Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Lucas 24.36b-48
Leituras: Atos 3.12-19 e 1 João 3.1-7
Autora: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: 3º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 22/04/2012
1. Introdução
Neste terceiro domingo da Páscoa, somos lembrados da terceira e definitiva aparição do ressuscitado no Evangelho de Lucas. Ainda estamos no meio da admiração e da incredulidade dos discípulos diante do prodígio divino da ressurreição de Cristo. Assim como os discípulos, nós hoje também temos dificuldade para assimilar a realidade da ressurreição. O Cristo ressuscitado entra em nossas vidas de forma totalmente diferente e confirma sua presença entre nós. Essa presença vai além do racional e físico, segundo o que entendemos normalmente. O Cristo crucificado não está mais morto, agora se faz presente e indica o novo caminho, seja no entendimento das Escrituras, agora com o crivo cristológico, seja no programa de ação dos discípulos, testemunhas dessa nova realidade.
O texto de Atos é uma aplicação prática daquilo que Jesus indica aos discípulos no evangelho. Pedro lembra que os discípulos são testemunhas da ressurreição de Jesus e exorta as pessoas admiradas pela cura do coxo ao arrependimento. Imediatamente, essa atitude ousada de testemunho do Cristo ressuscitado faz com que Pedro e João sejam presos.
O texto de 1 João faz parte da leitura contínua nesta época de Páscoa, mas podemos indicar a relação com a temática da união com Cristo e com a vida no discipulado, que inclui a purificação do pecado.
Vale lembrar que o texto já foi trabalhado em outras edições de Proclamar Libertação (16, 19, 28 e 35), às vezes com outra delimitação.
2. Exegese
Encontramo-nos no final do Evangelho de Lucas, dentro do capítulo 24, que trata da ressurreição e das aparições do ressurreto. Esse capítulo é o resultado final do conflito entre Jesus e as pessoas que não acreditavam nele como o Cristo profetizado e esperado. Cada perícope do capítulo 24 tem um centro formado pela afirmação da necessidade da paixão e ressurreição do Cristo. Num crescendo, o evangelho relata a boa-nova da ressurreição dada às mulheres, passa pelos dois discípulos no caminho de Emaús e culmina com a reunião dos apóstolos e outros discípulos que conversam sobre o que aconteceu. Os três momentos estão organizados da mesma forma: da dúvida sobre a ressurreição de Cristo à certeza e ao entendimento, sempre passando pela lembrança das palavras de Jesus e/ou pela explicação das Escrituras; da falta de um cadáver no túmulo, passando pela presença “oculta” de Jesus no caminho de Emaús, à presença inequívoca e certeira do ressuscitado. Temos uma progressão qualitativa das pessoas que recebem a mensagem e vivem a realidade do Cristo ressurreto. Elas são transformadas em testemunhas que levam adiante a mensagem. Os apóstolos e as outras pessoas que lá estavam são instituídas de forma explícita para ser testemunhas.
A nossa perícope é relacionada com a anterior (v. 13-35) de forma espacial e temporal. O retorno dos discípulos, que compartilham o reconhecimento de Jesus e a aparição a Simão, faz com que o grupo se reúna para comentar e tentar entender o acontecido, que vai além da ordem natural. Após a perícope, Jesus relembra os discípulos sobre a promessa do Pai (o envio do Espírito Santo). Segue uma versão resumida da ascensão do Senhor (v. 50-53), que constitui o fecho do Evangelho de Lucas, para dar assim início à narração de Atos. Esse recorte faz sentido, pois nossa perícope está dentro do tempo de Páscoa, ainda longe das festas da Ascensão e de Pentecostes.
No geral, as versões de Almeida e da Nova Tradução na Linguagem de Hoje não trazem diferenças maiores. Destaca-se apenas a seleção de sinônimos definidos no estilo de cada tradução. A exceção acontece no v. 38, com kardia, coração, entendido como o centro e o lugar da mente, como fonte de desejos, vontades, propósitos e pensamentos. No contexto bíblico judaico, o coração tem as funções da “cabeça”; no conceito popular de nossos dias, pelo que a NTLH traz “cabeça” e não “coração”, seguindo sua linha de tradução. Indicamos também que alguns manuscritos não contêm, no v. 42, a expressão “favo de mel”, não incluída na NTLH. Por outro lado, também vale advertir que os v. 37 e 39 são os únicos lugares no Novo Testamento em que pneuma é traduzido por “espírito” no sentido de “fantasma”, assim como hoje é entendido esse conceito de forma geral: aquele ser que não é natural e que traz medo e receio.
Pode-se dividir a perícope em duas partes:
a) v. 36b-43: Apresentação do Cristo ressuscitado e confirmação da vera¬cidade do fato
v. 36b-37: Aparecimento de Jesus – reação dos discípulos
v. 38-43: Tentativas de fazer com que os discípulos entendam a nova realidade
v. 39-40: As marcas da cruz como sinal de realidade
v. 41-43: A comida como sinal de realidade
b) v. 44-48: Explicação e entendimento da paixão e ressurreição de Cristo
v. 44: Lembrança das explicações pré-crucificação
v. 45: Entendimento pleno da nova realidade
v. 46-48: Explicação detalhada e programa de trabalho
O texto traz a dinâmica do Jesus pedagogo: ainda que o ressuscitado não esteja no túmulo e tenha aparecido aos discípulos no caminho de Emaús, a turma dos céticos teima em não acreditar. Aquilo que Jesus tinha pregado e ensinado em diversas oportunidades, e que realmente se confirmou, não foi assimilado pelos discípulos. Em nossa perícope, Jesus volta novamente a aparecer. Mas a reação dos discípulos é de medo e incredulidade. O ressuscitado precisa mostrar as marcas da cruz em seu corpo e comer diante deles. Somente assim é que eles finalmente compreendem e acreditam. Na perícope se estabelece a verdade da ressurreição com a realidade incontestável do ressuscitado. Com a presença do Cristo ressuscitado, continua o ensinamento aos discípulos, agora com uma nova compreensão, que os transforma de pessoas atemorizadas em testemunhas corajosas.
Se, no primeiro momento da perícope, Cristo precisa de tempo para demonstrar que ele é realmente ele e que ressuscitou, no segundo momento, o entendimento é imediato: ao falar de sua trajetória à luz das Escrituras, os discípulos entenderam. O suposto fracasso com a morte do Messias é substituído pela certeza da vitória pela ressurreição. Tudo isso fez com que fosse validada toda a atuação do Jesus de Nazaré como o verdadeiro Cristo. A morte e ressurreição de Cristo viraram a chave hermenêutica para a leitura e interpretação das Escrituras. Segundo Lucas, o próprio Cristo estabelece isso nos v. 44-47. Agora as Escrituras do povo hebreu passam pelo crivo de Cristo, e a leitura cristocêntrica está estabelecida.
A aparição do ressuscitado não é somente para que seus discípulos possam ter um conhecimento arcano da verdade. O compreender e acreditar leva além: a explicação viva da paixão e ressurreição é motivada pela necessidade de fazer dos discípulos testemunhas que possam levar a mensagem de arrependimento e perdão às pessoas. É importante lembrar que, em Lucas, o arrependimento inclui renúncia e partilha, o que leva a uma nova forma de relacionamento. Mas agora, com o cumprimento das Escrituras, o beneficio não é só do povo de Israel, mas de todas as nações. Os discípulos estão a um passo de virar atores da propagação do evangelho, num discipulado comprometido com o testemunho da paixão e ressurreição de Cristo.
3. Meditação
Cristo ressuscitou! Realmente ressuscitou! Assim os ortodoxos russos saúdam o evento que faz a diferença no cristianismo. Já estamos no terceiro domingo da Páscoa e ainda não conseguimos absorver todo o mistério que nos traz o evento pascal. A ressurreição aconteceu, é verdade! Tantas pessoas já acreditaram nisso e justamente por ter acreditado viraram testemunhas do milagre divino. Mas, ainda assim, muitas vezes a dúvida se aproxima. Será verdade? Jesus ressuscitou? Jesus era o Cristo esperado? Essas dúvidas também surgiram na cabeça dos discípulos. Como é possível que eles não entendessem? Muitas vezes, Jesus havia dito que ele era o Cristo prometido, atuava como tal, indicou que tinha que padecer, também morrer para daí ressuscitar.
Cristo ressuscitou, e isso é uma realidade que vai além do entendimento dos discípulos, que estavam reunidos comentando a aparição no caminho de Emaús. Como é possível se a gente o viu morto? A morte é uma realidade que não dá para transpor. A pessoa morta, morta fica (até parece que esqueceram o que aconteceu com Lázaro, com a filha do chefe da sinagoga). Não é possível entender aquilo que as mulheres disseram. Não dá para acreditar no coração ardente dos que voltaram de Emaús. Ou será verdade?
Por tudo isso, nosso texto passa a fazer parte do Evangelho de Lucas. O ressuscitado apresenta-se no meio deles. Deus nos surpreende: quando achamos que não tem mais nada, Ele aparece no meio de nós. Não tem como duvidar. Mas, ainda assim, instalam-se a dúvida e o medo. Aparece mais uma vez o medo da teofania, aquela que assustou Moisés e tantos outros. O que é isso? Quem é isso? Um fantasma? Como são teimosos os discípulos em compreender e acreditar. Jesus mostra suas feridas, suas mãos, seus pés e seu costado. Mas, ainda assim, não é possível acreditar. Jesus está morto. Não acreditamos quando olhamos a solução. Não pode ser tão fácil (indica a nossa mente), que nesse instante manda sobre o coração. Cristo, paciente, pede comida, pois “fantasmas não comem”. Ele tem que demonstrar que é aquele um que já conheciam. E assim, depois do susto, a coisa muda.
Por que os discípulos ficaram assustados em relação ao encontro com o Senhor? Por que não era possível acreditar naquilo que se falava e vivia? O ser humano, limitado e pecador, não consegue ir além de suas barreiras. Deus mesmo precisa evidenciar, dentro das limitações humanas, que existe alternativa para a morte. Depois de vencer a morte, Cristo precisa fazer com que seus discípulos possam entender e acreditar. Muitas vezes, nós temos consciência, até ciência daquilo que vemos e vivemos, mas não conseguimos entender. É como aquelas vezes em que Jesus dizia: Quem tem olhos, que veja; quem tem ouvidos, que ouça.
Por que as estórias de fantasma nos assustam? Será que é porque falam de coisas que vão além de nossa compreensão ou de nosso poder? As crianças ficam assustadas com o bicho-papão de sua cultura. O desconhecido, aquilo que não sabemos bem o que é, sempre nos assusta. Por isso é que Jesus tenta aproximar os discípulos do que está acontecendo, ajuda-os para que possam ver, tocar, assimilar. Mais uma vez, Jesus ajuda as pessoas a ir além de suas limitações. Se o ser humano fecha, Deus abre. Se o ser humano tampa, Deus destampa. As regras do jogo trocam quando Deus está no meio. O amor divino permite que o ser humano possa estar perto dele, ainda que seja imperfeito e não acredite no que está diante de seus olhos. É interessante como Deus sai dos limites humanos justamente para ajudar suas criaturas.
Depois de comprovada a veracidade do fato da ressurreição, Cristo está prestes a concluir seu labor com os discípulos. Para isso, ele dá o entendimento, “abre a mente deles”. Aquilo que ele já havia ensinado e explicado agora tem sentido. Se antes as Escrituras eram vistas por judeus com olhos judeus, agora são vistas por discípulos por intermédio dos olhos de Jesus. É como Brakemeier indica: “O centro da Bíblia, critério do evangelho e autoridade última, porém, é o próprio Cristo”. Agora o critério é “aquilo que promove Cristo”, como disse Lutero. Isso é justamente o que Jesus apresenta e o que depois os discípulos continuam: a leitura das Escrituras Sagradas tem que passar pelo Cristo.
Diante do entendimento que traz o Cristo, não dá para ficar quieto. E é justamente por isso que Jesus envia seus discípulos para ser mensageiros, levar em seu nome a mensagem do amor e da proximidade que Deus traz com o arrependimento e o perdão dos pecados. Não é um conhecimento secreto que mais ninguém pode saber. É preciso ir a todas as nações. A autoridade do Messias faz com que as barreiras israelitas sejam quebradas. Os discípulos viram testemunhas, pessoas ativas, que com a certeza da ressurreição de Jesus podem levar sua mensagem a todas as criaturas. Cristo quebra o paradigma e abre as possibilidades do amor de Deus.
4. Imagens para a prédica
Além da imagem óbvia do fantasma e as reações que estórias de fantasmas trazem às pessoas, também podemos lembrar aqueles seres imaginários que o folclore nos lembra. Cada cultura tem seres míticos que não são entendidos, como o Saci, Pé Grande etc. Pode-se recorrer à mitologia local, que nem sempre é tão formal, mas que, no fim de contas, provoca o mesmo sentimento da aparição de Cristo aos discípulos.
Uma imagem que está sempre na mente das pessoas é a do OVNI (objeto voador não identificado): se surgisse diante de nós, também traria uma situação semelhante à dos discípulos com Cristo. No início, teríamos medo, depois começaríamos a entender a realidade diante de nós. Quando o OVNI fosse embora, ficaríamos como testemunhas, não poderíamos ficar quietos e calados. Teríamos a necessidade de contar a alguém aquilo que vimos e sentimos.
Pode-se explorar a forma como as crianças aprendem a linguagem: escutam, assimilam/acreditam e repetem. Nem sempre entendem totalmente aquilo que dizem. Muitas vezes, falam até palavrões, como se fosse qualquer outra palavra. Depois que são xingadas e entendem que aquela palavra é “feia”, não a usam mais. Outros exemplos pedagógicos em situação difícil também podem ser utilizados.
Pode-se usar o papel das testemunhas, seja de batismo ou bênção matrimonial. São pessoas que deveriam fazer mais do que “aparecer na foto”. Talvez se pudesse convidar testemunhas para lembrar um fato, levando a certidão e mostrando-a.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Perdão por não acreditar que Jesus está em nosso meio, ainda que tenhamos sinais concretos de sua presença. Perdão por acreditar somente dentro de nossas limitações, esquecendo que tu estás além de qualquer limitação humana. Perdão porque não somos fiéis testemunhas de tua ressurreição e não levamos tua mensagem de arrependimento e perdão a todas as pessoas. Amém.
[Seria bom poder também testemunhar aquilo que se crê. Enfatizar que os diversos credos foram feitos para dizer às outras pessoas aquilo que se acredita. Nesse sentido, seria recomendado confessar a fé olhando para as pessoas ou até olhando para fora do lugar de culto.]
Oração pós-comunhão:
Obrigado, bondoso Deus, tu que te fazes presente em nosso meio, assim como Jesus Cristo ficou no meio de seus discípulos para mostrar a verdade da ressurreição. Ajuda-nos a ter a certeza da tua presença na Palavra e no Sacramento que acabamos de celebrar. Amém.
Envio:
Vocês também são testemunhas enviadas por nosso Senhor. Contem a todas as pessoas o que vocês experimentaram aqui. Vão na paz de Cristo. Amém.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia. São Leopoldo: Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2003.
KRÜGER, Rene. Estudio Exegético-Homilético 096: Sábado 22 de março de 2008. Buenos Aires: Instituto Universitário ISEDET. Acesso: 30/06/2011 http://www.isedet.edu.ar/publicaciones/oldeeh/EEH2008.zip
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).