roupas confirma a profecia do Salmo 22.18. Ficar sem roupa significava não ter mais identidade, a exemplo de outros nas histórias bíblicas: prisioneiros, prostitutas e escravos.
V. 35 – A multidão, cercando o evento, contempla em silêncio o que acontece, os príncipes zombam e blasfemam contra Deus, incitam Jesus a se salvar.
V. 36 – Os soldados, que também o escarnecem, zombam, oferecem-lhe vinho azedo para reavivá-lo e prolongar sua experiência penosa.
V. 37 – Mais uma vez o tentam a se salvar, se é mesmo Rei dos Judeus. No entanto, Jesus se recusa a subverter o plano de Deus, salvando-se dessa morte horrível.
V. 38 – Por cima da cruz colocam a placa em várias línguas para que todos possam ler: Este é o Rei dos Judeus.
V. 39 – Um dos malfeitores se junta aos que zombam e também provoca Jesus, sugerindo que, se ele é mesmo o Cristo, que salve a si mesmo e a eles, os malfeitores.
V. 40-43 – Mas o outro criminoso responde positivamente a Jesus. Pede que Jesus se lembre dele ao entrar no seu reino. Para ele, há salvação e Jesus prontamente o perdoa e o convida a estar com ele no paraíso.
O segundo criminoso, muitas vezes nomeado como Dimas, pede para entrar no reino de Jesus. É importantíssimo conhecer profundamente o que significa a expressão “reino” para Lucas. Basileia de Deus aparece anteriormente, muitas vezes ao longo dos capítulos que precedem esse texto.
Basileia: É algo que não pode ser visto (Lc 17.20). Esse reino é algo dentro de nós (Lc 17.21). É novidade proclamada e anunciada (Lc 4.43, 8.1, 9.2, 9.60, 16.16). É mantido em mistério (Lc 8.10), mas pode ser buscado (Lc 12.31), é dado de presente (Lc 12.32) e simplesmente recebido (Lc 18.17). Essas definições de reino fazem mais sentido, e entendemos melhor o reino pelo qual Jesus está sendo crucificado.
No Evangelho de Lucas, o povo (Laos) não debocha de Jesus, somente assiste. Os líderes meio que ironizam, os soldados debocham e um dos criminosos blasfema. No entanto, todos dizem: Salva a ti mesmo. Essa é essencialmente a tentação que Jesus também enfrentou no deserto (Lc 4) e é agora a tentação que vai resistir diante da dor e da morte na cruz.
3. Meditação
Há tantas partes desse texto que podem ser exploradas. Por um lado, isso é muito bom, pois mostra que temos aí mais um texto inesgotável para nutrir nossa fé, dependendo de como estamos nos sentindo, como o lemos, o que precisamos frisar para nossa comunidade naquele momento. Por outro lado, é complicado ter tanto para explorar; temos que escolher um ou dois pontos para enfatizar, evitando assim incorrer no erro de falar muito e dizer pouco.
Um primeiro aspecto que poderia ser ressaltado na mensagem é que um jeito absolutamente novo de ser rei surge a partir de Jesus. Um jeito que temos dificuldade de entender. Nossa raça humana tem dificuldades de aceitar um messias humano. Jesus proclamou ser filho de Deus, mas falhou em atender nossos padrões de rei. Nosso tipo de messias deixaria a cruz na hora “H” e provaria que é mesmo Deus. Ele não chegaria a morrer na cruz e depois ressuscitar, mas faria algo inteligente: viveria para sempre. Esse é o tipo de rei e salvador que entendemos e nos daria grande sensação de poder, quase um super-herói.
No entanto, ele está ali humilhado, sozinho, sendo tentado. A crucificação confronta as normas do poder com um novo jeito de ser: um novo jeito de ser Deus, em última instância. Ele valoriza os que não possuem valor. Ele reúne pessoas e anuncia mudanças. Ele não está prometendo uma utopia em outro lugar e tempo. Pelo contrário, ele está anunciando e mostrando que é possível mudar a partir dele mesmo e com sua pequena comunidade de seguidores e seguidoras. Seu reino é outro: não pode ser visto, é mistério, porém pode ser proclamado, mas não pode ser conquistado a ferro e fogo ou espada, mas pode ser recebido. É presente que transforma nosso jeito de ver e lidar com o mundo que Deus criou para nós.
Perigoso? Sim, pois certamente não passa sem ser percebido por aqueles que querem manter o status quo.
Não é um rei que disputa súditos com outro rei, nem terras, nem poder. Quer só ensinar a convivência com justiça e relacionamentos de amor e respeito pelas diferenças.
Ele não veio para criar capachos, mas veio para disseminar uma revolução de amor e graça, que exige uma nova forma de poder e outras prioridades num reino. Pertencer a esse novo jeito de viver não significa ser passivo, mas se engajar nas principais lutas pela vida. Isso não é algo etéreo, mas uma esfera de poder e influência que se expressa mudando as coisas, e isso inclui essencialmente perdoar e servir uns aos outros.
Um segundo aspecto que poderia ser ressaltado na mensagem vem a partir de Dimas. Ele é o único que se pronuncia diante da crucificação. Ele assume sua posição de malfeitor, assume que é criminoso e está ali por causa da pena que merece. No entanto, afirma que Jesus é inocente, que não merece esse castigo. E então, nos últimos momentos de sua vida, Dimas faz um ato de fé público, que nem os próprios discípulos fizeram: ele pede que aquele homem crucificado possa lembrar-se dele quando entrar no seu reino. E Jesus promete que vai fazer isso, sim!
O que Dimas viu que ninguém mais viu? Maria, sua mãe, o viu morrer. Maria Madalena viu seu melhor amigo morrer. João viu seu mestre morrer, mas levou muito tempo para entender o que acontecia e, somente quando da ressurreição, compreendeu profundamente. Os soldados e os que passavam viam um criminoso comum recebendo o castigo que merecia. Quanto aos outros discípulos, não sabemos; mas, se estavam por lá, estavam tão devastados e com medo que não conseguiam pensar.
Assim sobra uma pessoa: um homem condenado por um crime que nunca saberemos qual foi e que viu que o reino que seu companheiro de cruz proclamava era real e possível e que está aberto a cada um que clamar para que Jesus se lembre dele. O que isso significa para nós?
Talvez o maior ato de fé das Escrituras seja este do malfeitor: Jesus, lembra-te de mim!
Jesus está morrendo na cruz. Aparentemente, seu reino e seu poder estão chegando a um fim. Seu projeto ruiu para aqueles que não sabem que isso estava nos planos de Deus. Jesus está ali morrendo, mas Dimas tem a fé de ver e acreditar que Jesus pode convidá-lo para viver em seu reino. Ele tem a fé que Jesus vai mesmo ser um rei. O poder de Deus governar o universo, um reino diferente é visto no Jesus morrendo na cruz. Dimas não presencia a ressurreição, nem sabe dela. Ele vê na morte de Jesus um reino invisível e possível.
O ministério de Jesus justifica quem erra, colocando o pecador diante de Deus, inteiro, com promessas. Justificação envolve perdão, pelo qual Jesus orou e sua morte ratificou. E envolve, acima de tudo, reconciliação com Deus.
Assim como de Dimas exigiu muita força e coragem, também exige de nós, como pecadores e culpados, pedir algo a um Jesus sem culpa e sem pecados, pendurado na cruz, e ainda esperar que ele faça algo por nós. Assim como Dimas, temos que ver esse reino diferente e invisível e confiar nisso.
Jesus e esse malfeitor ilustram bem a salvação divina: ela não vem pelo sofrimento e pela morte, mas sim pela fé, e isso vale até o último suspiro de vida, mesmo morrendo na cruz (que não é por sofrimento e pela morte, mas sim por ter fé até o último momento morrendo na cruz). Jesus é um líder que serve mostrando uma nova forma de autoridade, em que na fraqueza prova o genuíno poder de Deus. Aqui podemos entender finalmente Colossenses: nele habita toda a plenitude e através de seu sangue reconcilia todas as coisas.
4. Imagens para a prédica
Um dos meus passatempos é decorar ovos crus de galinha com a técnica ucraniana. Um ovo leva em média três horas e meia para ficar pronto. É um trabalho delicado, com muitas tintas, muitos instrumentos específicos. Fazem-se muitos traços finos e precisos, esperam-se longos minutos pelo ovo mergulhado nas cores, depois se espera que seque para então cobrir com cera aquela cor e mergulhar em outra cor.
Quando está na última fase do trabalho, todo artesanal, o ovo está simplesmente recoberto de cera, preto, feio, irregular na superfície, por causa da cera de abelha que cobre as cores. Um ovo ucraniano nessa fase do trabalho parece não valer a pena, especialmente pelas três horas de serviço investido nele.
Só olhando para o invisível (porque sei que as cores estão por baixo) me faz continuar a tarefa.
A crucificação é assim: parece um fim, mas o rei já é rei na cruz, embora pareça um fracasso. Um ovo ucraniano é um ovo decorado e esplendoroso, mesmo com a cera por cima. É preciso ver como Dimas.
Penso que uma imagem similar a essa poderia ser usada. Uma imagem que mostre que pela (por cima, na) aparência tudo deu errado. Só para quem consegue ver o invisível e confiar na promessa é que se revela o Cristo Rei.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos:
Hinos do Povo de Deus – vol. 1 – n° 298, n° 95, n° 187. Hinos do Povo de Deus – vol. 2 – n° 441, n° 317.
Confissão de pecados:
Deus querido e misericordioso, perdoa se em nossa humanidade às vezes queremos um Deus mais poderoso, mais super-herói, ao invés de confiar na força da fraqueza, confiar no invisível, mas eterno reino teu. Nossa fé é fraca, e nosso testemunho cristão parece fraco também, porque é difícil acreditar naquilo que não podemos ver. Ficamos muitas vezes sem coragem de proclamar esse teu reino diferente simplesmente com nossa humanidade. Por isso pedimos humildemente teu perdão. Amém.
Oração de coleta:
Agora nos aproximamos do momento de ouvir tua palavra. Que ela nos transforme, que através dela possamos ver teu reino invisível e que em meio a tantos sinais de morte possamos anunciar e testemunhar a esperança em teu reino, que é uma inversão do reino que vivemos agora. Amém.
Oração de intercessão:
Somos imensamente gratos a ti, querido Deus, pelos pequenos sinais do teu reino entre nós. Pelo olhar acolhedor, pela palavra certa dita na hora certa, pela partilha, pelas visitas, pelas portas das casas abertas e pelos corações sempre atentos a ouvir.
Intercedemos por todos os que não alcançamos com nosso esforço, por aqueles que estão longe de nós e não conhecem a proposta do teu reino. Intercedemos pelas autoridades no mundo todo, para que, ao invés de usar a força bruta, as armas, o poder do dinheiro, cada vez mais possam tornar-se autoridade que serve, autoridade que partilha e se humilha diante do teu poder. Ouve nossa oração e nos encoraja a agir. Amém.
Bibliografia
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
NEWSOM, Carol A. Women’s Bible Commentary. Kentucky: Westminster/John Knox Press, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).