Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Lucas 3.7-18
Leituras: Sofonias 3.14-20 e Filipenses 4.4-7
Autoria: Nilton Giese
Data Litúrgica: 3º Fomingo de Advento
Data da Pregação: 13/12/2015
1. Introdução
O texto de Lucas 3.7-18 foi trabalhado em quatro volumes anteriores de Proclamar Libertação. Tomo essas quatro reflexões como bibliografía de consulta para esta contribuição. Todas elas estão em formato on-line no portal www. luteranos.com.br. São excelentes abordagens teológicas. Ao mesmo tempo, utilizo os cursos bíblicos da Fundación Dialogo, presidida pelo ex-sacerdote católico Ariel Álvares Valdés, da Argentina. Ariel foi um bom colaborador da revista Signos de Vida, do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), da qual tive o privilégio de ser o diretor de 2005 a 2014. No ano de 2008, o então sacerdote Ariel foi condenado pelo Vaticano e silenciado a não dar mais aulas por “não acreditar na existência de Adão e Eva”.
Minha proposta nessa nova tentativa de reflexão sobre Lucas 3.7-18 é destacar a importância que João Batista teve na vida de Jesus. Em que sentido a mensagem e o movimento de João Batista prepararam o caminho para Jesus e seu movimento? Gostamos de pensar que Jesus teve plena consciência desde sua infância de que ele era o Filho de Deus, de que ele havia vindo ao mundo para pregar o reino de Deus e que deveria morrer na cruz para assim salvar a humanidade. Imaginamos também que Jesus sabia que, a partir de determinado momento de sua vida, ele teria que abandonar a carpintaria de seu pai, José, e começar a anunciar a vinda do reino de Deus. Mas as coisas foram assim tão simples? Ou será que Jesus precisou da ajuda de outras pessoas para compreender sua tarefa e sua missão no mundo? João Batista parece ter jogado um papel crucial. Todos sabemos que esse pregador do rio Jordão batizou Jesus. Mas será que a ação de João Batista limitou-se ao batismo de Jesus?
2. Quem era João Batista?
Flávio Josefo foi um historiador do primeiro século da era cristã. É curioso saber que ele dedica mais comentários à atuação de João Batista do que à atuação de Jesus. Flávio Josefo menciona a originalidade do movimento de João Batista: aparece no deserto e, mesmo assim, tem grande capacidade de mobilizar pessoas. As pessoas vão ao deserto para escutá-lo. João inventa o batismo. A água sempre foi um elemento religioso importante para a purificação, e João utiliza-a para chamar pessoas ao arrependimento em nome de Deus. E, por fim, Josefo menciona a novidade do discurso de João Batista ao dizer que praticar a justiça entre as pessoas é mais importante do que fazer sacrifícios a Deus.
No primeiro século, a religião judaica vivia um período de profunda letargia, dominada oficialmente por dois grupos dentro do judaísmo: os fariseus, que eram um partido religioso, e os saduceus, que eram um partido político-religioso.
A situação política opressora que reinava no país, o cansaço moral pela espera de um salvador que não chegava nunca, a vida escandalosa da classe governante (supostamente representante de Deus) e a degradação dos próprios sacerdotes do templo (mais preocupados com seus próprios interesses do que em animar a fé do povo) esfriaram a devoção das pessoas e desanimaram a prática religiosa.
Nesse contexto aparece João, filho de um sacerdote do templo chamado Zacarias. Ele vivia no deserto, levava uma vida austera. Vestia-se com pele de camelo e um cinturão de couro, ao estilo dos velhos profetas, e alimentava-se de insetos e mel silvestre (Mc 1.6). Sua voz espalhou-se como um trovão no tranquilo deserto da Palestina. Com um discurso forte, João Batista enfatizou que ser mais religioso não significava rezar mais e nem correspondia a fazer mais sacrifícios no templo. Ser mais religioso, para João Batista, era ter mais compromisso com as pessoas, praticando a justiça e a misericórdia.
A sua pregação sobre o juízo de Deus assemelhava-se à dos profetas do Antigo Testamento. A novidade de João era que esse juízo de Deus viria com castigo e era iminente. Em pouco tempo, Deus mesmo castigaria com fogo todos os que não se arrependessem de seus pecados (Mt 3.7-12). No entanto, havia ainda uma possibilidade de escapar desse castigo de Deus se as pessoas se arrependessem de seus pecados e se dispusessem a uma mudança de atitude de vida em relação às outras pessoas.
As pessoas que o escutavam ficavam magnetizados por seu discurso. Muitas vinham de longe em busca de seus conselhos. Àquelas que aceitavam seus ensinamentos e se dispunham a essa mudança de vida João pedia que recebessem o sinal do batismo no rio (Mc 1.4-5). Esse batismo não se limitava a um ritual de purificação, como no judaísmo. A novidade era que requeria um arrependimento e uma mudança ética da pessoa. Já não bastava dizer “sou filho de Abraão”. O compromisso do batismo deveria “dar bons frutos” em relação a outras pessoas.
O ministério de João Batista acontecia junto ao rio Jordão. Mas ele não tinha um lugar fixo. Às vezes, instalava-se no tranquilo braço do rio, perto de Betânia (Jo 1.28). Outras vezes, mais ao norte, em “Enom, perto de Salim” (Jo 3.23), na província de Samaria. O evangelista Lucas diz que João andava por toda a região do rio Jordão (Lc 3.3), anunciando sua mensagem. No entanto, ele não ia ao encontro das pessoas, mas as pessoas iam ao encontro dele.
O êxito desse fervoroso pregador foi extraordinário. Era muito difícil ficar indiferente. Muitos jovens que se haviam afastado da religião voltaram a comprometer-se com Deus.
João não pedia nada para ele. Ele também não pregava uma mudança radical nas estruturas sociais e religiosas. O que ele pedia é que cada um fizesse seu trabalho praticando a justiça. Todas as pessoas que batizou ele enviou de volta a seus lugares, somente pedindo que a partir do batismo fossem justas e realizassem boas obras (Lc 3.8-14).
Mesmo assim, um pequeno grupo formou-se ao seu redor. Esse grupo acompanhava seus ritos batismais (Jo 1.28.35-37), ajudava nas pregações (Jo 3.23), recebia ensinamentos mais aprofundados (Jo 3.26-30) e compartilhava da espiritualidade ascética do jejum (Mc 2.18) e da oração (Lc 11.1).
3. Jesus vai ver e ouvir o profeta
Também o jovem Jesus foi atraído pela mensagem de renovação espiritual de João Batista e, por isso, viajou de Nazaré até o vale do rio Jordão para ver e ouvir o profeta. Jesus escutou sua mensagem escatológica, que pode ser resumida em três pontos:
* o mundo (a história) está sob a iminência do juízo de Deus;
* o povo de Israel afastou-se da vontade de Deus e por isso corre o risco de ser consumido pelo fogo do juízo de Deus;
* é necessário mudar de atitude – viver praticando a justiça e a misericórdia – e confirmar essa mudança com o batismo.
Alguns comentaristas afirmam que provavelmente esse encontro com João Batista impressionou tanto o nazareno, a ponto de ter despertado nele sua vocação posterior. O batismo de Jesus fez com que ele abandonasse sua vida silenciosa, que até então ele levara em Nazaré.
Na verdade, sabemos que Jesus aceitou a mensagem de João da mesma forma que muitos outros judeus e que foi batizado por João, como relatam os evangelhos (Mt 3.13-17; Mc 1.9-11; Lc 3.21-22). Conforme os evangelhos sinóticos, no momento do batismo, desceu sobre Jesus o Espírito Santo, proclamando publicamente que Jesus é o Filho de Deus, e que, depois disso, Jesus retirou-se 40 dias para o deserto como preparação para iniciar sua missão de proclamar o reino de Deus. No deserto, vivia também João Batista. Por isso o texto parece sugerir que Jesus – por algum tempo – integrou-se ao grupo de discípulos de João Batista.
Antes de ser batizado por João Batista, Jesus era um desconhecido. No Evangelho de João (1.35-57), ouvimos de dois discípulos de João (André e um anônimo) que reconhecem Jesus como um Mestre e começam a segui-lo. Mais tarde, eles convidam também Pedro e Natanael para seguir o novo Mestre. Dessa forma, reforça-se a suspeita de que todos eles pertenciam ao mesmo grupo de João Batista.
Mais adiante, no Evangelho de João (3.22-4.3), lemos que Jesus e seus discípulos foram para a região da Judeia e ali chegaram a batizar pessoas. João também estava batizando em Enom, perto de Salim, porque lá havia muita água. Alguns discípulos de João tiveram uma discussão com um judeu sobre a cerimônia da purificação. Então eles foram falar com João: “Mestre, aquele homem que estava com o senhor no outro lado do rio Jordão está batizando as pessoas”.
Essa passagem do evangelista João vai na mesma direção ao dizer que, por algum tempo, Jesus foi discípulo de João. Os discípulos de João sabiam que Jesus havia sido batizado por João e que esteve por algum tempo entre o grupo de João. Agora os discípulos veem que Jesus saiu do grupo de João, formou seu próprio grupo e começou a batizar por conta, reunindo seus próprios discípulos e fazendo uma espécie de competição com quem antes fora seu mestre. Somente com esse pano de fundo pode-se entender os sentimentos de frustração e rivalidade do grupo de discípulos que ainda permaneciam com João. Mas Jesus não queria essa rivalidade. Por isso continua o Evangelho de João: Quando Jesus ficou sabendo que ele estava ganhando mais discípulos e batizava mais pessoas do que João, ele saiu da Judeia e voltou para a Galileia (Jo 4.1-3).
Portanto temos aqui três relatos que falam que, no início da vida pública de Jesus, ele também batizou por algum tempo. E que essa prática havia sido inaugurada por seu antigo formador, na época em que ele próprio – Jesus – fazia parte do grupo de João.
Esses personagens que mencionam que Jesus esteve entre os discípulos de João são exclusivos do Evangelho de João. Eles não aparecem nos evangelhos sinóticos. E isso é bem interessante porque, na exegese bíblica, uma das características do quarto evangelho é esclarecer os seguidores de João Batista de que ele não era o Messias, mas que o Messias estava por vir.
A memória de um “Jesus Batista” parece que incomodava a comunidade cristã, a ponto de se dizer em João 4.2: De fato, não era Jesus quem batizava, e sim os seus discípulos. Essa frase parece colocar Jesus da forma mais independente possível de João. No entanto, essa frase posterior contradiz as três referências anteriores, nas quais aparece que Jesus de fato batizava.
Mas quanto tempo Jesus ficou no grupo de João Batista? Ao certo não sabemos. No entanto, não deve ter sido por muito tempo, considerando que a vida pública de Jesus durou somente três anos. Ao que parece, enquanto Jesus esteve no grupo de João Batista, ele descobriu a sua missão. Sentiu que o Pai o chamava para que anunciasse a presença do reino de Deus. Assim, Jesus começou a desenvolver seu ministério de forma independente e com um conteúdo diferente.
4. O movimento de Jesus
Aquilo que separou Jesus de João Batista foi o conteúdo de sua mensagem. Para João Batista, o juízo e o castigo de Deus eram iminentes. A prédica de Jesus, no entanto, não anunciava o castigo de Deus, mas sim a misericórdia e o amor de Deus. Jesus e seus seguidores também mudam de metodologia. Não continuam vivendo no deserto, mas percorrem povoados e cidades. Jesus também tem uma atitude de vida e espiritualidade distinta de João. Não promove o jejum, mas sim comunhão de mesa, comendo e bebendo com os pecadores. Não se refugia no deserto, mas vai ao encontro das pessoas nos caminhos e nos povoados. Dessa forma, surge o movimento de Jesus dos evangelhos. Fica, no entanto, uma pergunta: Jesus realmente precisou de alguém como João Batista que lhe abrisse os olhos e a mente para mostrar-lhe o caminho que deveria seguir?
5. Jesus era Deus e também foi plenamente humano
Certamente, Jesus era Deus. Mas ele também era plenamente humano. E uma das características do ser humano é a lenta assimilação das coisas novas. Jesus parece ter experimentado essa mesma pedagogia, como nos demonstra o Evangelho de Lucas 2.51-52: Conforme crescia, Jesus ia crescendo também em sabedoria, e tanto Deus como as pessoas gostavam cada dia mais dele. Os evangelhos dizem que Jesus era Deus e que dentro dele habitava toda a divindade de Deus. Mas essa infinita sabedoria de Deus para exteriorizar-se deveria passar pelas limitações da compreensão humana.
Pensar que Jesus sabia de todas as coisas com total clareza e perfeição, além de não corresponder aos evangelhos, revela uma concepção simplista do Senhor. Desde que o Filho de Deus se fez ser humano, Deus quis atuar através dele de forma natural, isto é, segundo as características do mundo para o qual havia sido enviado. Por isso Jesus teve fome, sede, sentiu calor, sono, alegrias, tristezas e dúvidas no momento da prisão e crucificação.
Assim como Maria e José foram o fator humano para que Jesus tivesse uma família, assim também parece que João Batista foi o fator humano para que Jesus descobrisse sua vocação. Deus pode falar de muitas maneiras e através de distintas circunstâncias. Se Deus privilegiou esse modo humano de comunicação com Jesus, então deveríamos estar mais atentos às pessoas que nos falam, exortam e advertem. Poderiam ser a voz de Deus, que nos quer orientar no deserto de nossa vida.
6. Imagens para a prédica
O fósforo e a vela
Certo dia, o fósforo disse à vela:
– Minha missão é te acender.
– Ah, não, disse a vela. Tu não vês que, se me acenderes, meus dias estarão contados? Não faças uma maldade dessas!
– Então queres permanecer toda a tua vida assim dura, fria, sem nunca ter brilhado?, perguntou o fósforo.
– Mas ter que me queimar, isso dói. Consome as minhas forças, murmurou a vela.
– Tens toda a razão, respondeu o fósforo, esse é precisamente o mistério de tua vida. Tu e eu fomos feitos para ser luz. O que eu, como fósforo, posso fazer é muito pouco. Mas se passo a minha chama para ti, cumprirei com o sentido de minha vida. Eu fui feito justamente para isto: para começar o fogo. Tu és vela. Tua missão é brilhar. Toda a tua dor, tua energia vai transformar-se em luz e calor.
Ouvindo isso, a vela olhou para o fósforo, que já se estava apagando, e disse:
– Por favor, acende-me.
Bibliografia
Auxílios homiléticos anteriores sobre o texto: DREHER, Carlos A. (PL XVII), BRAKEMEIER, Gottfried (PL XXIII); DREHER, Claus (PL XXIX); BUTTELLI, Felipe Gustavo Koch (PL XXXIV). V
ALDÉS, Ariel Álvares. La vocación religiosa de Jesús de Nazaret. Curso Bíblico de la Fundación Dialogo, Santiago del Estero, Argentina.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).