Prédica do Culto de Abertura do XXXI Concílio da Igreja – Curitiba/PR
Lucas 4.14-21
Pastor Dr. Nestor Paulo Friedrich
“Que a graça e a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo esteja conosco hoje e sempre. Amém!”
Estimada Comunidade de Irmãos e Irmãs na fé em Jesus Cristo!
Há 48 anos, nos dias 22 a 25 de outubro de 1970, acontecia aqui em Curitiba o 7º Concílio Geral da IECLB. O tema desse Concílio foi: “Enviados para o mundo”. Este tinha sido também o tema da Assembleia da Federação Luterana Mundial, que deveria ter acontecido 5 meses antes, na cidade de Porto Alegre / RS, mas foi transferida para Evian, na França, em função da grave situação política reinante no Brasil, consequência da ditadura militar desde 1964, e que se refletia diretamente no desrespeito aos direitos humanos, à existência de presos políticos, do exílio e da tortura. Desse concílio nós herdamos o documento chamado “Manifesto de Curitiba”. Nele, a IECLB afirma e assume a sua responsabilidade social em relação ao país, defende a separação de Igreja e Estado, a clareza quanto ao caráter do culto cristão e a defesa dos direitos humanos. O Manifesto constata igualmente, à luz do tema estudado neste Concílio: “Enviados para o mundo”, a necessidade da tarefa evangelizadora da IECLB.
Hoje, 48 anos depois, nos dias 17-21 de outubro de 2018, estamos nós aqui em Curitiba! Somos a comunidade das comunidades da IECLB, parte da Igreja de Jesus Cristo, para realizar o 31º. Concílio da Igreja.
Neste ano de 2018, os trabalhos na IECLB são articulados pelo Tema Igreja – Economia – Política! E o Tema é acompanhado pela palavra bíblica proveniente do 1º mandamento: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão; não terás outros deuses diante de mim” Lembremos: Esse lema bíblico provém de um contexto em que a religião joga um papel tão importante quanto no contexto brasileiro atual: quem é o Deus ao qual rendemos culto? Afinal, da compreensão de quem é o Deus ao qual rendemos culto derivam nossas convicções e nossa conduta em relação ao contexto do qual somos parte.
Desde o Antigo Testamento Deus se apresenta como Deus que se encarna na história de seu povo, que busca o ser humano, lhe dirige sua palavra carregada de promessa que cria as bases para a esperança.
Em Êxodo 3.7-9 Deus vê seu povo sendo maltratado. Deus ouve seu pedido de socorro. Sabe que seu povo está sofrendo, e sua compaixão não lhe permite ficar indiferente. Por isso, Deus desce para tirar sua gente daquela realidade. E, com grande poder, Deus liberta! Deus é Deus que se encarna na história do seu povo e não é conivente com situações de opressão e destruição, tanto de pessoas como de sua criação.
Séculos mais tarde, num ato de empatia e compaixão, Deus, em Jesus Cristo, se torna um de nós e, pelo caminho da reconciliação, cria comunhão em comunidade!
O texto bíblico do evangelho de Lucas, que ouvimos, nos remete aos inícios da missão de Jesus Cristo. Ali estão as coordenadas do projeto de salvação de Deus para a humanidade.
Jesus está na Galileia. De lá ele inicia sua jornada que vai culminar em Jerusalém. Convido a que nos transportemos para o 1º século, para a Galileia, a terra de Israel, também chamada Palestina!
O Espírito Santo estava com Jesus. As notícias a seu respeito o antecediam. Ele ensinava nas sinagogas e era elogiado (Lc 4. 14-15). Da Galileia Jesus se coloca a caminho para sua terra natal, Nazaré, uma cidade de 400 a 1000 habitantes.
Esse caminho era feito quase que exclusivamente a pé. Em dias muito quentes, caminhava-se em torno de 15 km.
Eram tempos difíceis! Desde o ano 63 a. C., quem mandava na terra de Jesus eram os romanos! A realidade social estava deteriorada. Marcos 6.34 escreve que “viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-se deles, porque eram ovelhas que não tem pastor”. E começou a ensinar-lhes muitas coisas.
Em Mateus 20.25, Jesus orienta seus discípulos a não reproduzirem a prática política vigente: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre vós. Não é assim entre vós. Quem quer ser grande que sirva”.
Quanto à economia, os tributos impostos pelos romanos pesavam muito sobre a população e tinham gerado grave empobrecimento. Detestável era, por exemplo, a figura do publicano cobrador de impostos, como Zaqueu.
Escandalizava a cumplicidade de judeus poderosos, principalmente saduceus, da elite religiosa com a dominação estrangeira! Também isto contribuiu para acirrar o clima político, social e religioso latente.
Um contexto tão adverso alimentava muitas esperanças. Uma delas, cultivada há séculos, tinha a ver com a expectativa do Messias que viria para restaurar o reino de Davi.
Os fariseus, inspirados em Isaías 9,5ss, desenvolveram uma expectativa bastante popular! Criam que haveria de chegar o dia em que um descendente do Rei Davi lideraria o povo para a libertação, instaurando um reinado de justiça.
Jesus se insere nessas tradições do Antigo Testamento! Jesus era judeu, filho de seu povo e de seu tempo.
Como ouvimos, Jesus foi para a cidade de Nazaré, onde havia crescido. E é para lá que nós vamos! Eu quero convidar você para nos juntarmos àquela comunidade reunida para ouvir Jesus!
LUCAS 4.16-19
Jesus se levantou para ler as escrituras Sagradas! 17 e lhe deram o livro do profeta Isaías. Ele abriu o livro e encontrou o lugar onde está escrito assim:
18 “O Senhor me deu o seu Espírito. Ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos 19 e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo. 20 Jesus fechou o livro, entregou-o para o ajudante da sinagoga e sentou-se”.
Como esta palavra de Jesus, neste momento brasileiro, bate no seu coração? Você consegue escutar com coração aberto, ser sensível para os lamentos de dor e de esperança daqueles e daquelas que são o alvo da missão de Jesus?
Com os sentimentos que hoje carregamos no coração, você consegue olhar com os olhos de Deus, para onde Deus em Jesus Cristo está olhando? Você consegue acompanhar Jesus nessa missão? Você consegue olhar, não fechar os olhos, para as diferentes situações em que a vida dói? Conseguimos aguentar a compaixão de Deus que tem como alvo pessoas fragilizadas, excluídas, que, desde a nossa perspectiva e preconceitos talvez, nem deveriam ser merecedoras da sua compaixão? [boa pausa!]
Todas as pessoas ali presentes olhavam para Jesus sem desviar os olhos. Então ele começou a falar. Ele disse:
– Hoje se cumpriu o trecho das Escrituras Sagradas que vocês acabam de ouvir.
Em Jesus Cristo se cumpriu a promessa do profeta Isaías 9. O Conselheiro maravilhoso, Deus poderoso, o príncipe da paz, está diante de vocês – é o que Jesus disse em Nazaré! Hoje, aqui em Nazaré, após séculos de espera ardente, cumpre-se a promessa! Após muitas expectativas, a palavra se cumpriu! Segundo o Evangelista João, o verbo se tornou carne e habitou entre nós!
Para nós, a representação mais concreta da presença de Deus é a cruz [apontar a cruz]: o instrumento de tortura usado pelos romanos para eliminar seus inimigos: ali está Deus, o Cristo crucificado e ressurreto.
Segundo Jesus, a promessa se cumpriu. Mas não é o que boa parte dos seus ouvintes compreendeu! Vejamos.
22 Todos começaram a elogiar Jesus, admirados com a sua maneira agradável e simpática de falar, e diziam: – Ele não é o filho de José?
23 Então Jesus disse: – Sem dúvida vocês vão repetir para mim o ditado: “Médico, cure-se a você mesmo.” E também vão dizer: “Nós sabemos de tudo o que você fez em Cafarnaum; faça as mesmas coisas aqui, na sua própria cidade.”
24 E Jesus continuou:
– Eu afirmo a vocês que isto é verdade: nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra. 23 Eu digo a vocês que, de fato, havia muitas viúvas em Israel no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três anos e meio, e houve uma grande fome em toda aquela terra. 26 Porém Deus não enviou Elias a nenhuma das viúvas que viviam em Israel, mas somente a uma viúva que morava em Sarepta, perto de Sidom. 27 Havia também muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi curado. Só Naamã, o sírio, foi curado.
[Tanto Naamã, quanto a viúva de Sarepta (v.26) eram não-judeus. Ao falar sobre eles, Jesus dá a entender que Deus também ama e cuida dos não-judeus.]
28 Quando ouviram isso, todos os que estavam na sinagoga ficaram com muita raiva. 29 Então se levantaram, arrastaram Jesus para fora da cidade e o levaram até o alto do monte onde a cidade estava construída para o jogar dali abaixo. 30 Mas ele passou pelo meio da multidão e foi embora. 31 Então Jesus foi para Cafarnaum, uma cidade da região da Galileia.
Definitivamente, Jesus não se enquadrou nas expectativas messiânicas dos seus conterrâneos! Havia grupos que inclusive apostavam no uso da violência. Em meio ao contexto polarizado, às perspectivas religiosas e nacionalistas dos conterrâneos de Jesus, em meio aos preconceitos construídos entre os diferentes grupos, a afirmação de Jesus apenas acirrou as tensões. Não foi esse o Messias esperado. O filho da terra é arrastado para fora para ser liquidado.
Porque Jesus é ameaçado? Porque ele andou na contramão da lógica reinante! O Messias que veio quebrou a lógica reinante: A viúva de Sarepta, o leproso Naamã, depois o bom samaritano, a mulher sírio-fenícia (Mc 7.24-30), mais adiante o centurião romano Cornélio (At 10-11.1-18), todos e todas são alvos da compaixão de Deus revelada em Cristo. O rosto de Deus que Jesus revela quebra a lógica que divide, que só confronta, constrói muros, quer aniquilar o outro.
E como é em 2018? Esse Messias, esse Deus que a cruz retrata se enquadra em minhas expectativas? Ou eu tenho outras expectativas em relação ao Messias? Somos capazes de dizer hoje: Sim, a palavra que acabei de escutar se cumpriu! Nós encontramos o Salvador, o Cristo de Deus! Algo aconteceu que traz consequências radicais para minha vida!
Assim como no tempo de Jesus, há hoje uma pressão para que as pessoas tomem posição. A pergunta de ordem parece ser: de que lado você está? Quebram-se os limites da democracia, do respeito. Joga-se tudo e todos na vala comum das posições polarizadas, da demonização de quem é e pensa diferente.
A exemplo do tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, hoje está posta a pergunta: Como dar conta de viver o evangelho quando irmãos e irmãs se tornam reféns de polêmicas político partidárias? De visões messiânicas de salvação que se autorizam a excomungar da comunhão quem não compartilha das mesmas ideias? Como dar conta de viver o evangelho quando há uma disputa em torno de quem tem o monopólio de Deus, da verdade, da moral e dos bons costumes?
O Secretário de Missão, colega P. Pedro, compartilhou um poema que espelha o impasse ou a encruzilhada em que estamos! O poeta Pablo Neruda, no poema Fin del Mundo, na estrofe IX, escreve:
Hoje veio me visitar um inimigo. Trata-se de um homem trancado na sua verdade, no seu castelo, como numa grade de ferro, com a sua própria respiração.
Lá estávamos, cada um com a sua certeza afiada e endurecida pelo tempo como dois cegos que defendem, cada qual, a sua escuridão.
Qual é o caminho que melhor irá nos ajudar a dar conta da missão que Deus nos confiou para este momento? Como lidar com as certezas afiadas – tanto fora quanto dentro da igreja? Certezas que machucam, e como machucam! Ferem! Agridem! Como sair dessa escuridão e dessa cegueira na qual estamos?
Jesus, ao ser confrontado com uma situação de violência em que uma mulher estava prestes a ser apedrejada (João 8), coloca um princípio fundamental do evangelho: Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra! Jesus evita a escalada do ódio numa situação de extrema tensão e perigo. Jesus não compactua com os mestres da lei nem com os fariseus no propósito de linchar a mulher. Jesus quebra com esta espiral da violência. Ninguém está autorizado a julgar em nome de Deus. Cada qual será julgado tão somente por Ele.
Assim como no tempo de Jesus, hoje assusta a incapacidade de lidarmos com a dimensão do mal! Em nossas certezas, vemos apenas o mal nos outros! Como evitar que ódio e violência cresçam ainda mais?
Jesus Cristo, o rosto de Deus, nos diz que a compaixão de Deus não tem fronteiras, de qualquer tipo, seja religiosa, étnica, de classe, ou gênero (Gl. 3.28). Afinal, “também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (Atos 11.18). Essa foi a confissão inclusiva das primeiras comunidades!!!
Jesus entendeu ser sua missão resgatar quem está perdido e integrá-lo na comunidade. O rosto de Deus que se revela em Jesus se inclina para lá onde nós resistimos em olhar. Eis sua profunda e comovedora empatia! Sua atitude compassiva perdoa pecados, restaura a dignidade das pessoas desprezadas, daquelas que supostamente não o merecem. Em Jesus, Deus se torna próximo do ser humano, se humaniza para nos humanizar, vem para ser o Deus conosco. Em razão disto, foi injuriado, inclusive pelos seus conterrâneos em Nazaré. Sim, a graça radical vivida por Jesus escandalizou. E que bom que ela continua escandalizando!
Fundamental, é preciso ter isto claro: Viver o Evangelho de Jesus Cristo nos coloca no caminho da empatia e compaixão que constrói comunhão em comunidade. O Evangelho nos coloca na contramão de toda a lógica que vivemos no momento atual, não só no Brasil, mas no mundo!
Hoje se cumpriu essa palavra da Escritura! Um novo caminho é proposto!
Neste XXXI Concílio, enquanto comunidade representativa do conjunto das comunidades da IECLB, somos convidados e convidadas a refletir acerca do nosso testemunho, destacando três dimensões deste “viver o evangelho” de Jesus Cristo: empatia, compaixão, comunhão!
É a partir desta palavra que nos propomos desenvolver os trabalhos. Isto tem a ver com a missão que Deus confiou à IECLB! Tem a ver com o projeto de Deus para esta Igreja que Ele, nosso Deus, através da ação do Espirito Santo, foi moldando ao longo destes últimos quase 200 anos de história neste país.
Que o Senhor da Igreja, aquele que a conduz:
– abra nossos olhos para novos caminhos,
– nos dê a coragem para irmos por onde o Espirito Santo nos quer conduzir,
– nos ajude a refletir acerca dos desafios que o atual momento nos coloca,
– nos inspire e capacite para darmos conta nos próximos anos da Missão que Ele confiou à IECLB e acerca de nossa responsabilidade hoje, inclusive diante das eleições que temos diante de nós.
Que a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guarde nossos corações e nossas mentes em Cristo Jesus, nosso Senhor. Amém!