Que rei é este?
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Lucas 23.33-43
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Colossenses 1.11-20
Autoria: Werner Wiese
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 20/11/2022
1. Introdução
O Domingo Cristo Rei é o último domingo do Ano Eclesiástico e é, por assim dizer, o elo entre o longo período depois de Pentecostes e o período de Advento. Na tradição da igreja é também conhecido como Domingo da Eternidade. Vinculado ao Domingo da Eternidade está a questão da esperança cristã que se distingue de todas as outras esperanças, porque ela está ligada à ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, que prefigura a ressurreição de nossos entes queridos, inclusive nossa própria. A rigor, não se trata de uma questão meramente pessoal, mas da Igreja de Jesus Cristo como um todo. Em todos os casos, a fé em Jesus Cristo e a esperança são inseparáveis, podem inclusive figurar como sinônimos.
O texto para a pregação deste domingo e as demais leituras já foram abordados em outros momentos na série Proclamar Libertação, quer na mesma ordem listada para este domingo (p. ex.: PL 34, p. 365ss), quer em outra ordem (p. ex.: PL 23, p. 229ss; PL 37, p. 342ss). Em outros momentos, o texto da pregação deste domingo foi abordado no período da Quaresma, mais precisamente na semana da Páscoa, o que também é muito coeso (cf. PL 37, p. 127ss). A delimitação do texto para a prédica não deveria ser entendida como rigorosamente restritiva, o que é confirmado pelo fato de em outros números da série Proclamar Libertação delimitar-se o texto núcleo da pregação de outra forma (cf., p. ex., PL 37, p. 127ss).
À primeira vista, o texto da pregação e as demais leituras parecem destoantes. Em Jeremias 23.1-6 ecoam palavras de promessas de um “renovo” que governa e age com sabedoria e justiça à vista da negligência daqueles que deveriam cuidar do povo de Deus, mas não o fazem. Nesses termos, a situação na época de Jesus por volta do ano 30 do nosso tempo não era diferente: quem deveria cuidar do povo de Deus – a elite religiosa e teológica – não só negligenciou o povo de Deus, mas “eliminou” quem veio para agir e governar com sabedoria e justiça. Desse viés, as palavras do profeta Jeremias não se cumpriram.
Colossenses 1.11-20, por sua vez, destaca pessoas – o povo de Deus que inclui pessoas de origem gentílica – que foram libertas de um poder opressor (império das trevas) e transferidas para um outro domínio, o reino do seu filho amado. E o texto da pregação escancara de que reino ou rei se trata: rei e reino em nada parecido com os reis e reinos deste mundo. Isso visto, não só cabe bem o título Domingo Cristo Rei, mas se realça a natureza do reino que se estabelece em Jesus Cristo e a partir dele. Esse reino não deve ser cooptado por nenhum outro reino.
2. Exegese
Parte do texto para a prédica (v. 33-38) está registrada nos quatro relatos do evangelho, exceto as palavras sobre o perdão (v. 34a). E parte do texto (v. 39-43) é material exclusivo do Evangelho de Lucas.
V. 33-34 – Esses versículos tratam da crucificação como tal. Chama a atenção que o registro da crucificação é brevíssimo. Esse também é o caso em todos os quatro relatos do evangelho. Não há espaço bíblico para colorir a crueldade da execução nem para evocar os sentimentos humanos. Foca-se no fato da crucificação como tal. Vale ressaltar que mencionam não só a crucificação de Jesus, mas a de duas outras pessoas também. Nesse quesito, não há nenhuma diferença entre os crucificados. Os sofrimentos são os mesmos. Por isso o significado da morte de Jesus não deriva do tamanho do sofrimento que passou. Não é a morte como tal que tem valor de salvação, também não a injustiça sofrida. Fosse assim, conviria que outros mais fossem injustamente crucificados e os sofrimentos prolongados ao máximo. Isso sugestionaria e legitimaria tanto o processo impetrado contra Jesus bem como isentaria tanto os mandantes da crucificação quanto os executores de Jesus.
A crucificação aconteceu no lugar chamado Calvário (kranion). Em hebraico, kranion é gulgolät e em aramaico é gulgalta. Daí formou-se a palavra Gólgota em língua portuguesa (cf. Mt 27.33; em Mc 15.22 explica-se: “Gólgota, que quer dizer lugar da Caveira”). Da etimologia da palavra não se deve inferir que o nome indicasse para a existência de crânios de humanos crucificados nesse lugar. O Calvário situava-se fora do muro da cidade de Jerusalém, pois não era permitido que uma crucificação fosse feita do lado de dentro do muro da cidade (MAIER, 1992, p. 650). A crucificação de Jesus entre duas outras pessoas descritas como malfeitores é um claro insulto contra Jesus, que de alguma forma indica que se imputou a Jesus ser ele o principal dos malfeitores executados. Numa releitura neotestamentária do Antigo Testamento, cumpre-se nesse fato de forma insuperável o texto de Isaías 53.12 (SCHIWY, 1966, p. 384).
As palavras Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (v. 34; cf. 6.27-28;) têm uma nítida conotação teológica e evoca perguntas: o pedido de perdão é para quem? Para todos os envolvidos no processo contra Jesus que resultou na sua condenação, incluindo os executores da sentença? A eles não cabia inquerir a culpa dos condenados, mas apenas cumprir ordem superior, cuja maldade eles não conheciam. Mas por isso eles não sabiam o que estavam fazendo (cf. At 3.17; 1Co 2.8 [RENGSTORF, 1978, p. 271)? Novamente se cumpriram as Escrituras (Sl 22.18).
V. 35-38 – Esses versículos destacam o escárnio do Jesus crucificado que envolve três grupos de pessoas distintas: – “O povo (o laos)” como expectador coletivo, talvez como massa de manobra de um interesse escondido ou como massa intimidada pela força imperial empregada. – “As autoridades (archontes)” – lideranças religiosas, em boa parte protagonista oculta dos acontecimentos que na prática nega o que teoricamente era sua esperança – a vinda do rei dos judeus. Soa irônico: os que detinham as chaves hermenêuticas das Sagradas Escrituras e da história do povo de Deus tornaram-se vítimas da sua própria interpretação, ou seja: produziram um imaginário messiânico que os tornou cegos em relação ao que estava acontecendo na pessoa de Jesus de Nazaré – o Cristo/Ungido de Deus de verdade. Depara-se aqui com um misto de verdade e ironia: Salvou os outros; a si mesmo se salve; se é, de fato, o Cristo de Deus, o escolhido (v. 35). Verdade é que Jesus salvou muitos: uns de suas moléstias e carências físicas, outros por meio do perdão, incluindo-os no espaço do reino de Deus – lugar em que as pessoas revigoram. – O terceiro grupo são “os soldados” (v. 36-37). Eles, além de serem os carrascos da sentença, estão familiarizados com a linguagem simbólica da crucificação: quem nega a autoridade absoluta de César e seus coadjuvantes sabe o que lhe espera: o patíbulo. Esse é o recado de César, Pilatos e seus coadjuvantes. Dito diferente: a Pax Romana é a paz alcançada e mantida pela força. Fora dela não há espaço para “cidadania”.
Enquanto que as autoridades judaicas usam a linguagem político-teológica “o Cristo de Deus, o escolhido”, os soldados usam a linguagem político-romana. Essa é uma diferença clara. Contudo, ambos os grupos zombam de Jesus e se irmanam em torno de um inimigo maior, capaz de unir grupos diametralmente opostos, desde que seja conveniente para os dois lados, no mínimo por um tempo. Ambos pensam em categorias de poder e são reféns da sua própria ideologia. Num caso do imaginário teológico messiânico. No outro do imperialismo político. A rigor, a expressão “Este é o Rei dos Judeus” é escárnio para os próprios judeus que, na verdade, almejam por um rei não subserviente à política externa maior.
V. 39-43 – Nesses versículos o evangelista lançou mão de uma tradição desconhecida aos outros evangelistas. Chamam a atenção a compreensão dos acontecimentos e a postura dos dois malfeitores na cruz: enquanto que um, em tom blasfemo, desafia Jesus à autossalvação e ao livramento dos malfeitores do suplício da cruz, o outro reconhece que a punição deles é justa, e ele clama por misericórdia que transcende o momento. Segundo Mateus 27.44 e Marcos 15.32, os dois malfeitores insultaram Jesus. Isso não precisa ser necessariamente uma contradição, pois é possível que um deles mudou de convicção e postura. Face à morte inevitável, às vezes pessoas mudam radicalmente de postura, às vezes acirram a postura de sempre. Destaque merece a resposta de Jesus ao segundo malfeitor: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. Há quem tente traduzir: Em verdade te digo hoje, que estarás comigo no paraíso. As diferenças na tradução não alteram a essência da assertiva de Jesus. O cerne da questão não está no fator tempo (estar hoje ou em outro momento no paraíso). Com a morte, a categoria tempo como nós a conhecemos é transcendida. O cerne da questão é que Jesus cumpre até o fim sua função de salvador testemunhada em outros momentos do evangelho (Lc 2.11; 5.29-32; 15.2 [RENGSTORF, 1978, p. 272-273]). Independente de como se entende paraíso, a promessa de Jesus […] estarás comigo no paraíso atesta que quem se deixa atrair para a comunhão com Jesus está ou estará no lugar dos justos por conta da presença de Jesus e não haverá mais condenação (cf. também Rm 8.31-39).
3. Meditação para a prédica
Domingo Cristo Rei – como pregar sobre isso? Promessas de salvação e clamor por libertação perpassam a história da humanidade e nos dias atuais se tornam agudos. Até hoje não faltaram os que sempre se declararam a favor dos que clamam por socorro e que assumiriam a causa desses. O que não faltou e não falta são grandes e boas promessas. Apesar de evidências de promessas descumpridas, é difícil alguém admitir que não honrou as promessas feitas. Na melhor das hipóteses, se diz, em termos: chego ao final do meu mandato com o sentimento de dever cumprido, mas ainda há muito para ser feito, por isso peço mais uma vez sua confiança, isto é, seu voto… Certamente não são muitos mandatários e mandatárias que digam: não cumpri com as promessas. E toda vez que surgem novas promessas, promessas de um mundo melhor, uma sociedade mais justa (que é uma aspiração compreensível e legítima e necessária), surge também um ceticismo em relação ao que se promete, e não é por acaso, pois sem promessas de mudar a realidade que impera ninguém chega lá.
O Domingo Cristo Rei quer preparar para os domingos de Advento, que culminam no nascimento do Rei nada parecido com reis, rainhas, presidentes e muitos outros líderes deste mundo. Por isso há de se cuidar com a maneira como se fala de Cristo como Rei, principalmente por causa da carga negativa acumulada em torno de governos e governantes, notadamente a conotação de dominação por vezes arbitrária. É lamentável e foi péssimo testemunho que no decorrer da história, às vezes, a igreja lançou mão desse título para legitimar o uso da força para levar pessoas a aderirem ao cristianismo como única opção para sobreviver, em outros casos como opção de obter privilégios. E não raras vezes, usou-se o título Cristo Rei como ameaça individual para quem não se curvar diante dele ou, melhor, diante das exigências da igreja como instituição. Isso está em nítida contradição com o texto da pregação e proposta do evangelho, cujo anúncio é tarefa primordial da comunidade cristã, nitidamente de quem tem a tarefa para pregar.
O Cristo Rei é Jesus Cristo crucificado. Seu reinado e seus sofrimentos são inseparáveis. Ele não se presta para ser “figura de projeção de poder político”, tampouco a palavra de Deus deve ser transformada em “caixa de ressonância” para projetos internos ou externos da comunidade cristã que visam a qualquer projeção humana, individual ou coletiva. Os “súditos” do Cristo Rei apostam em um poder estranho. O meio pelo qual o governo de Cristo se realiza é, em primeiro lugar, a palavra que alcança seus ouvintes na sua consciência e os convence e desperta para a fé em Jesus Cristo e forma uma nova comunhão, transforma a vida, produz frutos do Espírito Santo na comunidade cristã e fora dela e atua para dentro dos reinos deste mundo e dessa maneira coloca sinais do reino de Cristo.
O núcleo teológico do texto para a pregação deste domingo está nas palavras de Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem, e Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. Essas palavras rompem com um círculo vicioso em duplo sentido: um é círculo da violência, do ódio e da vingança; o outro é o círculo da culpa e desesperança. Evidentemente, essas palavras não são bagatelas ou, como diria Bonhoeffer, fonte inesgotável da graça de Deus disponível como um produto em liquidação ou venda de estoque numa loja. Consequentemente, elas não deveriam sair da boca de anunciantes da Palavra como algo óbvio ou lógico. No texto para a pregação nada é óbvio. O que se torna óbvio na pregação desgasta. Ademais, na presença do Cristo Rei crucificado vem à tona o que de mais profundo há no coração humano: seja a violência, o ódio, a vingança ou o desespero. Justamente para dentro dessa realidade ecoam as palavras Jesus nos v. 34a e v. 43. Destacar isso de forma clara é tarefa nobre neste domingo.
4. Subsídios litúrgicos
Sugerimos recorrer aos manuais de culto que têm várias propostas litúrgicas para cada época e domingo do calendário eclesiástico.
Bibliografia
L’EPLANTTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993. (Pequeno Comentário Bíblico NT).
MAIER, Gerhard. Lukas-Evangelium 2. Teil. Neuhausen-Stuttgart: Hänssler, 1992. ( Edition C-Bibelkommentar zum Neuen Testament, 5).
RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. (NTD, 3).
SCHIWY, Günther. Weg ins Neue Testament. Kommentar und Material. Das Evangelium nach Matthäus – Markus – Lukas. Würzburg: Echter, 1966. Erster Band.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).