Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 3.7-18
Leituras: Sofonias 3.14-20 e Filipenses 4.4-7
Autor: Felipe Gustavo Koch Buttelli
Data Litúrgica: 3º Domingo do Advento
Data da Pregação: 13/12/2009
1. Introdução
O Advento, via de regra, traz à discussão o tema da preparação para as comunidades cristãs. O Natal entra decisivamente na rotina das vidas, alterando o ritmo da comunidade. A sociedade como um todo recebe cores novas, cidades enfeitam-se e verdadeira corrida se instaura no cotidiano. Ninguém quer deixar pendências para o período de Natal e Ano Novo. Ceia, presentes, o Natal acaba sempre se tornando um momento de ápice da sociedade de consumo. Não se deve desvalorizar ou sonegar o fato de que as pessoas que frequentam nossas comunidades também estão imersas nessa onda de consumo. Nesse sentido, de modo mais secularizado, o Advento não deixa de ser período de preparação para um evento social amplamente concorrido.
Contudo, não é essa preparação que se costuma enfatizar na interpretação cristã do Advento. E, de fato, muitas comunidades e muitas pessoas resguardam em suas vidas uma prática devocional bastante bonita durante o Advento. A oração, a sondagem individual, as velas dos quatro domingos de Advento, tudo isso compõe em boa medida a vida de muitas cristãs e muitos cristãos. Eles se preparam para a chegada de Cristo! E, nesse sentido, o Natal permanece sendo um dos eventos mais marcantes no ano litúrgico, ainda que concorra com o apelo da sociedade de consumo.
Sabendo que a boa tradição do Advento não morreu, é necessário que seja sempre estimulada essa devoção, essa religiosidade, essa tradição. Por isso devemos pensar o que a fundamenta! Qual é o conteúdo, quais são as características dessa preparação? Por que e para que necessitamos nos preparar? Em suma, que novidade traz o Natal para nossas vidas, para que precisemos nos preparar para o nascimento de Cristo? Encontrar o sentido profundo para essas perguntas pode auxiliar nossas comunidades a reforçar essas práticas devocionais, essa autossondagem, bem característica do tempo de Advento. Pode também criar uma contra-cultura ao apelo demasiado da sociedade de consumo, atribuindo sentido ao evento e não ao que dele decorre.
O infante na manjedoura sempre nos traz a alegria de ver renovada a esperança. Esperança, portanto, é tema sempre presente no Natal e no Advento. A cada ano nasce uma nova esperança. Preparação e esperança – estão sempre presentes no ano litúrgico. As perguntas: Em que se espera? Por o que se espera? Por que se espera? devem sempre nos acompanhar na reflexão do Advento. Quem espera algo fá-lo por não estar feliz, satisfeito, completo. Pode também estar com medo, angustiado, sofrendo. Espera-se, no Advento, por uma mudança. Mas que mudança é essa? O que deve mudar?
2. Texto
O texto de Lucas 3.7-18, combinado com as outras leituras bíblicas previstas, fornece uma boa reflexão sobre o que fundamenta e a que se referem a preparação e a esperança, que já nos parecem tão familiares, portanto, comuns no Advento e no Natal. Esse parece ser o desafio de quem prega: demonstrar continuamente a novidade e a atualidade do evangelho! Demonstrar por que que ele faz sentido para as nossas vidas e a que situações ele traz alento!
O texto de Lucas para o terceiro Advento já foi bastante comentado anteriormente no PL, já que é recorrente para o Advento. Portanto algumas discussões já foram repetidas mais de uma vez. No entanto, algumas serão aqui retomadas, postas ao lado de outras.
Joseph Fitzmeyer, em El evangelio segun Lucas, ao comentar a passagem de Lucas, oferece a pregação de João Batista em três aspectos diferenciados: escatológico, ético e messiânico.
No primeiro momento (v. 7-9), designado escatológico, ela atenta para a ira vindoura. Aqui sua pregação se assemelha à dos profetas do Antigo Testamento, que apontavam para o juízo de Deus. Carlos A. Dreher, oferecendo-nos a pesquisa de Goppelt, demonstrou anteriormente que Lucas, diferentemente dos outros sinóticos, prega a “multidões” (v. 7) e não somente a habitantes da Judeia e de Jerusalém. Essa “abertura” para diferentes destinatários encontra sua explicação na própria perícope de Lucas, já que ele cita, posteriormente, exemplos de como o arrependimento demonstra frutos tanto para publicanos como para soldados ro- manos, notoriamente não pertencentes ao grupo de “muitos fariseus e saduceus”. A “raça de víboras” é compreendida como toda pessoa que corre ao Jordão para ouvir sua pregação. Interessante é que as pessoas vão, por vontade própria, até João para ouvir sua pregação e para se deixar batizar. Ainda assim, ele as chama de víboras e as inquire a respeito de sua “fuga da ira vindoura”. Para Goppelt, o que já fora apresentado por Dreher, isso está vinculado a uma percepção ritualística que as pessoas tinham do batismo de João, recorrendo às noções de ritos de purificação presentes no AT. O batismo que João oferece requer, portanto, um arrependimento e uma mudança ética que ultrapassem a noção de purificação. Isso se torna evidente no v. 8, quando João afirma que já não é mais suficiente ser “filho de Abraão”. O critério do arrependimento encontra-se no aspecto ético: “dar bons frutos”. Essa metanoia pode ocorrer com qualquer pessoa da multidão; de qual- quer pedra pode se “suscitar filhos de Abraão” (v. 8).
Importante é, por isso, percebermos que o critério escatológico encontra-se vinculado ao arrependimento. Tanto Goppelt como Fitzmeyer ressaltam que a expressão metanoia é fundamental para João Batista. No grego não-neotestamentário, essa expressão significa modificar a mente, arrepender-se, mudar seu pensamento. No entanto, a compreensão do termo nos sinóticos está vinculada ao termo hebraico schub, que significa inverter a direção, dar um giro de 180º, retornar a Deus. Arrepender-se, em termos breves, significa mudar não somente de pensamento, mas de postura, atitude. Espera-se uma nova atitude em direção oposta à anterior.
O segundo momento (v. 10-14) da perícope traz elementos éticos, como decorrentes do processo de arrependimento. Essa parte é notoriamente exclusiva do Evangelho de Lucas. Por isso mesmo, por demonstrar a um público mais amplo que decorrências éticas, de comportamento, resultam do arrependimento, é que o teor da pregação escatológica é atenuado. Parece que Lucas quer transmitir a mensagem a pessoas que estão situadas em um contexto ordinário de vida. Lucas, pelo que se depreende dessa parte do texto, não cogita uma mudança estrutural. Tanto publicanos como soldados romanos não devem abdicar – é o que se pode interpretar de suas funções – nem tomar “a cruz” do discipulado em termos radicais (poderia se sugerir que abandonassem suas funções de serviço ao império romano). Basta que cumpram sua função social com justiça. Ninguém é chamado a abdicar de suas “túnicas”, o que, evidentemente, está vinculado aos bens mate- riais, mas deve apenas cuidar para não acumulá-los quando há quem esteja em necessidade. Nesse sentido, Lucas não apresenta o ascetismo de João Batista manifesto nos textos paralelos.
O terceiro momento é o messiânico (v. 15-18). Aqui Lucas admite que aquele que virá é mais poderoso do que o próprio João Batista. Retornando ao teor de juízo presente na primeira parte da perícope, nesse anúncio da vinda de Cristo, João trata-o em termos de Juiz, que trará a pá na mão e queimará em fogo inextinguível quem não produzir bons frutos. É nesse sentido que é mencionado o batismo no Espírito e no fogo. O batismo de Jesus é completo, mais poderoso do que o batismo de João. Espírito e fogo representam bem a ideia de vida e purificação. Jesus, perante o qual João não se sente digno de desatar as sandálias, batiza com nova vida e com purificação plena.
3. Meditação
Esse pequeno esboço exegético do texto de Lucas nos apresenta aspectos importantes a ser levados em conta na pregação para o período de Advento. Quando se fala em preparação e esperança, que precedem o nascimento de Cristo, fala-se em arrependimento, concebido como mudança de atitude, em dar bons frutos. João Batista anuncia ira. Faz uso de palavras duras, como “raça de víboras”. Em que medida somos nós também “raça de víboras”?
Parece que a defesa expressa na frase “temos por pai Abraão” (v. 7) demonstra que também nós tentamos estabelecer alguma segurança diante da ira de Cristo. “Tal ira não pode incidir sobre nós”, podemos pensar, elaborando um discurso de justificação. Nós que estamos presentes na vida da comunidade auxiliamos de uma forma ou outra, somos bons cristãos. Nós não somos, demonstra o texto, diferentes da raça de víboras por ser filhos de Abraão; o critério do arrependimento são os frutos.
O que Lucas oferece como modelo de arrependimento é uma atuação justa na sociedade. Ele convida a repartirmos o que há de sobra (v. 11), isto é, a não deixarmos desamparados os que não têm. Não cobrar mais imposto do que o estipulado (v. 13) e não dar denúncia falsa nem querer obter mais do que o soldo (v. 14). Ora, a despeito da interpretação de que isso ainda não é uma atitude radical, no sentido de reconstrução das relações sociais, mesmo essas palavras fazem muito sentido para a nossa sociedade. Há péssima distribuição de renda no Brasil. Há muito para poucos. Os exemplos dados ao publicano e ao soldado podem se referir ao nosso contexto, se apontarmos para a corrupção generalizada em todas as camadas da população brasileira. Não são somente os políticos os corruptos no Brasil. Há, sim, uma cultura de corrupção em diversos espaços da sociedade. Policiais corruptos, sonegação de impostos, extorsão, mau uso da coisa pública etc. O que João Batista espera daqueles que o escutam é que sejam bons cidadãos e cumpram a lei. A Lei que, como sabemos da teologia luterana, é o próprio Cristo. Cristo é a lei, e o seu cumprimento só se dá através dele.
Cristo também é o juízo. Seu juízo é mais severo que o de João. É inapelável. Não há a quem recorrer. Como vimos acima, o batismo do Senhor será no Espírito e no fogo. Vida e purificação. Jesus, de um lado, é quem purifica e, de outro, traz a pá e queimará quem não produz bons frutos em fogo inextinguível. João, ao mesmo tempo em que exorta, anuncia o evangelho!
É necessário, fazendo uma leitura atual, saber que esperança é essa que está implícita na espera do Senhor. Por que estamos desesperançados hoje? Muitos refletem sobre o que alguns chamam de pós-modernidade. Esse novo contexto em que vivemos caracteriza-se por uma crise de referências. Perdem-se as referências, os limites, as fronteiras são fluidas, fala-se em liquidez. Vivemos em uma sociedade em que não se sabe quem regula. Não se sabe quem ameaça, quem julga. Não se pode falar de uma moral. Não se pode falar de uma ética. Que lei exerce poder na sociedade da violência? Que medos têm os seres humanos em relação a seu futuro? Tudo é mais difícil de definir. Que esperança Cristo traz para o nosso mundo?
Para visualizar essa reflexão de modo mais claro, apoiamo-nos nos textos recomendados para leitura nesse mesmo domingo: Sofonias 3.14-20 e Filipenses
4.4-7.
O texto de Sofonias é caracterizado como um hino. Ele nos convida a rejubilar, a regozijar e a exultar. Mas por quê? Aqui podemos encontrar pistas para o motivo da nossa esperança. O Senhor afastou as sentenças, anuncia o profeta (v. 15). Em contraposição à ira e ao juízo anunciados por João, Sofonias nos aponta a esperança de que esse Deus se fará logo presente no meio de nós (v. 17). Não mais veremos mal algum, eis que o próprio consolador se fará presente. Nesse sentido, não há porque temer. O Senhor que vem é poderoso para nos salvar (v. 17). Ele se alegrará em nós, não pelo que somos (raça de víboras), mas porque nos renovará em amor (batismo no Espírito Santo). Ele congregará aqueles que estão condenados pela dureza da lei (opróbrios), salvará os que coxeiam (v. 19). Ele fará um louvor e um nome dos que sofrem em toda a terra de “ignomínia” (não reconhecidos como cidadãos). Esses ele fará voltar, recolherá e congregará (v. 20). Essa é a nossa esperança. O Cristo que nascerá em breve mudará nossa sorte. Esse é o motivo da nossa alegria. Não há somente ira e juízo, mas o próprio Deus se encarregará de nos transformar e de nos tornar aptos a dar bons frutos.
Essa é a obra de Cristo que nasce por nós: nos absolve, renova em amor e acolhe.
Se o juízo de Cristo é inapelável, mais severo do que aquele imaginado por João, sob o qual nenhum ser humano pode justificar-se a si mesmo, só se pode compreender que somente Cristo pode transformar-nos (fogo – Espírito Santo – presença entre nós). Ele nos transforma, renovando-nos no amor.
Em Fp 4.4-7, encontramos uma doxologia bastante conhecida. Sabe-se já do motivo da nossa alegria. É esse Cristo que está para nascer! Por isso Paulo recomenda moderação, pois perto está o Senhor (v. 5). Não precisamos ser ansiosos, mas temos de permanecer em oração, fazendo petições e ações de graça (v. 6). É esse o tipo de preparo que se anuncia aos cristãos no Advento! Moderação, sem ansiedade, permanecendo em oração. Nisso consiste o modo de vida cristã diante da esperança que está para nascer. Nessa espera, Cristo nos guardará em paz, dando-nos o necessário entendimento para não nos abatermos na espera, sem medo, sem angústia.
Em tempos de incerteza, como os que vivemos, sem referências, sem saber muito o que dizer do futuro, essa mensagem pode ser um verdadeiro porto seguro para quem navega num mar sem rumo. Talvez essa possa ser uma das tarefas da igreja hoje: reencontrar referências, criar espaços para que as pessoas se sintam seguras. E é justamente esse aspecto que a meditação pode acolher.
Evidentemente, a consciência em relação à iminência da vinda de Cristo sempre nos interpela no aspecto ético. Espera-se uma metanoia constante na vida do cristão. João Batista nos demonstra que não há um status cristão que atribui segurança. A nossa parte na obra de Deus manifesta-se nos frutos que surgem da nossa postura de vida, de nossa atitude em relação a uma sociedade que padece. É nessa sociedade que devemos estar atuantes, alegres e confiantes nas promessas de Deus, mas mostrando ao mundo os frutos desse amor que nos regenera diariamente.
4. Imaginando a prédica
A prédica poderia concentrar-se em discutir a situação atual da perda de sentido, da perda de esperança, apontando para o Advento como um período no qual fazemos esse balanço. Sondamos a nossa situação, colocamo-nos na frente de Deus, sabendo que somos “raça de víboras” que fogem da sua ira. Não conseguimos interagir no mundo demonstrando os frutos bons que Deus espera de nós. Este mundo continua contaminado, perdido, sucumbindo em violência, em corrupção, em desigualdade. Não somos capazes de reverter esse quadro. Por outro lado, alimentamos a esperança nas palavras do profeta Sofonias. A vinda de Cristo é a razão da esperança, porque ele é capaz de operar boas obras através de nós. Ele nos renova, batizando-nos no Espírito, purificando-nos com o fogo. E nossa espera ainda assim permanece sóbria, em alegria, mas com moderação. Advento é tempo de orar, de colocar nossa situação de vida diante de Deus e dar graças, confiantes de que da parte dele vem a nossa esperança.
Essa é uma ideia para darmos fundamento à preparação e à esperança que tanto se pregam no Advento.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia:
Bondoso Deus, chegamos à tua presença neste tempo de Advento. Agradecemos pela esperança e pela possibilidade de pensar em nossas vidas. Pedimos que tu participes desse nosso momento de reflexão e nos mostres qual caminho devemos seguir. Por muitas vezes estamos perdidos e já não sabemos mais em que esperar. Vivemos com medo, ansiosos, sem ter algo em que podemos nos agarrar. Agradecemos porque tu te apresentas novamente como a razão para esperança neste mundo. Dá que possamos nos entregar em confiança à pequena criança que há de vir. Amém.
Bibliografia
FITZMEYER, Joseph A. El evangelio segun Lucas. Madrid: Cristiandad, 1986.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Teológica, 2002.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).