Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Lucas 4.1-13
Leituras: Deuteronômio 26.1-11 e Romanos 10.8b-13
Autor: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 17/02/2013
1. Introdução
O cotidiano precisa ser interrompido por datas e tempos especiais. Assim é a vida, assim também é a liturgia de nossas igrejas. Estamos no início de um desses tempos especiais: a Quaresma.
O foco da Quaresma é a preparação da Páscoa. No horizonte, portanto, está a luz que já brilha e intensificará seu fulgor nos dias da Páscoa, que celebraremos depois dos quarenta dias de subida com Jesus a Jerusalém.
O texto do evangelho, sobre as tentações de Jesus, é uma espécie de resumo de sua vida dedicada ao projeto libertador do Pai. Ele lembra que foi o Espírito quem conduziu Jesus pelo deserto e que a caminhada foi cheia de armadilhas e dificuldades. Mas Jesus, com a luz e a força das Escrituras, venceu toda a tentação daqueles que tentavam afastá-lo de seus compromissos e seus sonhos.
Já nos tempos idos do povo de Israel, a tentação de esquecer-se do Deus libertador e de suas exigências era bem real. Por isso, no livro do Deuteronômio, prescreve-se uma celebração de memória histórica, cuja finalidade era prevenir contra as tentações da injustiça social. A Quaresma também é uma celebração de memória, a memória dos acontecimentos que culminaram na morte/ressurreição de Jesus. E, na espiritualidade de Paulo, é justamente essa memória de Jesus, assumida em palavras e assimilada na profundidade do coração, que nos salva de todas as seduções que possam conduzir-nos ao fracasso de nossas vidas.
2. Exegese
O relato da tentação de Jesus encontra-se firmemente estabelecido nos evangelhos sinóticos (Mc 1.12-13; Mt 4.1-11; Lc 4.1-13), mas não se encontra em João. O lugar do relato é após a teofania relacionada ao batismo de Jesus por João e antes do início de seu ministério. Todos mencionam o Espírito, que conduz ou impele Jesus, e o deserto, lugar onde Jesus é tentado. Obviamente, afirmam a vitória de Jesus sobre o tentador, embora Marcos apenas a subentenda. Em Mateus e Lucas, nas três tentativas do tentador, Jesus recorre às Escrituras para enfrentá-lo; o tentador faz o mesmo numa das tentações.
Detalhes importantes diferenciam as narrações sinóticas. Marcos fala que Jesus foi tentado por Satanás ao longo dos quarenta dias em que permaneceu no deserto, mas não apresenta tentações específicas; não menciona o jejum referido em Mateus e Lucas; ao contrário, diz que os anjos serviam Jesus e que Ele vivia entre as feras. Mateus destaca o jejum de quarenta dias e quarenta noites, jejum que resulta em fome, e essa, por sua vez, apresenta-se como ocasião favorável ao tentador. Lucas radicaliza o jejum (embora não use a palavra, diz que Jesus nada comeu nesses dias), mas dá destaque ao fato de Jesus ser conduzido pelo deserto durante quarenta dias e ser tentado pelo diabo durante esse tempo. A fome que resultou do jejum é ocasião para o diabo iniciar as tentações especificadas no texto, mas essas não seriam as únicas, pois já durante os quarenta dias Jesus foi sendo tentado pelo diabo. Há diferença entre Mateus e Lucas quanto à sequência das tentações: a segunda e a terceira encontram-se em sequência invertida, sendo que Lucas faz culminar as tentações em Jerusalém, o que combina com sua visão da história da salvação e a lógica de sua obra em dois livros: Lucas e Atos.
Lucas acentua que Jesus era conduzido “através do (pelo) deserto”, “pleno (cheio) do Espírito”, enquanto nos outros sinóticos Ele é simplesmente levado ou impelido para o deserto pelo Espírito. O fato de ser conduzido através ou pelo deserto dá um dinamismo a seu relato. Ele também ressalta a relação de Jesus com o Espírito, característica de sua obra (Lucas e Atos).
O final do relato também diferencia Lucas: ele conta que o diabo esgotou, por ora, suas possibilidades de tentar Jesus, mas isso não será definitivo, pois viria ainda um tempo oportuno. Qual será esse tempo? Trata-se do tempo da paixão e morte de Jesus, momento alto no qual Jesus será conduzido pelo Espírito e superará toda a tentação. Constatados esses dados, convém fazer uma leitura dos mesmos.
O primeiro dado é a relação do Espírito (Santo) com o acontecimento. Nos três sinóticos, não é o diabo que leva Jesus para o (ou pelo) deserto, mas o Espírito. Mateus diz que o Espírito conduziu-o ao deserto para ser tentado pelo diabo. Já Lucas dá a entender que o fato de Jesus ser conduzido pelo deserto foi apenas a ocasião para ser tentado pelo diabo. Portanto foi o Espírito que conduzia Jesus pelo deserto, e o diabo entrou na história.
Lucas afirma que Jesus “voltou do Jordão” (4.1) e que “era conduzido pelo Espírito através (pelo) deserto”. Não diz, portanto, que o Espírito o levou para o deserto. Tem-se a impressão de que Ele já estava no deserto antes de ir ao Jordão e que para o deserto voltou. O deserto pode estar expressando, então, o ministério de Jesus, visto na ótica bíblica do Êxodo. De fato, é opinião muito aceita que, no relato da tentação (ou das tentações) de Jesus, o deserto é uma evocação da caminhada dos hebreus pelo deserto durante quarenta anos. Esses quarenta anos pelo deserto foram um tempo sagrado, durante o qual Deus esteve muito próximo de seu povo e o conduziu, mas foi também um período em que o povo foi tentado e não resistiu à tentação de infidelidade ao Deus libertador e a suas promessas de terra e vida.
A caminhada que Jesus inicia é apresentada por Lucas como uma nova edição do Êxodo bíblico. Só que, agora, o diabo não tem sucesso em suas tentativas de desviar Jesus do caminho que se propôs percorrer. Os quarenta dias de tentação e as tentações específicas referem-se, portanto, mais a todo o ministério de Jesus do que a um período determinado de sua vida. O jejum é o conjunto de exigências do compromisso assumido. As tentações são as propostas ditadas pela ideologia da sociedade excludente, propostas essas arraigadas nas pessoas em geral e também nos próprios discípulos de Jesus.
No relato de Lucas, percebe-se também uma relação entre Jesus e Adão. Entre a teofania do batismo e as tentações Lucas interpõe a genealogia de Jesus, que termina em Adão, filho de Deus. Vencedor sobre as tentações, Jesus é apresentado como novo Adão e, ao mesmo tempo, novo Israel.
A primeira tentação (4.3-4) representa as soluções individuais, imediatistas e milagreiras dos problemas do povo, como o da fome. Embora Jesus tenha se mostrado sempre muito atencioso para as situações individuais de doenças ou outras dificuldades das pessoas, Ele não se deixou limitar por essas ações. Para Ele, era claro que “não se vive somente de pão” (4.4), que o horizonte tem de ser maior e que o pão virá como consequência da fidelidade ao projeto de Deus.
A segunda tentação (4.5-8) expressa a sedução dos pactos com os poderosos. Esses podem encurtar, aparentemente, os caminhos para resolver tantos problemas. Mas cobram muito caro por isso. O preço parece ser apenas simbólico, mas, na verdade, representaria “rabo preso” que silencia qualquer profeta. Jesus novamente faz seu discernimento com base na Escritura: “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”.
A terceira tentação (4.9-12) pode representar uma religiosidade irresponsável: jogar-se do pináculo do templo, na ingênua confiança de que Deus vai colocar a mão por baixo. O diabo agora usa a Bíblia para tentar convencer Jesus. Ele se faz de piedoso, faz de conta que se identifica com a fé bíblica. Jesus rebate firmemente com outra parte da Escritura: “Não porás à prova o Senhor, teu Deus!” Ao contrário da leviandade proposta pelo diabo, Jesus enfrentará em Jerusalém sua morte na cruz, expressão maior de sua fidelidade ao projeto libertador para o qual se sentiu chamado.
3. Meditação
A caminhada para a Páscoa que fazemos na Quaresma é um tempo de graça, um tempo de experiências que nos podem fazer crescer. Nele, somos preparados para confrontar-nos com os momentos mais dramáticos e mais reveladores da vida de Jesus, os dias de sua Páscoa. Talvez até tenhamos medo do brilho desses dias.
A Quaresma é também um tempo em que somos mais confrontados com os desafios de nossa caminhada de seguidores e seguidoras de Jesus. Quando a vida se explicita em maior profundidade, temos diante de nós a possibilidade de compreendê-la melhor, de admirá-la mais e de nos comprometer com suas ricas perspectivas; mas também percebemos melhor os desafios que ela representa e fazemos a experiência da tentação de fugir ou de desviar-nos por atalhos. O tempo de caminhada para a Páscoa faz-nos experimentar tanto essa possibilidade como esse risco.
O ministério de Jesus foi uma grande Quaresma. Nela foi aparecendo, aos poucos, a dimensão dos desafios enfrentados por causa da missão de realizar o sonho de Deus, isto é, de “evangelizar os pobres… proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista…” (Lc 4.16-21). Nessa missão, ou nesse deserto, Jesus entrou “pleno (cheio) do Espírito Santo” e foi conduzido por esse mesmo Espírito. Os frutos dessa missão não demoraram a aparecer, de modo que as pessoas ficavam admiradas e diziam que Deus tinha vindo visitar o seu povo (Lc 7.16).
Mas essa Quaresma de Jesus também teve seus percalços. Desde a aurora de sua missão, Ele experimentou a rejeição por parte de autoridades de sua religião e de pessoas às quais queria bem. O sucesso no meio do povo simples exigia muito discernimento para evitar o populismo e o apelo às saídas simplesmente individuais e milagreiras. A “pedagogia da cruz”, praticada pelos romanos, intimidava muita gente, e Jesus deve ter se questionado muito sobre os riscos que corria com suas práticas ousadas. Portanto, nessa Quaresma da vida de Jesus, manifestaram-se as coisas mais bonitas e profundas, mas apareceu também o risco de pôr tudo a perder.
O culto do primeiro domingo na Quaresma coloca-nos diante dessa dupla perspectiva: estamos por experimentar as coisas mais bonitas e radicais, mas estamos também rodeados dos perigos de achar tudo muito difícil, complicado e impossível. Nesse caso, estaremos tentados a ceder à lógica do “salve-se quem/ puder”, do “guerra é guerra”, do “cada um por si e Deus por todos”.
Somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito Santo através do deserto de nossa vida e da caminhada de nossa comunidade durante os quarenta dias da Quaresma e também durante os simbólicos “quarenta dias” de nossa vida. Não comer nada nesses dias pode significar que estamos focados inteiramente em nossa missão, que tem suas exigências. E isso pode provocar fome, ou seja, pode causar-nos uma sensação de que tudo é muito difícil e exigente. Então podem aparecer tentações de todo tipo: tentação de desanimar, de ser exigente ou intolerante com os outros, de exigir que a comunidade esteja apenas a nosso serviço, de construir nossa própria imagem de Deus ou de nos deixar corromper pelo poder para resolver tudo ou ainda de fugir para uma religiosidade milagreira e sem compromisso. As tentações na travessia do deserto, portanto, podem ser muitas, e elas aparecem mais fortemente quando se jejua ou, na linguagem de Lucas, quando nada se come, o que pode significar quando se vai fundo nas opções assumidas.
Quem poderá nos socorrer na hora dessas tentações? Entre as diversas possibilidades, as leituras bíblicas deste domingo apontam o recurso à palavra de Deus. Jesus indica a pista por onde podemos andar para encontrar as luzes e forças de que necessitamos. Nas três tentações do relato de Lucas, Jesus recorre às Escrituras para defender-se do diabo e firmar-se no rumo que se propôs seguir. A Carta aos Romanos lembra que “a palavra está perto de ti” e que, se a fé for concreta e sincera, “serás salvo” (Rm 10.8-10). Também o texto de Deuteronômio para o culto de hoje (Dt 26.1-11) é um apelo para que a memória das ações libertadoras do Senhor Deus se perpetue ao longo das gerações. Mas há um detalhe que intriga no relato do evangelho: o diabo também recorre às Escrituras e reúne argumentos que parecem razoáveis para Jesus aderir à sua proposta mirabolante. E, mais uma vez, Jesus indica o caminho a seguir no emaranhado da interpretação da Bíblia: não se pode isolar uma parte da Escritura, de modo que contradiga o seu cerne. Jesus contrapõe ao diabo um critério maior: “não porás à prova o Senhor, teu Deus”.
4. Imagens para a prédica
Para animar estudantes que estão iniciando um curso, podem ser trazidas pessoas que já concluíram esse curso para contar aos ingressantes o que vivenciaram durante os anos de estudo, como superaram as dificuldades e o que estão fazendo hoje. O depoimento de quem já passou por esse deserto anima quem está começando. Os ingressantes tomam coragem para fazer o jejum necessário. Quando, porém, as dificuldades aparecerem com fisionomias concretas, a memória do testemunho daqueles que já passaram por situações semelhantes poderá dar força e será capaz de iluminar o momento crítico.
Outra imagem põe em evidência a força da palavra de Deus, que desafia qualquer lógica: num velório de um jovem que morreu sem que se tivesse descoberto a causa, diante dos familiares e de pessoas amigas consternadas, começou- -se a cantar “O Senhor é meu pastor e nada, nada me faltará…” A morte de familiares ou pessoas amigas, ainda mais quando parece incompreensível e absurda, não deixa de ser um momento de sérias tentações. A palavra de Deus pode ser uma luz e uma força muito grande no meio da crise. Mas é preciso cuidar para não usá-la com cinismo, como o diabo fez com Jesus.
5. Subsídios litúrgicos
Durante o culto, em momento oportuno, poderá ser feita a seguinte oração: Ó Deus, por meio de teu Filho Jesus nos ensinaste a orar: “não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”. Olha, agora, teus filhos e filhas aqui presentes e escuta sua prece confiante:
P.: Quando o seguimento de Jesus se tornar exigente,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Quando a lógica do poder e da riqueza nos seduzir ou oprimir,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Quando quisermos exigir tudo de ti e lavarmos as mãos diante dos males do mundo,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Nos momentos decisivos de nossa vida,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Nos períodos de maior sucesso,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Na infância e na juventude,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Na idade adulta e avançada,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
P.: Em toda a nossa vida e na hora de nossa morte,
R.: Não nos deixes cair em tentação.
Pai Nosso que estás no céu…do monte e as bem-aventuranças.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).