Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Lucas 24.44-53
Leituras: Atos 1.1-11 e Efésios 1.15-23
Autor: Joe Marçal Santos
Data Litúrgica: Dia da Ascensão
Data da Pregação: 02/06/2011
1. Introdução
A unidade temática dos textos previstos está em torno do símbolo da Ascensão do Senhor, bem como da teologia que o sustenta e da qual emergem significados para nossa atualidade. Um contexto mais ou menos secularizado como o nosso traz certo grau de dificuldade para o desenvolvimento de uma liturgia e uma prédica sobre esse tema, pois ao mesmo tempo se trata de um símbolo que toca um imaginário religioso muito presente e difundido. Nas observações que seguem, procuramos destacar elementos do texto bíblico que ajudam a dar um significado sensível e humano à Ascensão.
É imprescindível assimilar, na interpretação do evangelho, o texto que lhe dá continuidade: os Atos dos Apóstolos. A perspectiva do próprio texto é a atividade apostólica; a relação com os primeiros versículos de Atos, inclusive oportuniza o enriquecimento de detalhes para a percepção das atitudes dos discípulos – o que poderia fazer paralelo a aplicações pastorais do texto na prédica. A relação com o texto indicado na Epístola aos Efésios ajuda, do mesmo modo, a identificar elementos centrais na interpretação do texto indicado, bem como fornece uma série de motivos relativos ao tema litúrgico.
2. Exegese
O texto que conclui o Evangelho de Lucas convida para uma visão de conjunto de todo o evangelho e faz-nos pensar sua mensagem como impulso ao que segue nos Atos dos Apóstolos. Ambos os aspectos se desenham como horizonte de interpretação (intenção e recepção) do evangelho. Numa palavra, nesse texto, o evangelista ressalta que o testemunho da boa-nova é movido pela experiência de encontro com o Cristo vivo e glorificado, cuja memória (e promessa que encerra) é celebrada pelas comunidades de fé em torno do partilhar do pão e da leitura das Escrituras, sob a ótica do que se cumpriu em Jesus, sua crucificação e ressurreição.
Como indicam várias introduções, é importante considerar que esse relato é ele mesmo uma leitura ou uma revisão de fontes do testemunho sobre a pessoa e a obra de Jesus (1.1-4), com alguma contribuição pessoal do autor, tanto de conteúdo como de estilo. A intenção de Lucas é mais teológica do que histórica; o que ele tem em vista não é apenas a rememoração litúrgica do que fora realizado em Jesus, mas uma instrução na fé a seus leitores, personalizados em “Teófilo” (1.3), seu interlocutor direto. Assim, Lucas zela pela organicidade da narrativa (com omissões e novos arranjos em relação aos outros evangelhos, principalmente Marcos) e, ao mesmo tempo, o faz com uma declarada intenção literária e poética na valoração de alguns temas e, sobretudo, dos discursos de Jesus. Como autor, Lucas parece querer alcançar seus ouvintes de modo semelhante àquele com que o “estranho” que acompanhava os discípulos a caminho de Emaús expunha as Escrituras: fazendo-os arder no coração (24.32).
Era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito (v. 44-49)
Essa palavra poderia servir de título para este bloco. Nela estão elementos importantes para o que segue nos v. 45s – uma interpretação cristológica das Escrituras na boca do próprio Jesus: a necessidade de cumprimento do que fora “dito/escrito” sob a autoridade das Escrituras. Lucas, seguindo suas fontes, legitima essa interpretação cristológica como autocompreensão de Jesus em sua identificação com a tradição messiânica do Servo de Deus (cf. Lc 4.16-21). Também situa o ensino do conteúdo da fé no Cristo na comunhão eucarística (24.43).
No v. 44, a partícula de tempo “a seguir” remete ao que antecede esse momento do relato. Lucas dedica o fechamento de seu relato ao testemunho em torno do encontro com o Cristo ressuscitado, caracterizando a presença de Jesus na situação da partilha de alimentos (24.30,43). Lucas recorre a essa situação “eucarística” para caracterizar o encontro com o Jesus ressuscitado. Esse argumento eucarístico, junto à expressão “lhes abriu o entendimento” (v. 45), remete ao ocorrido no caminho entre Jerusalém e Emaús (24.13-35). A maneira como Jesus se dirige ao grupo de discípulos – “caminha” e “come com eles” – implica também uma comunhão de entendimento, isto é, de uma fé compartilhada e confessada comunitariamente.
A partir disso, Lucas relata o que seriam palavras de Jesus, retomando ditos dos profetas para dar expressão à autocompreensão messiânica de Jesus. Essa mesma interpretação cristológica das Escrituras provoca o “ardor no coração” dos discípulos no caminho de Jerusalém a Emaús (cf. 24.32), cuja percepção se dá mediante o partir do pão (24.30). No v. 47, o tema do comissionamento na pregação do arrependimento “em nome do Cristo” converge com Mateus e Marcos. Porém Lucas dedica outro livro para narrar seu desdobramento; na verdade, como vimos, o testemunho apostólico ilumina toda a sua narrativa (1.1-4) e enfatiza o argumento missiológico de sua teologia.
A interpretação das Escrituras é selada pela afirmação do v. 48: “Vós sois testemunhas dessas coisas” (cf. At 1.8), cujo comprometimento repercute na comunhão de fé entre os discípulos e ouvintes desse evangelho. Não se trata, porém, de um comprometimento formal. O testemunho a que o evangelista se refere surge da experiência de encontro com o Cristo ressuscitado, o messias revelado, agora sob a promessa (v. 49): “Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai”. Essa formulação de Lucas sugere uma teologia do batismo do Espírito Santo, cuja chave de interpretação está na noção de promessa, evocada numa relação trinitária entre o Filho que envia a promessa (Espírito Santo) do Pai.
Jesus encerra suas palavras (v. 49) ordenando que os discípulos permaneçam na cidade de Jerusalém (cf. 24.33) “até que do alto sejais revestidos de poder”. A permanência é temporalmente indeterminada e apenas sinalizada por um evento que é referência de Lucas ao Pentecostes. A cidade de Jerusalém não é mero registro geográfico, mas um tema teológico para Lucas – a Cidade Santa é o lugar messiânico onde o evangelho inicia e desde onde as nações o receberão. O poder a que se refere Jesus está relacionado à promessa – sugerido pelo aoristo passivo de “revestir” (endushsqe). Isto é, os discípulos devem aguardar até ser objetos de uma ação do Pai, a quem pertence o poder (cf. Bíblia de Jerusalém, até serdes revestidos da força do Alto).
(…) enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo elevado para o céu (v. 50-53)
Segue ao encontro de Jesus com os discípulos outro momento (o v. 50 inicia com uma partícula de tempo indeterminado), no qual o próprio Jesus guia os discípulos a um desvio de Jerusalém ao povoado vizinho de Betânia – um distanciamento que poderia se justificar pela ação que segue: “erguendo as mãos, os abençoou”.
São três ações simultâneas: Jesus abençoa e se distancia (sujeito ativo) e é elevado ao céu (sujeito passivo), lugar de onde virá a promessa. Novamente sugerindo uma teologia trinitária, Lucas relaciona a Ascensão de Jesus com a promessa do Espírito Santo, identificando a comunhão dessa promessa com a fé no Cristo, agora colocado sobre todas as coisas, o cabeça de um corpo pleno entre as nações e tudo o que existe (cf. Ef 1.22-23). Por fim, imbuídos da promessa –não ainda revestidos de poder –, os discípulos retornam a Jerusalém e fazem do Templo o lugar da espera pelo cumprimento da promessa de Jesus.
3. Meditação
Tomamos a Ascensão como motivo litúrgico para a interpretação do texto indicado. Isso, contudo, implica uma inversão da estrutura do texto, o que não pode passar desapercebido. O aspecto glorioso da Ascensão, que coroa a aparição do Ressuscitado e entroniza-o como o Senhor, é determinado por uma teologia eucarística, bem como o tema do envio apostólico e o símbolo da promessa. Quer dizer, trazer a Ascensão para um primeiro plano na liturgia e na prédica não deveria comprometer esses referenciais, isolando-a de seu conteúdo teológico. Próprio a uma perspectiva evangélica luterana, o símbolo da Ascensão, com toda a sua glória, tem de ser também interpretado desde uma teologia da cruz.
No texto, a Ascensão está relacionada a duas outras ações: a bênção e o distanciamento de Jesus em relação aos discípulos. Numa palavra, poderíamos dizer que se trata de uma solene despedida, significada pelo gesto da bênção como encorajamento para uma presença apostólica no mundo. É o fechamento que Lucas dá a seu relato do evangelho, cujo motivo teológico principal é o encontro do Ressuscitado com seus discípulos: encontro que promove uma comunhão no alimento e no entendimento, em torno de uma nova e cristológica interpretação das Escrituras, que, por sua vez, reitera o envio apostólico sob a promessa do Espírito Santo.
Como ação e sinal do que fora cumprido em Jesus, a Ascensão coroa sua glorificação, agora o Cristo de Deus. Ela testifica a promessa e motiva a esperança. Por isso enche os discípulos de alegria, enquanto aguardam o cumprimento neles do que já fora cumprido em Jesus. O distanciamento de Jesus e a ausência que segue, com a Ascensão, tornam-se fonte de coragem e fé para a comunidade de discípulos. Ela antecipa a promessa de um poder que fará o movimento contrário: do céu para a terra, isto é, o reino de Deus.
Num contexto cultural e religioso mais amplo, marcado por uma frequente tendência a uma “teologia da glória” em detrimento de uma “teologia da cruz”, de conteúdo profético e transformador, não deveríamos nos acanhar diante desse evangelho. A experiência que inaugura a fé no senhorio de Cristo é justamente aquela que caminha silente de Jerusalém a Emaús e é surpreendida pelo Cristo vivo, cuja presença é tão humana quanto é o gesto de partir o pão.
A Ascensão, como tema teológico e símbolo religioso, sugere um vínculo “entre céu e terra”, que dá sentido à vida comunitária e a toda realização, na qual essa se reconhece. A relação com o alto aponta, por sua vez, para a santidade. O poder que sugere, principalmente porque esse é objeto da promessa de Deus, tem de ser caracterizado como “poder do alto”. Isto é, não é qualquer poder, mas poder de Deus, poder santo e santificador.
O que realiza esse poder? Com o que se ocupa? A preocupação de Lucas, de fato, é preparar seus leitores para o que ele desenvolve em Atos dos Apóstolos. Todo o conteúdo do evangelho é, na verdade, motivo para inaugurar uma ação apostólica orientada à pregação para o arrependimento de pecados, visando todas as nações. O texto convoca ao comprometimento com a comunidade que assume para si o projeto de Cristo contra o mal e a injustiça (em seu padecimento) e a realização profética que tem continuidade num pacto pela vida (a ressurreição) e pela justiça (o arrependimento).
4. Imagens para a prédica
A Ascensão do Senhor como tal merece o devido destaque na liturgia e na prédica. Ela mesma é uma imagem que deve ser pressuposta. Há todo um imaginário religioso e uma iconografia que a comunidade certamente traz consigo e não poderia ser ignorado. Uma vez que o tema deverá estar sendo explicitado ao longo da liturgia, a prédica deveria dialogar com essas convenções.
Para uma abordagem pastoral, sugere-se enfatizar mais o aspecto simbólico e teológico do que a literalidade da Ascensão enquanto evento histórico. Mais do que objeto de fé, a Ascensão deveria ser anunciada como símbolo de encorajamento da fé. A questão central é seu significado para a ação apostólica da comunidade cristã, e é nisso que devem orientar-se quaisquer imagens para a Ascensão. Jesus vai para o mesmo lugar de onde a comunidade espera a promessa de Deus como presença espiritual que a sustenta e a fortalece em sua presença concreta no mundo.
Uma metáfora significativa a ser explorada é a relação céu e terra, pressuposta pela Ascensão. Jesus “é elevado” porque vai para junto do Pai; e desse mesmo lugar a comunidade de discípulos deve aguardar o poder, pelo qual poderá realizar sua vocação apostólica. A “geografia” sugerida pelo texto não é de “natureza” e “sobrenatureza”. Quer dizer, não se trata da crença em um poder sobrenatural, anônimo e impessoal; mas a espera na presença de Jesus junto ao Pai, que é a mesma que deverá revestir a comunidade de um poder reconciliador na missão que recebe do próprio Jesus.
5. Subsídios litúrgicos
O motivo litúrgico da Eucaristia está muito presente no texto de Lucas e deveria ser algo também presente no desenvolvimento da liturgia em torno da Ascensão do Senhor. Poderia ser inclusive uma oportunidade para trabalhar a liturgia da Eucaristia desde uma abordagem catequética, considerando-a situação de ensino, tal como no relato é descrito. Normalmente, a explicação da Ceia se reduz à oralidade durante a prédica. Aqui se poderia aproveitar o próprio momento da realização da liturgia eucarística como vivência da situação de encontro com Jesus, procurando alcançar alguns desdobramentos sensíveis de conteúdo teológico desse encontro para a vida comunitária e individual.
O que significa a presença de Jesus em nossa vida? O que significa pertencer a essa comunhão e testemunhar sua participação no reino de Deus? De uma forma mais vívida, essa sensibilização poderia também ser feita enfatizando o gesto de partir o pão – que Lucas menciona em 24.30, quando os discípulos reconhecem Jesus. Também pequenas intervenções motivadas pelo/a liturgista poderiam ser feitas, convidando a comunidade a refletir sobre a própria realização da Ceia e seu significado.
Outro momento litúrgico que pode ganhar relevo a partir do texto da prédica são a bênção e o envio, enfatizando o que vier a ser ressaltado durante a prédica e o sentido dado ao símbolo da Ascensão do Senhor. Motivar que a comunidade se dirija com a bênção uns aos outros, referindo ao significado da comunhão que ali acontece e enfatizando a necessidade de viver responsavelmente essa comunhão, como expressão da presença de Jesus entre nós. De todo modo, o movimento da Ascensão deveria ganhar essa orientação evangélica de repercutir na presença da comunidade de discípulos no mundo e seu papel na missão dada pelo Cristo.
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento: v. 1 – Jesus e a comunidade primitiva. 3.ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1988.
BOYER, Orlando. Lucas, o Evangelho do filho do homem: Comentário sobre o Evangelho segundo Lucas. 2.ed. Rio de Janeiro: O.S. Boyer, 1964.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).