Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 3.15-17, 21-22
Leituras: Isaías 43.1-7 e Atos 18.14-17
Autora: Cledes Markus
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 13/01/2013
1. Introdução
É época de Epifania. Neste domingo, lembramos o batismo de Jesus. Epifania é revelação de Deus. Cristo, aquele que vem, é revelado em meio aos povos e nações. Deus aproxima-se da humanidade e fala no batismo de Jesus. Isso é graça revelada. Deus manifesta-se como aquele que está presente e intervém na história humana, que ama e cuida, que perdoa e capacita para a esperança da salvação. Isso é maravilhoso e comprometedor. É oportuno permitir que a Epifania e o batismo de Jesus nos comuniquem sobre o amor e o cuidado de Deus. É importante refletir sobre nosso cuidado com a vida e a salvação.
As leituras bíblicas indicadas para este dia inserem-se nessa manifestação graciosa de Deus. No texto de Isaías 43.1-7, a crise de fé entre os exilados era evidente diante de uma situação difícil. Nesse contexto, o dito “não temas” adquire caráter extraordinário. É mensagem de esperança. É certeza da intervenção de Deus. A mudança, o novo que agora vem, é anunciado pelo próprio Deus, que intervém de forma renovada na história humana e na criação. O “não temas” revela a presença e os cuidados de Deus.
Em Atos 18.14-17, é Paulo quem recebe a revelação de Deus. Ele está diante do tribunal romano, sendo acusado por judeus de Corinto. Antes disso, tem uma visão em que Deus lhe anuncia: “Não temas; ao contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade”.
Lucas escreve sobre João Batista, profeta que recebeu a fala de Deus e prega arrependimento e perdão de pecados. João anuncia Jesus, que, ao contrário dele, batiza com o Espírito Santo. Jesus pede a João que o batize no rio Jordão. Durante o batismo, o céu rasga, e Deus revela-se dizendo: “Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo”.
No Primeiro Domingo após Epifania, ensaiamos os primeiros passos de um novo ano. É o início de uma caminhada. É tempo favorável de preparo, avaliação, arrependimento e mudança de vida. Tempo de percebermos que há esperança e que Deus está conosco.
2. Exegese
O texto de Lucas 3.15-17,21-22, previsto para a prédica deste domingo, manifesta e torna concretos a missão e o ministério público de Jesus Cristo. O texto inicia fazendo referência a João Batista. O povo discorre se, por acaso, não seria ele o próprio Cristo.
Quem é João Batista? Encontramos referências históricas a respeito de João Batista nos evangelhos e no relato de Josefo, historiador judaico da época. Segundo esses escritos, sua atuação teria iniciado no 15º ano do reinado de Tibério (Lc 3.1), anos 28/29 de nossa era.
Lucas insere-o na tradição profética. Apresenta-o, em Lucas 3.1, num típico cabeçalho de livro profético (Jr 1.1ss; Am 1.1; Os 1.1). O solene refrão “veio a palavra de Deus a João” identifica-o com os grandes profetas do passado. Lucas dá notícias de que o silêncio dos séculos foi quebrado, e mais uma vez há uma pessoa em Israel que desafia o povo com a mensagem de Deus. A missão de João é referida por meio da citação de Isaías 40 (Lc 3.1-6).
Sua origem é o deserto, mas sem precisão exata de localização. O que é relevante são as ideias e as associações históricas evocadas pela menção do deserto. Ali Deus se manifestou como o salvador de seu povo. A atuação de João acontece na circunvizinhança do rio Jordão, onde anuncia e pratica o batismo com água (Lc 3.3). Os relatos tornam evidente a intenção de indicá-lo como precursor de Jesus, como aquele que prepara o caminho do Senhor.
O centro da pregação de João Batista é um chamado radical ao arrependimento. O batismo com água que ele pratica é “batismo de arrependimento para a remissão de pecados” (Lc 3.3). A palavra grega neotestamentária metanoia, utilizada para designar esse arrependimento, tem o significado literal de “mudança de mente”. Assim, João exigia de seus ouvintes uma nova qualidade de vida, expressa por meio de atos apropriados, que são descritos como frutos dignos de arrependimento. Esses frutos devem ser demonstrados em ações concretas, como a justiça social e a partilha dos bens com os pobres. Sua mensagem é consistente com a doutrina dos profetas precedentes.
Lucas dirige-se às multidões, não somente a fariseus e saduceus, como em Mateus 3.7. Ao falar a todo o povo, aponta sua compreensão universal da mensagem da salvação. Todos necessitam de arrependimento, e a salvação é destinada a todos.
V. 15-17 – O batismo com água e o batismo com o Espírito.
No contexto da mensagem e atividade de João Batista, surgem as especulações se ele não seria o Messias anunciado. João mostra rejeição total a essa ideia. Sua resposta é categórica: “Vem aquele que é mais poderoso do que eu”.
A negação de João quanto a ser o Messias é expressa de maneira ainda mais enfática. Ele está tão longe de ser o Messias, que não é digno de desatar a correia de suas sandálias. Um dos deveres dos escravos era tirar as sandálias de seu senhor, e João considera que não é digno nem mesmo de ser escravo do Messias.
João também esclarece que seu batismo é com água. Isso significa que seu ministério era de preparação, de chamar o povo ao arrependimento, de forma que se preparasse para a vinda de um novo tempo. Em contraste, Jesus, aquele que há de vir, batizará com o Espírito Santo e com fogo.
João Batista, portanto, anuncia o arrependimento e o juízo, preparando o caminho para aquele que há de vir. O batismo de João é um sinal que expressa arrependimento, mas que precisa traduzir-se em frutos. Esse batismo com água é sinal da misericórdia e da graça de Deus, que perdoa. As pessoas que buscam esse batismo mostram sua disposição para transformar suas vidas, converter-se e produzir frutos.
O batismo de Jesus é definitivo. Somente esse batismo, mais poderoso, capacita os batizados a produzir frutos dignos de arrependimento. Torna as pessoas capazes para a transformação radical e para vivenciar a novidade de vida proposta pelo arrependimento.
João, portanto, pode convocar para a mudança, mas a concretização da novidade de vida somente é possível com o batismo do Espírito, tarefa inerente a Jesus.
Mesmo assim, é necessário preparar-lhe o caminho, pois, ao mesmo tempo em que ele vem para trazer o batismo do Espírito, o Messias vem trazer o fogo, o juízo. Ele vem limpar a eira, separando o trigo da palha. Queimará a palha e juntará o trigo.
João declara que o juízo de Deus será como o processo de debulha realizado pelo agricultor. Diante do juízo, é oferecida a possibilidade de dar meia-volta para produzir frutos. O critério do juízo continua sendo o fruto. Àqueles dispostos a seguir esse caminho, o que vem lhes dará o Espírito e o fogo para que produzam frutos dignos, frutos de justiça, de misericórdia e de partilha.
Enquanto João prepara e propõe o arrependimento, em Jesus dá-se o cumprimento do anúncio da boa-nova: o reino de Deus está por irromper.
V. 21-22 – O batismo de Jesus
Jesus junta-se à peregrinação ao Jordão para ser batizado por João. O batismo acontece de modo coletivo: “ao ser todo o povo batizado, também o foi Jesus”. Ao participar de um evento batismal coletivo, com água, Jesus reconhece e dá validade a essa forma de batismo. O batismo de Jesus dá-se com o povo, de uma forma comunitária, como alguém que não se distingue das outras pessoas. Ele se faz igual às outras pessoas. Participa de suas experiências de vida. O Espírito Santo mostra, contudo, que a proposta de Jesus vai além: indica o escolhido de Deus.
Somente Lucas menciona que Jesus orou por ocasião de seu batismo. A oração pode indicar o momento de reflexão diante da importância do ato. Jesus ora num momento de decisão para elucidar sua missão. Assim, Jesus também orou no Getsêmani, num momento de extrema reflexão em sua vida.
O v. 22 relata o fato extraordinário que acontece durante a oração de Jesus. O céu rompe-se, e o Espírito Santo desce sobre ele em forma corpórea como uma pomba, indicando o Filho amado: “Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo”. É assim que Deus se manifesta e revela nesse ato em que Jesus é batizado.
Essa comunicação de Jesus com o Espírito Santo indica que Jesus é agora o mensageiro de Deus. Com esse ato se realiza a missão profética do Filho de Deus. O Espírito define o caráter da missão de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4.18).
Com o batismo, Jesus também se revela a nós seres humanos. Faz-se gente como a gente. Vem até nós. E nesse gesto é o próprio Deus que se revela a nós mediante seu filho. Cristo assume a sua missão com o batismo e capacita o ser humano para transformar sua vida. Com o batismo de Jesus, Deus honra o nosso batismo.
3. Meditação
O batismo é tema central nesse texto. Nele também se realiza a Epifania, a revelação de Deus. Um ponto importante sobre o qual podemos meditar é que o batismo que João anuncia mostra a necessidade do arrependimento. Prepara o caminho. É sinal da graça e misericórdia de Deus, que perdoa. Arrependimento não é somente um sentimento de culpa, pesar ou remorso por alguma falha ou erro cometido ou por alguma lei transgredida e que nos leva a pedir perdão. Arrependimento é algo muito mais profundo e radical. Segundo o vocábulo grego metanoia, significa mudar de mentalidade. Nesse sentido, arrependimento está ligado a outro jeito de pensar e de viver, a outra forma de conceber e estabelecer relações.
É o que o apóstolo Paulo escreve em Romanos 12.1-2. Ali ele nos alerta de que não podemos nos enquadrar nos moldes deste século, no jeito deste mundo. Mas podemos ser transformados em nossa mentalidade e capacitados para experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. O arrependimento nos desinstala. Tira-nos dos moldes deste mundo e coloca-nos nos moldes de Deus. João trouxe exemplos concretos desse arrepender-se: deixar de lado o acúmulo e a ganância; partilhar os bens, a roupa e a comida; não explorar o povo com a cobrança abusiva de impostos, extorsão e difamação; buscar o sustento de forma honesta.
Esses exemplos são bem atuais, mas existem outras dimensões da vida individual e coletiva em que se tornam necessários arrependimento e mudança de mentalidade. Uma dessas dimensões tem a ver com a forma de nos relacionar com a criação. Deus orienta-nos a cuidar dela, mas muitas sociedades e indivíduos têm tido uma relação de domínio e exploração. A terra sofre com isso. Paulo já nos alerta em Romanos de que toda a criação sofre e espera a salvação. Nesse sentido, torna-se urgente a mudança radical na forma de agir. Que Deus nos revele e capacite para cumprir sua boa vontade!
Outro aspecto importante na meditação é o fato de que, por ocasião do batismo, Jesus é revelado filho amado de Deus. Portanto o nosso batismo é expressão da revelação e do amor de Deus. Nele, Deus nos anuncia que somos suas filhas e seus filhos amados. Isso é maravilhoso e comprometedor.
Jesus assume um compromisso no batismo. Assume o ministério de libertação e salvação e dá o cumprimento da boa-nova do reino de Deus. Assim, Jesus impulsiona e capacita as pessoas batizadas para uma transformação radical de suas vidas. Coloca-as na dimensão do reino de Deus, aptas a assumir a missão solidária com as pessoas e as situações que sofrem dores e injustiças.
A atualização do batismo como compromisso de conversão e na dimensão de uma nova vida precisa ser vivenciada diariamente. É um viver diário em que a velha pessoa é afogada e uma nova pessoa ressurge e vive em justiça diante de Deus para sempre (LUTERO, Catecismo Menor). O batismo, então, torna-se um jeito de viver cotidianamente junto à família, à comunidade, à sociedade e junto à criação de Deus.
4. Imagens para a prédica
No batismo, somos lembrados diariamente de nossa vocação para o reino de Deus. Somos lembrados de nossa condição de filhas e filhos de Deus. Somos chamados a viver a realidade da boa-nova. Essa realidade, afirmada em Lutero, foi possível refletir e compreender de forma mais intensa a partir da convivência com os povos indígenas.
Entre muitos povos indígenas do Brasil existe a prática do batismo. Nesse evento, as crianças recebem um nome. Esse nome não é escolhido aleatoriamente, mas surge a partir da orientação divina e sempre ligado à identidade e à missão/vocação dessa pessoa na comunidade e no mundo. A história do nome é relatada de forma oral em diversos momentos da vida da pessoa. É uma maneira de lembrar que seu nome e sua vocação são dádivas de Deus e que sua missão neste mundo precisa ser cumprida.
Prática semelhante é encontrada em alguns povos da África. Tolba Phanem conta o que sucede em um desses povos. As mulheres grávidas, juntamente com as outras mulheres da aldeia, vão para a floresta orar e meditar até encontrar a canção da criança. Quando a criança nasce, a comunidade junta-se e canta-lhe a sua canção.
Essa canção é cantada em diversos outros momentos de sua vida: quando se torna adulta, quando se casa e quando morre. A canção também é cantada quando a pessoa comete algum erro grave ou algum desvio social. Ela é levada para o centro da aldeia, e as pessoas formam um círculo ao seu redor. Então lhe cantam a sua canção para lembrar a sua identidade e a sua vocação. A canção proporciona arrependimento e retorno para sua verdadeira missão.
Essas imagens indicam a necessidade de continuamente sermos lembrados da nossa identidade de filhas e filhos de Deus e da missão/vocação que assumimos no batismo. Pude perceber isso quando alguns dias atrás, num culto de batismo, minha filha de 11 anos comentou: “Hoje, durante o batismo das crianças, fiquei muito emocionada, pois eu pude perceber que no dia de meu batismo Deus também me chamou e me aceitou como filha amada”.
5. Subsídios litúrgicos
Nos cancioneiros da IECLB, encontramos diversos hinos com mensagens preciosas que podem ser incluídas na liturgia em forma de oração ou confissão. Aqui são sugeridos dois hinos que podem contribuir para com a temática deste culto: “Quando o Espírito de Deus soprou” – Hino nº 437 e “Senhor, se tu me chamas” – Hino nº 413; ambos são do hinário Hinos do Povo de Deus 2.
Outra sugestão é a “Oração do cuidado”, do P. Dr. Rodolfo Gaede Neto. Esse subsídio pode ser encontrado no Proclamar Libertação 32. São Leopoldo, 1994. p. 70-71.
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2002.
NEUENFELDT, Elaine. 1º Domingo após Epifania. In: Proclamar Libertação 20. São Leopoldo, 1994. p. 40-43.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).