Proclamar libertação
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Lucas 4.14-21
Leituras: Neemias 8.1-3,5-6,8-10 e 1 Coríntios 12.12-31a
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 27 de janeiro de 2019
1. Introdução
O relato da pregação inaugural de Jesus em Nazaré tem longa história na América Latina. Inspirou as igrejas desse continente, motivou a teologia da libertação, apadrinhou o título dos auxílios homiléticos, a que também esta meditação se destina. Sua repercussão naturalmente excede os limites geográficos. Desenvolve força sempre que pessoas sofrem sob os males deste mundo. Em nosso contexto, porém, a mensagem da libertação foi ouvida com especial atenção. É sob esse enfoque que Jesus inicia sua atuação. Trouxe evangelho, inaugurando um novo tempo, de graça e de salvação.
O texto lateral do livro de Neemias fala igualmente de um momento especial. Fica consagrado o dia em que, após a volta do exílio, o escriba Esdras leu ao povo de Israel a “Lei de Deus”. Também nesse caso certamente celebra-se “evangelho”. Mas convém não desconsiderar as particularidades. A pregação de Jesus é de outra natureza do que a de Esdras. Ainda mais difícil é estabelecer um nexo com o trecho da Primeira Carta aos Coríntios. Recomendo concentrar a prédica em Lucas 4.14-21.
2. Exegese
Para introduzir a pregação de Jesus, Lucas usa uma versão distinta daquela de Marcos. Enquanto esta coloca a ênfase no anúncio da proximidade do reino de Deus (Mc 1.15), aquela destaca o tema da libertação em resumo conciso e programático. Serve de referência uma passagem do profeta Isaías (Is 61.1). Jesus veio trazer evangelho, e isso com tal exclusividade que fica suprimida a referência à vingança de Deus, constante em Isaías 61.2. Ele tem boas novas para os pobres, liberta cativos, restaura a visão a cegos, traz liberdade para oprimidos e abre um novo ano santo, de perdão e agrado do Senhor (cf. Lv 25.10s). Seria estúpido jogar as duas versões uma contra a outra. Não se trata de alternativas. Ambas ressaltam importantes aspectos da história de Jesus. Em Lucas prevalece a ótica da libertação.
Assim como o Espírito conduziu Jesus à solidão do deserto (Lc 4.1), assim ele o conduz agora ao povo da Galileia e de Nazaré. Isso significa que Deus está com ele. E as pessoas se entusiasmam. Gostam do que Jesus ensina e faz. Sua fama se espalha pela região. Mas as simpatias muito em breve se transformam em rejeição (Lc 4.22-30). A informação já não faz parte do texto da prédica. Mesmo assim, ela pertence à perícope maior e merece ser lembrada. Lucas antecipa o que Marcos vai relatar mais adiante (Mc 6.1s). O povo de Nazaré, cidade em que Jesus se criou, chega a se escandalizar. Acaba até mesmo tramando um atentado contra ele. Como se explica a súbita mudança de conceituação?
Jesus ensina nas sinagogas. Já naquele tempo a sinagoga tinha se instalado ao lado do templo, que era o lugar exclusivo para a oferta de sacrifícios. Isso fez com que o judaísmo sobrevivesse com relativa facilidade à destruição do templo no ano 70 d.C. Foi o culto sinagogal que garantiu a identidade judaica através dos séculos. Ele acontecia em forma verbal, por oração, ensino e pregação. Enquanto a leitura da Torá estava regulamentada, a dos livros proféticos era opcional, tendo todo homem adulto o direito a ler. É do que Jesus se aproveita. De acordo com seu hábito, visita também a sinagoga de Nazaré. Em certa ocasião, ele se levanta, dando a entender que igualmente pretende fazer uma leitura. O bibliotecário lhe entrega o livro do profeta Isaías. Jesus acha a já referida passagem do capítulo 61. Depois de ouvido o texto e Jesus ter-se sentado, a comunidade aguarda um comentário. Esse é breve e sucinto: Hoje se cumpriu o trecho das Sagradas Escrituras que vocês acabam de ouvir. Que foi o que Jesus leu?
Nas palavras atribuídas a um profeta chamado Trito-Isaías (Is 61s), ou seja, o terceiro desse nome, alguém reivindica para si dignidade messiânica. Diz ser portador do Espírito de Deus e ungido para levar o evangelho aos pobres. Em língua grega: ele é um “Cristo”. Lucas não usa o título, mas o significado é esse. Ele traz indulto aos endividados, cura para doentes, liberdade para quem sofre opressão, soltura para quem se encontra em prisão. O termo em destaque é afesis, que pode ser traduzido também por “perdão”. Tal interpretação está em sintonia com o significado do “ano do jubileu”. Celebrava-se o perdão das dívidas. Mas isso implicava “liberdade para todos os moradores” (Lv 25.10). Já que o texto citado por Jesus fala em cativos e oprimidos, o sentido que se impõe é claramente o da libertação. O evangelho rompe laços que mantêm o ser humano em escravidão e lhe causam sofrimento.
Os destinatários são os pobres, uma preferência confirmada pelas bem–aventuranças. Jesus afirma que deles é o reino de Deus (Lc 6.20). Eles são alvos especiais do amor divino. Aliás, a prática “evangelística” de Jesus mostra não ser permitido restringir o significado do termo “pobre” a uma só classe social. Fazem parte do grupo doentes, notórios pecadores, a exemplo da mulher que o procurou na casa do fariseu Simão (Lc 7.36s), enfim todas as pessoas que padecem de alguma necessidade. Jesus valoriza gente à margem, menosprezada, excluída. Restitui-lhe a dignidade e a liberta de estigmatização religiosa e social. Entre essa gente encontram-se samaritanos, pagãos, mulheres, crianças. Trata-se de uma ênfase específica de Lucas, mas de modo algum ausente nos demais evangelhos. Jesus veio para libertar de pecado, tanto do próprio como de alheio.
O comentário que Jesus acrescenta é provocante. Os elogios que recebe são devidos à sua retórica e à maneira simpática de falar. Também sua ação parece ter impressionado o público. Mas a reivindicação messiânica implícita em sua resposta é difícil de digerir. O Senhor me deu o seu Espírito… Pois é! Jesus não só anuncia, ele traz salvação. Quem é ele para arrogar a si tal autoridade? Não é ele o filho de José, alguém de nossos concidadãos, bem conhecido nessa cidade? O texto para a prédica não entra em detalhes da rejeição. Mas ela já se prenuncia. É este o grande escândalo que acompanha Jesus até a morte na cruz: Ele salvou outros. Que salve a si mesmo, se é de fato o Messias que Deus escolheu (Lc 23.35). É o deboche que ainda como moribundo deve ouvir.
Ao contrário disso, Lucas persegue o interesse de apregoar justamente esse nazareno como o Cristo de Deus. Hoje se cumpriu esse trecho das Escrituras Sagradas. É o autotestemunho de Jesus. Ele se declara executor das obras messiânicas. Veio para libertar. Será verdade isso? Lucas responde com a redação de seu evangelho.
3. Meditação
Entre os temas do texto, dignos de aprofundamento e reflexão, três se revestem de particular relevância.
Primeiro – Jesus entende a profecia messiânica daquele Isaías como autorização para ser o Cristo de Deus. Com alguma razão, pois, pode-se concluir ser esse o momento da sua ordenação ao ministério. Assumindo a dignidade cristológica que o texto sugere, Jesus se sabe encarregado de trazer salvação à terra. Começa a concretizar-se “hoje”, em sua pessoa, algo da última petição do Pai–Nosso, dizendo: “E livra-nos do mal”.
Tal reivindicação desde sempre causou escândalo, desde Nazaré até hoje. O povo judaico em seu todo sintonizou com ele. Pode reverenciar Jesus como pessoa merecedora do mais alto respeito, mas nega-lhe a messianidade. Algo semelhante se observa no islamismo. O Alcorão faz muitas referências elogiosas ao nazareno. Mas não admite sob hipótese alguma sua filiação divina. O único Deus Alá não poderia ter filho. Daí porque também cristãos são vistos como incrédulos. Quadro semelhante oferece-se no ateísmo moderno. Para muitos de seus representantes, Jesus é tido como “pessoa padrão”, exemplo de humanismo e nobreza de espírito. Mas que esse filho de José (Lc 4.22) seja filho de Deus é visto como ideia fantasiosa.
A comunidade cristã, ao insistir na identidade messiânica de Jesus, faz bem em respeitar esse pano de fundo. Deve justificar seu discurso. Quais seriam os argumentos que o sustentam? E qual seria a modalidade condigna para afirmar esse credo? Para tanto uma simples citação bíblica não basta. Por que não podemos deixar de seguir o exemplo de Pedro e dizer: Tu és o Cristo (Lc 9.20)? Há boas razões para fazê-lo.
Segundo – O evangelho destina-se aos pobres. Foi essa uma forte ênfase na teologia da libertação. Fé cristã implica a opção (preferencial) pelos pobres. Jesus, ele mesmo, ratifica essa verdade. O Messias vem para libertar as pessoas de tudo que lhes oprime a consciência, a saúde, o exercício da cidadania. Denuncia e supera dependências. A rigor, a preferência dos necessitados é nada “opcional”. Ela pertence ao cerne do evangelho. Pois é assim que funciona o amor. Filho doente terá prioridade nos cuidados da mãe até estar restabelecido. Isso não significa que os demais filhos sejam preteridos. É assim que procede Jesus. Enxerga miséria humana e socorre à maneira do bom samaritano (Lc 10.30s). Existe unanimidade na teologia cristã nesse tocante.
Assim sendo, alguns temores provocados pela tese do privilégio dos pobres se revelam como infundados. Nascem antes de distorções do que de espírito evangélico. Seria fatal, por exemplo, confundir a opção pelos pobres com a opção pela pobreza. Essa pode resultar de uma decisão pessoal, mas não se presta a ser critério de fé autêntica. Como lei ela conduz ao inconveniente da justificação pelas obras. Qual seria o grau de pobreza a ser alcançado? Importa evitar ficções. A fé cristã não prega o igualitarismo. Por isso mesmo também se proíbe a interpretação classista da categoria do “pobre”. Já fizemos referência a isso anteriormente. O amor não fica dispensado de detectar outras formas de “pobreza”, além da material, muito embora essa deva estar no topo da preocupação. Jesus coloca prioridades, sim, mas não exclui ninguém. Fica a exigência de um estilo de vida simples e de ajuda ao próximo de acordo com as possibilidades.
Terceiro – E o sucesso de Jesus, onde está? De um libertador se espera poder. Mas Jesus é fraco. Acabou na cruz, vítima de desprezo e zombaria. Aparentemente, Jesus não conseguiu cumprir o programa messiânico, com o qual em Nazaré se comprometeu. São os pobres, eles mesmos, que devem libertar-se a si mesmos. Jesus pode ser visto como inspirador e motivador. Mas o agente da transformação do mundo seria o proletariado, o “povão”, a plebe, ou seja, o segmento social oprimido. Nasceu daí o que se chamou de “romantização dos pobres”, como se eles fossem a parte não corrupta da humanidade. Ora, também os pobres não são capazes de construir o reino de Deus. Isso é obra exclusiva de Cristo.
E ele o faz, embora de modo não usual. Aposta no amor, não no poder militar, econômico, político, nem mesmo popular. Por isso suas vitórias costumam permanecer ocultas. Listar os pecados históricos da igreja cristã tornou-se comum entre agnósticos e ateus. De fato, cristãos ficaram em débito com seu mestre. Mas isso não desacredita a proposta messiânica de Jesus. Ele introduziu um novo espírito no mundo, cujos sucessos são difíceis de contabilizar. E, no entanto, é cego quem não os enxerga. E, sempre que esse espírito se impõe, ocorre libertação e transformação. As forças do mal começam a recuar. A igreja cristã desafia a fazer o teste.
4. Imagens para a prédica
Libertas quae sera tamen – É o que se lê em bandeiras preservadas do tempo da luta pela independência do Brasil, em Minas Gerais. É um dito em latim, dizendo: “Haverá liberdade, mesmo assim”. Onde quer que prevaleça escravidão o grito é semelhante. O ser humano quer ser livre. Não tolera dominação estrangeira, quer ser “dono de seu próprio nariz”, anseia por autodeterminação e gestão autônoma de sua existência. É afamada a enorme estátua da liberdade na entrada do porto de Nova Iorque, prometendo aos imigrantes serem os Estados Unidos o país da liberdade. E, com efeito, nada pior do que a suspensão da liberdade religiosa, de expressão, de imprensa e, sobretudo, da liberdade pessoal mediante reclusão em penitenciária.
O evangelho endossa esse anseio. Opressão, seja de raça, gênero, classe ou religião, não encontra respaldo em Jesus. Emancipação engajada em causa justa, inclusive política e econômica, merece apoio. E, no entanto, libertação evangélica vai além. Como mera independência fica a meio caminho. Quer expressar-se em cura, cuidado, solidariedade, justiça, diaconia. Sem amor qualquer libertação se perverte e ameaça acabar em nova tirania. “Libertação sustentável” tem por condição a superação do pecado, ou seja, da propensão do ser humano à corrupção, à idolatria do dinheiro, do sexo, do poder, à egomania, à fascinação por outras divindades. Se “Proclamar Libertação” incorporar essas dimensões, ela se reveste de palpitante urgência, justamente nas atuais crises brasileiras. Os obstáculos são muitos. Mas também para a fé vale: Libertas quae sera tamen.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Senhor, nós abusamos do cheque especial recebido por tua graça. Excedemos o crédito que nos concedeste e contraímos um débito impossível de pagar. Somos inadimplentes e dependemos de teu favor. Lamentamos a fraqueza do amor às pessoas ao nosso lado, bem como a falta de fé em teu poder. Ficamos presos a nossos caprichos e por demais vezes colaboramos com os problemas da nossa sociedade em vez de nos opor a eles. Perdoa-nos as dívidas e concede-nos nova chance. Em nome de Jesus Cristo te pedimos. Amém.
Oração do dia
Jesus Cristo, queiras realizar tua obra libertadora também em nós. Vem e liberta-nos das nossas angústias. Desperta em nós a confiança e fortalece o ânimo para viver. Liberta-nos de situações difíceis e constrangedoras e dá forças para resistir. Liberta-nos de apatia e vaidade, capacitando-nos a socorrer pessoas dependentes de nossa ajuda. Liberta-nos de tudo o que nos inibe para sermos pessoas gratas, alegres e comprometidas com o bem. Envia o teu Santo Espírito para afastar as trevas, tanto de nossa própria vida como do mundo que nos cerca. Amém.
Intercessão
Sejam recomendadas nesta oração pessoas e instituições carentes de cuidados especiais, a exemplo de doentes, moribundos, desamparados, fugitivos, vítimas de maus tratos, minorias perseguidas, grupos explorados e outros. Aliás, há fortes motivos para lembrar nossos irmãos e nossas irmãs cristãs hostilizados em vários países do mundo. Não raro sofrem verdadeiros massacres. Devemos a eles e a elas nossa solidariedade através de nossas preces e de nosso protesto contra as arbitrariedades que sofrem. No mais, intercedemos pelas autoridades tanto políticas como religiosas, pedindo que Deus lhes dê o discernimento do bem e a disposição para servir. Em termos gerais, a comunidade cristã pede a Deus que queira proteger a humanidade contra a loucura de novas guerras e da destruição da natureza, preservando a paz e o bem-estar do ser humano.
Bibliografia
SCHMITHALS, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Zürich: Theologischer Verlag Zürich, 1980. (Zürcher Bibelkommentare NT 3.1).
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982. (Das Neue Testament Deutsch, Bd 3).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).