Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 3.1-6
Leituras: Malaquias 3.1-4 e Filipenses 1.3-11
Autor: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 2º Domingo de Advento
Data da Pregação: 09/12/2012
1. Introdução
No tempo do Advento, a esperança é o fio condutor de nossas celebrações. Nele celebramos os textos que nos lembram a expectativa da encarnação e, ao mesmo tempo, nos inserimos nessa história, colocando nela a nossa esperança: o Dia do Senhor. Ao mesmo tempo, também somos chamados ao compromisso. Não podemos celebrar a esperança sem uma ação que coloque nossas vidas a serviço desse Reino. Os textos litúrgicos lembram-nos da responsabilidade de preparar os caminhos do Senhor e de nos apresentar “sinceros e sem ofensa para o Dia do Senhor”.
Nossa perícope dá a esse desafio o tom de um anúncio profético. Palavra que desafia a uma mudança de vida, compromisso com o anúncio de Deus, que transforma a existência humana. É esse o tom que marcará nossa reflexão em torno do texto de Lucas.
2. Exegese
2.1 – O evangelho
Para abordarmos nossa perícope, necessitamos registrar alguns pressupostos. O primeiro pressuposto, que é um consenso, é que o Evangelho de Lucas forma um conjunto com o livro de Atos dos Apóstolos. Embora haja divisões sobre o período de escrita de cada um, assumimos que, ao abordar esses dois escritos em conjunto, temos um retrato dos conflitos que cercavam essa comunidade. O segundo pressuposto, que foge ao consenso dos estudiosos, é que esse conjunto de escritos reproduz a situação de uma comunidade de fronteira. É um lugar onde judeu-cristãos e gentílico-cristãos têm que conviver em uma mesma comunidade. Considerando a importância que Antioquia tem no livro de Atos, entendemos que essa cidade tem um grande potencial para ser o local onde essa comunidade vivia. Desse modo, o evangelho reproduz os conflitos e as dificuldades de convivência entre cristãos judeus e gentílicos em uma região fronteiriça ao mundo judaico siro-palestinense e a porta para o mundo romano mediterrânico. Essas diferenças ganham corpo em torno da mesa de refeições. Devido a códigos religiosos de pureza, um judeu teria uma grande dificuldade em sentar-se à mesa com um gentio. Uma vez que a celebração dominical do cristianismo primitivo tinha como ponto central a refeição comum – memória e celebração da presença de Cristo, que ganha importância sacramental –, o conflito se estabelece. Por isso os relatos do evangelho e do livro de Atos apontam a superação da diferença à mesa (como, por exemplo, o reconhecimento do Cristo estrangeiro na partilha do pão pelos caminhantes de Emaús ou o conflito entre Pedro e Paulo sobre a participação à mesa de Antioquia) e no encontro com o estrangeiro (como, por exemplo, no longo relato da viagem de Jesus a Jerusalém ou na conversão de Cornélio). É nesse quadro que nossa perícope se localiza.
2.2 – A perícope
O texto de Lucas inicia com uma característica que o distingue dos demais evangelhos. Os versículos 1 e 2, ao apresentarem a datação da vocação de João Batista, reproduzem os textos de vocação profética (veja, por exemplo, Is 1.1; Jr 1.1-2; Ez 1.1-3; Ag 1.1; Zc 1.1; Os 1.1; Am 1.1; Mq 1.1; Sf 1.1). Mesmo o livro de Daniel, que é parte dos quetubim (escritos) e se localiza no período grego, apresenta em sua introdução a mesma fórmula da vocação profética (Dn 1.1-2). Ou seja, percebemos que Evangelho de Lucas insere a apresentação do ministério de João Batista como um ministério profético. João Batista cumpre no evangelho o papel que os profetas cumpriram no período veterotestamentário, apresentando as palavras de julgamento e exortação ao povo. A expressão que descreve que a palavra do Senhor veio sobre ele é a mesma encontrada em alguns dos textos apresentados acima na tradução da Bíblia Hebraica para o grego, a Septuaginta. A citação de Isaías usada nessa perícope também foi baseada na Septuaginta. Isso tudo aponta para um objetivo redacional: registrar um anúncio profético que tem por objetivo desafiar a comunidade a um posicionamento diante da mensagem divina e a uma mudança de atitude.
Em Lucas 1.5ss, temos a anunciação do nascimento de João Batista. Novamente temos uma datação, muito breve (“nos dias de Herodes, rei da Judeia”), mas que mantém a mesma dinâmica. João Batista tem seu nascimento anunciado ao pai – Zacarias, na tradição dos anúncios veterotestamentários. Percebemos que essa proposta teológica de Lucas de localizar a concepção e o ministério de João Batista na esteira das vocações proféticas é uma marca do evangelho. Necessitamos ler o anúncio dessa nossa perícope na perspectiva da mensagem profética, ou seja, um anúncio programático de exortação e direcionamento para a vida do povo, dado pelo profeta em nome de Deus. Essa proposta estabelece uma comunicação direta com o imaginário dos cristãos judaicos. A mensagem apresenta para esse grupo um desafio de mudança de vida e atitude.
A salvação de Deus é apresentada pela voz profética de João Batista: “Voz do que clama no deserto”. O deserto é um lugar paradigmático da fé judaica. É lugar de provação, travessia, tentação e, ao mesmo tempo, lugar de providência, de socorro divino, caminho para libertação. O anúncio inscreve-se no desafio da vida no deserto. Esse anúncio propõe a preparação do caminho do Senhor a partir da superação das diferenças.
A estrutura aparece da seguinte forma:
A: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.
B: Todo vale será aterrado, e nivelados todos os montes e outeiros;
A’: os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados;
Clímax: toda a carne verá a salvação de Deus.
Percebemos que a preparação do caminho forma uma moldura (o caminho é endireitado, retificado e aplanado). No centro, há um nivelamento de tudo, aterrando vales e nivelando os montes. O centro é a proposta de não haver diferenças e, quando isso acontece, toda a carne vê a salvação de Deus.
O texto de Isaías 40.3-5 foi usado como base do anúncio. Como afirmamos acima, a versão utilizada por Lucas foi a da Septuaginta. É interessante notar que uma parte desse texto foi omitida. Comparemos:
“E se manifestará a glória do Senhor, e verá toda a carne a salvação de Deus, pois a boca do SENHOR o disse” (Is 40.5, texto da LXX, tradução minha); “… e verá toda a carne a salvação de Deus” (Lc 3.6, tradução minha).
A frase E se manifestará a glória do Senhor foi omitida por Lucas. A ênfase lucana está na afirmação de que “toda a carne” verá a salvação de Deus. Isso só será possível, na perspectiva lucana, mediante a eliminação das diferenças. Nesse ponto, temos a ligação entre a realidade da comunidade e o discurso de abertura do evangelho, preparando o ministério de Jesus. A salvação de Deus só pode ser contemplada mediante a superação das diferenças, e isso é papel de todos os que preparam os caminhos do Senhor.
3. Meditação
Celebramos no período do Advento a expectativa pela vinda do Messias. A cada domingo, cercamo-nos de símbolos de esperança frente ao nascimento do Verbo que se fez carne. Porém, muitas vezes, não perguntamos sobre a relevância disso para nosso cotidiano. Vivemos em um mundo onde as divisões são cada vez mais aparentes. A violência decorrida da intolerância frente às diferenças étnicas, sexuais ou sociais é apresentada na mídia com uma naturalidade assustadora. Diante disso, somos desafiados a repensar a fé a partir da esperança no Messias que nasce entre nós.
Nossa perícope faz parte da memória de uma comunidade que vive o desafio da fé em uma situação de fronteira. Diferentes têm de conviver em um único espaço, celebrando uma mesma fé e partilhando uma mesma mesa. Porém as diferenças étnicas, religiosas e sociais tornam-se empecilhos para a comunhão. O evangelho e o livro de Atos, em um conjunto, constituem memória de Jesus e dos primórdios da comunidade cristã. Exortam os participantes dessa comunidade a uma mudança de postura. Os diferentes têm de conviver. Essa é a marca do movimento cristão.
Para tanto, o Evangelho de Lucas tem uma estrutura em que o ministério de Jesus é apontado como um superador de barreiras. O Espírito está sobre Ele para trazer a boa-nova a todos (Lc 4.16-21); o deficiente é convidado a ocupar o lugar central na sinagoga (Lc 6.8), e grande parte do evangelho apresenta Jesus no caminho para Jerusalém (Lc 9.51-19.41) entre estrangeiros e impuros. O clímax do evangelho ocorre no reconhecimento de Jesus pelos caminhantes de Emaús, quando, ao sentarem-se à mesa com o “estrangeiro”, reconhecem o ressurreto no partir do pão. A mensagem é direta: se à mesa as diferenças não forem superadas, o Cristo ressurreto perde-se e a mensagem da ressurreição não é compartilhada. No encontro com o diferente, descobre-se o Cristo.
Nessa perspectiva, nossa perícope inscreve-se cumprindo um importante papel de anunciar o tema que será desenvolvido no evangelho. A memória é apresentada a partir da pregação de João Batista, que anuncia a vinda do Senhor. Esse anúncio acontece na esteira das vocações proféticas do Antigo Testamento. Os cristãos oriundos do judaísmo, ao ouvir esse texto, reconhecem o estilo do anúncio profético. Essa forma de comunicação soa aos ouvidos desse grupo como um anúncio de Deus que pede uma resposta que propicie uma mudança de postura. O anúncio profético é apresentado em uma estrutura concêntrica, típica daquele tempo, na qual se aponta um clímax: a superação das barreiras.
A: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas;
B: Todo vale será aterrado, e nivelados todos os montes e outeiros;
A’: os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados;
Clímax: toda a carne verá a salvação de Deus.
A preparação dos caminhos pressupõe a retificação dos caminhos tortuosos e o aplanar dos caminhos pedregosos. Porém o maior impacto é que os vales serão aterrados e os montes nivelados. Isso significa que, no final da preparação do caminho, o resultado é um caminho reto, liso e uma geografia plana. Em jogo está a metáfora das barreiras que dividem os grupos da comunidade. A missão do Messias será eliminar as barreiras; por isso seu caminho é preparado nessa dimensão. Quando as barreiras são quebradas – e isso é tarefa do profeta e de cada um e cada uma da comunidade –, a salvação do Senhor é manifesta para “toda a carne”, para todo o ser humano, sem distinção de raça, gênero, condição social etc.
A mensagem à comunidade lucana é clara. Enquanto não forem superadas as divisões baseadas na diferença religiosa, estabelecida por cristãos judeus que não se acercam de seus irmãos e irmãs do cristianismo gentílico, a salvação do Messias não se realiza. Essa mensagem é apresentada na estrutura de um anúncio profético, ou seja, é a advertência de Deus para que o povo que insiste em manter as barreiras religiosas converta-se, aplaine os caminhos do Senhor e possibilite que a salvação de Deus se manifeste para “toda a carne”.
De igual modo, em nossa realidade hoje, na qual a intolerância, a violência e os conflitos se agigantam, somos chamados a assumir nosso papel de “voz que clama no deserto” – lugar de provação e de oportunidade. Esse papel deve ser desenvolvido na perspectiva da derrubada das barreiras que segregam pessoas e grupos, possibilitando, assim, que a mensagem do Reino possa atingir igualmente todos os seres humanos, congregando todos em torno da mesa de comunhão e vida, os quais se achegam de diferentes lugares, vindos por caminhos aplainados, retificados, nivelados pela ação restauradora do povo de Deus.
4. Imagens para a prédica
Uma sugestão de imagens para a prédica é encontrar, nos periódicos, notícias locais, nacionais e internacionais sobre situações de violência geradas pela intolerância. Se possível, citar algumas em que a violência foi praticada por motivações religiosas. O objetivo é apresentar um mundo marcado por vales e caminhos tortuosos de violência e dor. Essas imagens apontarão o desafio da comunidade de ser “voz que clama no deserto”.
5. Subsídios litúrgicos
Para um momento de confissão, preparando para a mensagem, sugerimos a leitura da oração de Walter Rauschenbusch: Pela participação no trabalho de redenção. A ênfase maior deve ser dada à busca pela fome e sede de justiça em meio a um mundo marcado pela dor e pelo pecado. O compromisso com o Cristo encarnado pode fazer a ligação com a prédica do desafio de aplainar os caminhos do Senhor.
Pela participação no trabalho de redenção – Walter Rauschenbusch
Ó Deus, grande Redentor da humanidade, nossos corações se enternecem ao pensar em ti, porque tu foste afligido com todas as aflições de nossa raça e, nos sofrimentos do teu povo, o teu corpo é que foi crucificado. Foste ferido por nossas transgressões e esmagado por nossas iniquidades, e todos os nossos pecados foram finalmente postos sobre ti. Dentre o gemido da criação percebemos teu espírito em angústia, até que os filhos de Deus nasçam em liberdade e santidade. Rogamos-te, ó Senhor, a graça de uma vida pura e santa, para que não mais aumentemos o peso dos pecados do mundo que é posto sobre ti, mas possamos compartilhar a tua obra de redenção. Assim como as más paixões nos fizeram sequiosos pela destruição dos homens, dá-nos agora fome e sede de justiça, para que levemos boas-novas aos pobres e ponhamos em liberdade todos aqueles que estão nas prisões da penúria e do pecado. Derrama teu espírito sobre nós e inspira-nos um intenso amor, como o de Cristo, para que unamos nossas vidas às do pobre e oprimido e fortaleçamos sua causa carregando suas tristezas. E se o mal que nos ameaça se volta para nos golpear e se experimentamos a malignidade do poder do pecado, conforta-nos com o pensamento de que assim trazemos em nosso corpo os estigmas de Jesus e que somente aqueles que participam de seu livre sacrifício sentirão a plenitude de tua vida. Ajuda-nos a carregar com paciência a eterna cruz do teu Cristo, considerando-nos felizes se também formos semeados como grãos de trigo nos sulcos do mundo, porque somente pela agonia do justo vem redenção.
(Adaptado de Walter Rauschenbusch. Preces Fraternais. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1936. p. 97-98)
Bibliografia
FITZMYER, Joseph A. El Evangelio según Lucas. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1986.
MOXNES, Halvor. A Economia do Reino – Conflito Social e Relações Econômicas no Evangelho de Lucas. São Paulo: Editora Paulus, 1995. PL
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).