Ética do arrependimento
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Lucas 3 7-18
Leituras: Isaías 12.2-6
Autoria: Klaus Andreas Stange
Data Litúrgica: 3º Domingo de Advento
Data da Pregação: 12/12/2021
1. Introdução
Que associações nós fazemos quando ouvimos a palavra arrependimento? Será que arrependimento não se tornou uma palavra estranha, quando não constrangedora para nós? Parece-me que há uma tendência generalizada a se compreender arrependimento como se fosse um castigo: algo não deu certo e agora eu sofro as consequências. “Estou arrependido. Mas arrependimento é o preço que preciso pagar por ter sido descuidado”. O objetivo do arrependimento, nesse caso, é tentar consertar, ajustar o que deu errado.
Arrependimento é o tema central da pregação de João Batista. Arrependimento também é tema de destaque para o período de Advento. Advento significa preparar-se para a vinda de Jesus. Portanto estar preparado para a vinda de Jesus implica arrepender-se dos maus caminhos e voltar para os braços de Deus. Significa que reconhecemos e confessamos nossa culpa e nosso pecado diante de Deus – às vezes, também diante de pessoas. Arrepender-se é lamentar, odiar e abandonar o erro e, a partir da fé em Jesus, viver em novidade de vida. A parábola dos dois filhos contada por Jesus em Lucas 15 ilustra o cerne do sentido e significado do arrependimento. Arrepender-se é voltar para a casa do Pai, para os braços estendidos do Pai. Talvez exatamente pelo fato de arrepender-se estar relacionado com um caminho, um processo de volta para casa, temos tantas dificuldades para compreender e viver arrependimento: não estão mais no nosso horizonte a casa do Pai, os braços estendidos de Deus, a festa no céu preparada pelo Pai por causa de um pecador que se arrepende. Para muitas pessoas, essas imagens soam como pura especulação, como uma fé ingênua. Por isso a prédica deste domingo deverá acentuar, destacar que arrependimento não é castigo, mas é ter saudades da casa do Pai, é voltar para casa, para os braços estendidos do Pai.
2. Exegese
Contexto (v. 1-2) – Quando observamos o contexto da perícope, fica bem evidente a pesquisa histórica que Lucas desenvolve para escrever o seu evangelho. Objetivo do evangelista é demonstrar o agir de Deus em meio à história humana. Por isso ele destaca o fato de a nossa história ser transversalizada pelo agir de Deus. Lucas menciona representantes/ícones do poder político e religioso no início do capítulo. A interferência de Deus na história humana é destacada na expressão […] veio a palavra do Senhor a João, filho de Zacarias. Os poderosos deste mundo exercem seu domínio e poder, mas não concorrem com o agir soberano de Deus, que vocaciona João como seu porta-voz. João é apenas uma voz que clama no deserto. Ele apenas prepara o caminho. O servo de Javé, o Messias, ainda vem.
Ministério (v. 3-6) – O ministério de João Batista é descrito com uma citação do profeta Isaías (capítulo 40). Num anúncio de restauração do povo de Israel que se encontrava no exílio, ele descreve a construção de um caminho que se estende da Babilônia até Jerusalém. Na construção desse caminho, que atravessa o deserto, os montes são nivelados e os vales, aterrados. Interessante observar que, em analogia ao caminho, Lucas cita João Batista. No Evangelho, não é mais um caminho que atravessa o deserto, mas o próprio João se encontra no deserto. Em outras palavras: Israel deveria preparar-se para a salvação de Deus do exílio na Babilônia; os povos deveriam preparar-se para a vinda do Messias; também nós precisamos nos preparar para a vinda de Jesus.
Mensagem (v. 7-9) – João Batista pode ser equiparado a um profeta que anuncia juízo. O juízo de Deus está próximo. A raiz da árvore (árvore como imagem que representa Israel) já está exposta. O machado já foi levantado. É uma questão de segundos para que o juízo de Deus tenha início. Por isso a urgência do arrependimento.
Em seu chamado à conversão, João Batista aniquila todo e qualquer argumento de autojustiça que uma tradição piedosa pudesse promover. O piedoso corre o perigo de se fiar nas bênçãos de Deus (Gn 12.1ss; 15.1ss; 17.1ss). Se necessário, Deus é capaz de suscitar filhos a partir de pedras! (No aramaico as palavras rimam: abanim = pedras e banim = filhos). Ele não depende de seu povo eleito (v. 8). O chamado é para que todos produzam frutos como resultado de um arrependimento sincero e genuíno. A prédica de João desafia seus ouvintes a assumirem um novo estilo de vida, que corresponda ao intento de Deus. Só assim a árvore não será derrubada.
Ética (v. 10-14) – Nos versículos 10-14, diversos grupos de pessoas questionam João Batista a respeito da ética do arrependimento. Três vezes encontramos a pergunta: O que devemos fazer?. A pergunta é absolutamente fundamental! A pergunta expressa, busca pelas consequências que a prédica deve ter na nossa vida. (Cf. a reação dos ouvintes da pregação de Pedro em At 2). A resposta de João Batista parece óbvia. Ele remete aos Dez Mandamentos: Ama o próximo como a ti mesmo (Dt 15.11; Mq 6.6ss). Nada mais é exigido.
Também aos publicanos e soldados João responde o “óbvio”. É interessante observar que João Batista não questiona a profissão de cobrador de impostos ou de soldado romano. A resposta de João Batista não possui conteúdo revolucionário. Pelo contrário: cobradores de impostos deveriam ser justos e os soldados deveriam exercer seu ofício corretamente, sem violência gratuita. Isso é suficiente para expressar frutos do arrependimento? Como se expressa a fé cristã numa ética do dia a dia? Essas são questões que a prédica poderia abordar.
Evangelho (v. 15-18) – O final da perícope aponta para o núcleo do evangelho: a pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Jesus se manifestam a salvação (batismo com o Espírito Santo) e o juízo (batismo de fogo, limpa a eira, junta o trigo, mas queima a palha (Sl 1)).
Análise de detalhes
A prédica de João Batista é poderosa. Multidões saíram para o deserto a fim de ouvir sua mensagem. Elas querem ouvir a palavra de Deus e vivenciar sua presença. A prédica de João conecta com o anúncio de um profeta veterotestamentário. Veio a palavra! Isso denota que a palavra de Deus é evento! Algo acontece! Céus e terra se movem. No deserto, Deus prepara um caminho. Montes são aplainados e vales são aterrados. Deus constrói um caminho até nós! Essa imagem impactante do profeta Isaías é ressignificada. É chegado o tempo de Deus intervir na história humana. Na perspectiva de João Batista, Deus vem para julgar o mundo. Também nesse sentido, na linguagem do juízo, João conecta com os profetas do AT. Arrependei-vos, o Reino de Deus está próximo! Deus vem para julgar.
Esse chamado ao arrependimento ainda faz sentido para nós? Não seria o caso de tratar-se de uma mensagem ultrapassada e esquecida? Note que o chamado ao arrependimento não constitui apenas a mensagem de João Batista, mas do próprio Jesus! (Mc 1.15). Também nas parábolas de Jesus o apelo ao arrependimento é evocado (Mt 7.24-27; Mt 21; 24; 25). Portanto não há razão para que o chamado ao arrependimento seja sonegado aos ouvintes. Mas no que consiste a diferença entre a prédica de João e Jesus? Em outras palavras: o que aconteceu com o machado, com o fogo do juízo? No Evangelho de João, o apóstolo apresenta Jesus com as palavras: Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). Portanto não é o machado, mas o cordeiro que traz salvação para o mundo. O juízo que João anuncia de fato veio: na cruz de Jesus, Deus dá o seu veredito e julga o pecado da humanidade.
3. Meditação
Procure refletir sobre o sentido e o impacto que o apelo de João Batista exerceu sobre seus ouvintes originais: Arrependam-se, mudem a sua vida, produzam frutos que demonstrem o arrependimento de vocês.
Arrependimento é o cerne da mensagem de João Batista. Ele vê e percebe como as pessoas estão se perdendo. Ele percebe seus conterrâneos como pessoas que vivem sem orientação. A começar pelas autoridades políticas e religiosas, ele anuncia sua mensagem para dentro de um contexto em que os mandamentos de Deus tinham pouco valor e significado. O povo humilde era explorado. As pessoas gemiam sob a opressão e a violência militar. Também gemiam sob a carga opressora de impostos que eram cobrados pelos publicanos. Interessante que João não faz um chamamento a que publicanos e soldados mudem sua profissão! Isso era um escândalo! “Não é a profissão que corrompe o ser humano, mas o ser humano alienado de Deus é que corrompe a profissão” (Karl-Heinrich Rengstorf). O medo espalhava-se de forma generalizada. Para dentro dessa realidade social, política e religiosa, João Batista faz ecoar seu apelo ao arrependimento. Voltem para Deus, porque de Deus não se zomba. O juízo de Deus está diante da porta.
A iminência do juízo descrita por João na imagem do machado pronto para derrubar a árvore apenas reforça a urgência e a necessidade da mudança de vida. É como se Deus não tivesse mais paciência com o seu povo impiedoso. Todos vivem em alienação de Deus, como se não precisassem prestar contas diante de Deus. O juízo de Deus é anunciado a um mundo que vive sem Deus.
Essa geração que vive “de costas” para Deus é chamada por João de “raça de víboras”. Raça de víboras foi o adjetivo que João deu aos líderes religiosos de Jerusalém. Sábado após sábado eles se encontravam na sinagoga, achando que, assim como uma serpente, seriam capazes de ser esgueirar e escapar do juízo de Deus. Pensavam que conseguiriam camuflar e enganar o próprio Deus. Tal qual os líderes religiosos nos dias de João, o que seriam expressões contemporâneas de autojustiça? No que os membros de nossas comunidades se fiam na tentativa de escapar do juízo de Deus? Fiam-se em seu batismo? No fato de terem sido confirmados? No fato de participarem da igreja? Especialmente aos que vivem na justiça própria, João dirige seu apelo: “Arrependam-se”. “Arrependam-se ainda antes do Natal. Não se enganem: Deus não é uma marionete, não é um velhinho de bengala sentado em uma poltrona no céu. Deus está próximo de nós e nos leva muito a sério.” O chamado ao arrependimento é um chamado dirigido a todos nós.
Vale destacar que Jesus não modifica o conteúdo da prédica de João Batista. Pelo contrário, Jesus repete o mesmo apelo de João: Arrependam-se, voltem para Deus, o reino de Deus está próximo. Mas aqui está a diferença entre João Batista e Jesus: quem tem um encontro com Jesus, não pode diferente, senão retornar aos braços do pai. A pessoa que ouviu o chamado de Jesus tem a sua vida transformada. (Confira o que aconteceu com o Zaqueu.) Quem tem um encontro com Jesus experimenta mudança de vida, porque o juízo que deveria nos alcançar já queimou e foi colocado sobre Jesus na cruz. Ele tomou a nossa culpa sobre si, para que nós pudéssemos retornar aos braços do Pai.
Arrepender-se, voltar para casa do Pai tem implicações, consequências. Essa reviravolta se torna perceptível no entorno social da pessoa. A maneira como nos relacionamos com o nosso próximo testemunha que encontramos os braços do Pai. Quem tem duas capas, dê uma capa a quem não tem. As pessoas que estavam ali ao redor de João, nas margens do rio Jordão, não eram pessoas ricas. Havia gente humilde, empobrecida, que talvez não tivesse o mínimo para garantir sua dignidade humana: uma capa para se cobrir durante a noite. Aquela pessoa que teve um encontro com Jesus, que voltou aos braços do Pai, essa pessoa é capaz também de ver e perceber o próximo que está ao seu lado. (Quem são as pessoas invisíveis em nossa sociedade?) Quem pergunta por Deus, a esses os olhos são abertos para a miséria e a necessidade do seu semelhante. O que poderiam ser formas concretas de doação nesse tempo de Advento que antecede o Natal? Poderíamos doar parte do nosso tempo? Poderíamos compartilhar nossa fé em Jesus com pessoas que vivem cheias de dúvidas e na resignação? Quais seriam formas pelas quais nossa comunidade de fé poderia testemunhar e dar provas de uma vida em arrependimento? Poderiam as nossas comunidades ser comunidades nas quais se manifestam a graça de Deus, uma atmosfera terapêutica, acolhedora; comunidades nas quais prevalece a equidade e não a competição?
4. Subsídios litúrgicos
1. A imagem do padre e artista Sieger Köder, que apresenta João Batista no centro do quadro, pode ser usada como ilustração e meditação na prédica. João se encontra no deserto. Atrás dele, o caminho aberto por Deus no deserto – em referência a Isaías 40. Com a mão direita João batiza uma pessoa e com a esquerda aponta para cima, em paralelo ao caminho aberto por Deus, apontando para aquele que há de vir. Link: .
2. Oração: Senhor, tu vens a nós. Tu abres um caminho através do deserto e vens ao nosso encontro. Tu desceste do céu e te tornaste gente. Nós te agradecemos e, em reverência, te adoramos! Ajuda-nos a nos voltar para ti. Permite que possamos ouvir tua voz de forma nova. Permite que possamos ver as pessoas ao nosso redor como tu as vês. Que neste tempo de advento possamos experimentar o teu mover entre nós e que possamos ser conduzidos a ti e ao nosso próximo. Assim, abençoa o nosso culto. Amém.
3. Arrependimento: reflexões no site Luteranos. Link: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/arrependimento>.
4. Arrependimento, confissão e absolvição em documentos confessionais da IECLB. Link: <https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/presidencia/confissao-e-absolvicao>.
Bibliografia
HERBST, Michael. Die Stunde des Johannes. Zuversicht und Stärke, Holzgerlingen: SCM, v. 3, n. 1, p. 15-23, 1998.
LÄMMER, Stefan. Die Botschaft von Gericht richtet das Volk Gottes neu auf Gott aus. Zuversicht und Stärke, Holzgerlingen: SCM, v. 3, n. 1, p. 25-33, 2010.
TEICH, Volker. Umkehren in die offenen Arme Gottes. Zuversicht und Stärke, Holzgerlingen: SCM, v. 3, n. 1, p. 21-29, 2004.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).