Por tua palavra lançarei as redes
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Lucas 5.1-11
Leituras: Isaías 6.1-8 (9-13) e 1 Coríntios 15.1-11
Autoria: Verner Hoefelmann
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 06/02/2022
1. Introdução
Os três textos indicados possuem boa afinidade temática e podem ajudar a moldar o conteúdo da celebração deste domingo. O texto do evangelho gira em torno de uma epifania. Em hora imprópria para a pesca, pescadores retornam ao lago da Galileia, em obediência a uma palavra de Jesus. E recolhem as redes recheadas de peixes, a ponto de quase afundar os barcos. Pedro reconhece na pesca miraculosa uma manifestação de Deus. Pede que Jesus se afaste dele. Ele se reconhece como um pecador diante de Jesus. Pensa que não pode ter comunhão com ele. Mas ao invés de afastá-lo de si, Jesus o integra ao seu ministério. Convida-o a tornar-se um discípulo. Convoca-o à tarefa de proclamar o evangelho em palavra e ação e convencer pessoas a construir suas vidas sobre esse fundamento.
O texto de Isaías gira igualmente em torno de uma cena de epifania. O profeta está no templo de Jerusalém e presencia ali uma visão grandiosa de Deus, que está sentado sobre um alto e sublime trono. Serafins proclamam a santidade e a glória de Deus. Isaías se desespera, porque é um homem de lábios impuros, mora em meio a um povo de impuros lábios e acaba de presenciar a glória de Deus. Mas seus lábios são purificados e ele aceita o chamado para ser enviado em nome de Deus, com a tarefa de proclamar ao povo a sua palavra.
O trecho de Paulo, por fim, completa a tríade de textos: apesar de ter sido um perseguidor da igreja, o Cristo ressuscitado lhe apareceu como a um nascido fora do tempo. Mesmo se considerando o menor dos apóstolos, a graça de Deus se tornou eficaz nele. A própria comunidade de Corinto é exemplo disso. Ela passou a fazer parte do povo de Deus através do trabalho do apóstolo. Foi dele que ela ouviu pela primeira vez a gloriosa mensagem da vitória de Cristo sobre a morte. Esses são os temas que conferem uma unidade aos textos: manifestação de Deus, reconhecimento do pecado, chamado ao discipulado, fortalecimento para testemunhar a palavra e a obra de Deus.
2. Exegese
a) Lucas 5.1-11 e seus paralelos
Ao redigir o texto em estudo, Lucas valeu-se de duas fontes. A primeira delas é Marcos 1.16-20. Num paralelismo quase perfeito, esse texto descreve a vocação de duas duplas de irmãos pescadores ao discipulado. Caminhando junto ao mar da Galileia, Jesus observa os irmãos Simão e André em meio ao trabalho.Eles lançam as redes ao mar. Convida-os a segui-lo e promete transformá-los em pescadores de pessoas. Os dois largam as redes e passam a segui-lo. Mais adiante Jesus vê outros dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Eles estão num barco, no fim do expediente, consertando as redes. Jesus os chama igualmente. E eles deixam tudo, inclusive o pai, para seguir Jesus.
O contexto da narrativa de Marcos surpreende: após o batismo e a tentação de Jesus e um breve sumário de sua pregação (Mc 1.12-15), o início de seu ministério público é justamente a vocação desses quatro pescadores ao discipulado. Sem que se tenha mencionado nenhuma relação anterior entre eles, sob o impacto do convite, os pescadores tomam a decisão de largar tudo para seguir Jesus.
O texto paralelo de Mateus 4.18-22 segue quase que literalmente a versão de Marcos. Mas o terceiro evangelista submeteu essa tradição a uma incisiva revisão. Ela inicia com a criação de um novo contexto para o texto de vocação: antes de relatar a vocação dos primeiros discípulos, Lucas descreve o início do ministério de Jesus em seu duplo aspecto de ensino (Lc 4.14-30) e cura (4.31-44). Lucas informa o leitor que Simão já conhecia Jesus, pois este havia curado a sogra do pescador (4.38-39). Além disso, Lucas cria uma introdução ao relato (5.1-3): Simão está agora entre os que ouvem a palavra de Deus que Jesus proclama às margens do lago. Jesus a proclama de dentro do barco de Simão. A menção a dois barcos e a pescadores que lavam as redes (5.2) é uma reminiscência do texto de Marcos.
Após essa introdução, Lucas emenda no relato uma tradição recebida de outra fonte. Esta fazia referência a uma pesca maravilhosa e ao comissionamento de Pedro (5.4-10). Conhecemos uma tradição similar no final secundário do Evangelho de João (21.1-14). O enredo possui aspectos em comum, embora a cena joanina aconteça após a Páscoa. De volta à Galileia, um grupo de discípulos, entre eles Pedro e os filhos de Zebedeu, volta ao mar para pescar. Mas o mar não estava para peixe! Eles retornam da pescaria ao clarear da madrugada. Encontram um estranho à beira do lago, que lhes pergunta se possuem algo para comer. Ante a resposta negativa, o estranho os instrui a lançar a rede à direita do barco. Eles obedecem e a rede emerge cheia da água, com 153 grandes peixes. O discípulo amado informa Pedro de que o estranho é Jesus. E Pedro se lança ao mar em direção a Jesus, num gesto de confiança. Segue-se uma refeição com peixes e pães, na qual o Jesus ressuscitado faz o papel de hospedeiro. A cena termina com um diálogo entre Jesus e Pedro, em que este é conclamado a apascentar as ovelhas e seguir a Jesus (Jo 21.15-23).
Há que se recordar que as tradições primitivas circularam algum tempo nas comunidades como tradições isoladas e desconectadas entre si. Por isso é possível supor que Lucas tenha utilizado essa tradição para enriquecer uma cena de vocação, enquanto o redator final de João a combinou com uma aparição do ressuscitado. Os dois usos da tradição fazem sentido e de certa forma até se complementam. Na Sexta-Feira Santa, quando os discípulos abandonaram Jesus, o discipulado foi rompido de forma vergonhosa. A Páscoa inaugura um novo momento, em que a vocação para o discipulado precisa ser confirmada e reforçada por meio de uma experiência com o ressuscitado.
Em consequência do trabalho redacional, outros detalhes ainda chamam a atenção no relato de Lucas. O principal deles é que toda a narrativa passa a girar em torno da pessoa de Simão (Pedro): o barco em que Jesus prega é o de Simão (5.3); a ordem de voltar ao lago é dada a Simão (5.4); é Simão quem fala sobre a hora inapropriada para a pesca, embora credite a seguir um voto de confiança a Jesus (v. 5); é Simão Pedro quem reconhece sua condição de pecador diante da epifania da pesca milagrosa (5.8); é a Simão (apenas) que Jesus convida para ser pescador de gente (5.10). Observe-se que no decorrer do relato se alternam os verbos no singular e no plural. O plural indica a presença de outras pessoas na cena. O singular aponta para o interesse de Lucas (talvez já da tradição anterior a ele) na pessoa de Pedro. Lucas inicia aqui um projeto teológico que vai perpassar sua dupla obra: mostrar que igreja autêntica é a igreja baseada no testemunho dos apóstolos (cf. At 1.21-26). Essa igreja tem em Pedro seu principal porta-voz. Ele inaugurou o episódio da missão entre os gentios (At 10), antes mesmo da missão paulina. Os filhos de Zebedeu, que estão presentes na tradição de Marcos e de João, tornam-se um apêndice no relato de Lucas (Lc 5.10). E André sai completamente de cena. Consta apenas na lista dos doze ao lado de seu irmão (Lc 6.14).
É curioso observar, aliás, como o Evangelho de João entra nessa brecha do ocultamento de André. João não descreve essa cena de vocação, mas reserva a André a honra de ter sido o primeiro a seguir Jesus (Jo 1.35-42). Ele é o protoklētos, o primeiro a ser chamado, como diz a tradição ortodoxa grega. Conforme João, André teria sido um discípulo de João Batista antes de seguir Jesus. Ele teria apresentado Pedro a Jesus e Jesus a Pedro. Essa cena marca o início de uma relativização da figura de Pedro no quarto evangelho, em favor do “discípulo a quem Jesus amava”. Mas o assunto não pode ser aprofundado aqui!
b) O texto de Lucas 5.1-11
– Um púlpito singular para Jesus (v. 1-3): Como já foi dito, Lucas cria habilmente um novo cenário para o texto de vocação. Jesus não chama os primeiros discípulos enquanto caminha junto ao mar (Mc 1.16), mas depois de proclamar ou ensinar a palavra de Deus a uma multidão. O que confere força profética à pregação de Jesus é que sua palavra procede de Deus (Lc 4.22,32,36,43-44). A multidão aos poucos comprime Jesus em direção às águas. Obriga-o a buscar uma solução junto a um barco que está às margens. O barco é transformado em púlpito! O episódio mostra que nada pode impedir o curso da palavra.
Lucas denomina o mar da Galileia (Marcos) de lago de Genezaré. O evangelista sabe que o lago é alimentado pelas águas doces do rio Jordão e de outras pequenas fontes. O nome Genezaré se origina de um distrito fértil e populoso situado em sua margem oeste. A presença de dois barcos junto à praia parece remeter à dupla vocação narrada em Marcos 1.16-20. O empréstimo de um barco para continuar a pregação se inspira em Marcos 4.1. Aqui a cena introduz o sermão parabólico de Jesus, que Lucas suprime no versículo correspondente para evitar duplicação (cf. Lc 8.4). Nada se fala sobre o conteúdo da pregação, mas ela foi programaticamente esboçada na prédica em Nazaré (Lc 4.16-30). Ao ensinar sentado, Jesus adota a postura de um mestre judeu (Lc 4.20; Mt 5.1).
Essa introdução está a serviço do episódio que segue. A multidão que se reúne em torno de Jesus é um sinal de que existe sede e fome pela palavra de Deus e que há muito por fazer. Por enquanto Jesus necessita apenas do barco de Pedro como púlpito. Mais adiante vai precisar dele mesmo como parte de seu projeto de convencer pessoas para o evangelho. Mas antes disso o próprio Pedro precisa ouvir a palavra de Deus, pois a vocação nasce do evangelho pregado e ouvido.
– Uma pesca surpreendente (v. 4-7): Após a sessão de ensino, Lucas insere a narrativa de uma pesca maravilhosa oriunda de outra fonte. A ordem de voltar às águas profundas é dada a Pedro, pois ele é a pessoa visada no evento a seguir. Mas a ordem de lançar as redes é estendida à tripulação do barco, pois o verbo está no plural (v. 4). A faina dos pescadores exige um trabalho conjunto. Não está claro se Jesus permanece no barco ou se acompanha o episódio às margens do lago.
O vocativo epistata com o qual Pedro se dirige a Jesus não costuma ser utilizado para um mestre da lei, mas para um superior em posição de autoridade (v. 5). Por isso o título é mais adequado para uma cena de milagre. Lucas reserva esse título a discípulos de Jesus, enquanto outros o chamam de didaskalos. Na resposta de Simão pode-se observar, ao mesmo tempo, a fala de um pescador (no plural) e de um candidato ao discipulado (no singular). Como pescador ele sabe que nada tem a aprender de um homem que não pertence ao ramo. Por isso ele responde: trabalhamos arduamente toda a noite (no horário apropriado à pesca) e nada apanhamos. Como candidato a discípulo ele acrescenta: “mas por tua palavra lançarei as redes”. Apesar da noite frustrante de trabalho, ele decide apostar contra a esperança e confiar na palavra de Jesus.
O resultado da pesca é narrado todo ele no plural (v. 6-7). As lidas locais com a pesca nos ajudam a entender esses versículos. As redes de arrastão devem ser lançadas em lugares mais profundos. Elas não servem apenas para recolher os peixes, mas primeiramente para cercá-los e juntá-los. É o que diz o verbo synekleisan (fecharam juntos, confinaram). O imperfeito dierrēsseto não significa que as redes estavam se rompendo, mas ameaçavam romper-se. O ato de puxar as redes é o momento mais difícil da pesca. É preciso muito esforço e habilidade para evitar que as redes se danifiquem ou que os peixes escapem. Em vista da quantidade de peixes apanhados, é nesse momento que os pescadores pedem a ajuda dos companheiros do outro barco. Segundo o texto, a operação foi bem-sucedida. Ambos os barcos se encheram de peixes, ao ponto de quase afundar. A quantidade de peixes revela o aspecto extraordinário do que acaba de acontecer. Ela remete tanto para o poder de Jesus como para a promessa que ele fará em seguida a Pedro.
– Um pescador pescado pela rede de Jesus (v. 8-11): Segundo o relato de Lucas, a pesca maravilhosa provocou grande impacto nos pescadores. Além de Pedro e dos que com ele estavam no barco, são mencionados os filhos de Zebedeu (Tiago e João). Eles são caracterizados como colegas de trabalho (koinōnos). O trecho deixa entrever mais uma vez o trabalho redacional de Lucas, que procurou costurar aqui as informações das duas fontes utilizadas. O relato da pesca maravilhosa, ao que parece, era seguido pela reação de Pedro (v. 8), eventualmente dos outros companheiros do barco (v. 9) e pela promessa de Jesus a Pedro (v. 10b). Por meio dos v. (9),10a e 11, Lucas tentou conectar esse relato com vocação de discípulos recebida de Marcos 1.16-20. Seja como for, na versão de Lucas o foco do trecho está posto novamente em Simão.
Simão, que agora chama Jesus de kyrios/senhor, vê nele e na pesca milagrosa uma epifania, uma manifestação de Deus (v. 8). O gesto de prostrar-se diante de Jesus é um ato de reverência e adoração ao divino que nele se manifesta. Mas a epifania também traz à tona o estado de pecado em que vive o ser humano. Diante de Jesus, o pescador reconhece-se como um pecador. Por isso Pedro prossegue: não te juntes comigo, porque sou um pecador. Que comunhão pode haver entre o divino e o pecaminoso? A reação é semelhante ao profeta Isaías, ao defrontar-se com a santidade de Deus no templo (Is 6.5). Ou a Paulo, que ao encontrar-se com Cristo olha para si mesmo e considera tudo o que é ou possui como perda ou refugo (Fp 3.4-11). Observe-se que essa é primeira vez no texto e no evangelho que Simão é chamado de Pedro, o nome que vai caracterizá-lo como discípulo de Jesus (cf. Lc 6.14). Esse detalhe provavelmente não é mero acaso, mas intencional: reconhecer o senhorio de Cristo e a condição de pecador é um passo necessário em direção ao discipulado e à participação no ministério de Jesus.
A resposta de Jesus a Pedro é tranquilizadora e portadora de uma promessa (v. 10): Não temas; doravante serás pescador de pessoas. Temor é a reação típica do ser humano diante da manifestação de Deus. Não temas é uma mensagem graciosa e confortadora de Deus e de seus mensageiros. Ela quer tranquilizar e encorajar o ser humano que está consciente de sua condição precária. Justamente assim o ser humano pode ser integrado aos planos de Deus. Foi assim com Zacarias (Lc 1.13), com Maria (Lc 1.30), com os pastores (Lc 2.10), com Jairo (Lc 8.50), com Paulo (At 18.9; 27.24) e tantos outros.
À palavra tranquilizadora de Jesus segue um comissionamento: Doravante serás pescador de pessoas. Essa formulação se distingue de Marcos 1.17 em alguns aspectos. Ela não se dirige a Pedro e André, mas apenas a Pedro. Isso mostra que, a rigor, é esse o personagem que está em pauta. Além disso, a tarefa confiada a Pedro revela, na versão de Lucas, um detalhe curioso quando visto no texto grego. O particípio zōgrōn provém de um verbo composto por zōos (vivo) e agrein (colher e, por extensão, caçar ou pescar). A tradução literal, portanto, não seria “doravante serás pescador de seres humanos”, e sim “doravante colherás/pescarás vivos os seres humanos”. Parece evidente que a versão de Lucas procura corrigir os limites da metáfora: como pescador, Pedro colhia peixes para a morte, pois eles não sobrevivem fora da água. Em sua nova função, ele estará pescando pessoas, mas não para a morte, e sim para o reino de Deus, que resulta numa nova qualidade de vida. Se quisermos permanecer na metáfora do pescador de pessoas, talvez poderíamos dizer: inversamente aos peixes, que morrem fora da água, os seres humanos precisam passar pelas águas (do batismo) para renascer como novas criaturas! Mas isso não está dito no texto!
Por fim, verifica-se que o comissionamento de Pedro na versão de Lucas não faz referência ao seguimento (Mc 1.17: vinde após mim). Por isso Lucas precisa narrar o seguimento de Pedro na sequência, no encerramento da perícope, juntamente com os outros pescadores (v. 11). Afinal, Lucas não pode conceber um apóstolo que não tenha sido discípulo (At 1.21-26). O final secundário do Evangelho de João (21) parece refletir o momento em que a figura de Pedro, entendido como instância de autoridade na igreja, foi finalmente acolhida na comunidade joanina. Mas a condição posta é que essa autoridade não seja exercida como poder, mas como um pastoreio que se inspira no exemplo do bom pastor, que ama as ovelhas e dá a sua vida por elas (Jo 21.15-18). Em suma, Pedro é acolhido na comunidade joanina como um seguidor e discípulo de Jesus (Jo 21.19-23). Assim Pedro e o “discípulo amado” finalmente podem estar no mesmo barco, que é a igreja.
3. Meditação
Lucas 5.1-11 é um belo exemplo de como a tradição cristã circulou e se sedimentou nas primeiras comunidades. Como vimos, Lucas retrabalhou com liberdade e criatividade um texto de Marcos sobre a vocação dos primeiros discípulos. Criou um novo contexto para uma narrativa de vocação. Fundiu o texto com outra tradição, que vinculava uma cena de epifania com um comissionamento de Pedro. Qual o ganho que temos ao trazer essas mudanças à luz? Elas mostram que antes de serem transformadas em obras literárias, as tradições veiculadas pelos evangelhos foram vivenciadas de forma diferenciada no interior das comunidades. Embora o fundamento histórico seja importante para a fé cristã, a verdade do evangelho nem sempre depende da exatidão dos fatos narrados. A leitura fundamentalista das Escrituras tende a esconder ou escamotear as diferenças entre os textos. A liberdade de poder trazer tais diferenças à tona mostra justamente a riqueza de um evangelho que quer tornar-se carne e habitar entre nós. Por isso não deveríamos ter receio de comparar textos e mostrar suas diferenças. Elas são indícios do que significa pregar o evangelho: traduzir para dentro de novos contextos o impacto da boa-nova proclamada por Jesus.
Claro que esse não parece um tema adequado para uma pregação pública dominical. Mas urge como um tema a ser estudado nos grupos das comunidades. Os membros de nossas igrejas precisam crescer na leitura e interpretação das Escrituras, abandonar a dieta do leite para acostumar-se com comida sólida (1Co 3.1-9). Caso contrário, serão levados de um lado para o outro pelas artimanhas de novas ideologias e doutrinas, que induzem ao erro e conduzem para longe do evangelho (Ef 4.11-16). Gente sem maturidade espiritual e discernimento torna-se massa de manobra nas mãos de lideranças manipuladoras, seja no âmbito eclesial ou social. Não me lembro de ter visto essa necessidade de maneira tão nítida como nos últimos tempos. Nunca se falou tanto em fé cristã e em textos bíblicos no âmbito público, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Mas também nunca se passou tão de largo pelo evangelho! É preciso voltar às fontes para que não sejamos surpreendidos, como alguns coríntios, dizendo anátema Jesus (1Co 12.3).
Chegamos assim de volta a um ponto de conexão com a homilética. O texto configurado por Lucas é riquíssimo em temas para a pregação, todos girando em torno do tema da vocação.
a) Deus dá o primeiro passo na direção do ser humano: Como vimos, Lucas modificou a narrativa que encontrou em Marcos. Segundo Marcos, a vocação dos primeiros discípulos nasceu do impacto que a pessoa de Jesus exerceu sobre os pescadores. É verdade que também Marcos se refere a uma mensagem do evangelho que já estava ecoando pela Galileia antes de Jesus chamar os primeiros discípulos. Marcos a resume em quatro elementos: o tempo está cumprido, o reino de Deus está próximo, arrependei-vos, crede no evangelho (Mc 1.14-15). É o programa de Jesus nesse evangelho. Mas como as pessoas são conectadas a esse programa? Marcos responde que isso acontece por meio de um encontro com a pessoa de Jesus. Esse encontro é tão impactante, que os pescadores largam tudo para seguir Jesus.
Lucas oferece uma outra perspectiva à narrativa de Marcos. Também em Lucas Jesus proclama o reino de Deus (Lc 4.43). Mas o significado desse tema foi esboçado na prédica inaugural de Jesus em Nazaré, que se torna o programa messiânico de Jesus no terceiro evangelho: Jesus foi ungido com o Espírito para proclamar o evangelho aos pobres, para proclamar a libertação aos cativos, para restaurar a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor. Esse evangelho vale não apenas para os judeus, mas também para os gentios. Quem examina as Escrituras pode ver que isso já consta nela (Lc 4.16-30). Mas Jesus não é apenas o Messias da promessa. Ele é o Messias que cumpre o que promete, como indicam as primeiras narrativas que se seguem (Lc 4.31-44).
Como vimos, ao retrabalhar o texto de Marcos, Lucas concentra o interesse da narrativa na vocação e comissionamento de Pedro. Segundo Lucas, esse encontro entre Jesus e Pedro, que resultou na vocação do pescador para o discipulado, foi mediado e preparado por três elementos: a) Por um gesto diaconal de Jesus: a sogra de Pedro já havia sido curada por Jesus, levando Pedro a pensar quem seria esse homem de Deus que ampara os desvalidos. b) Pela pregação de Jesus: enquanto lava as redes e põe seu barco à disposição, Pedro ouve a palavra de Deus que Jesus proclama à multidão. c) Por uma epifania de Deus em Jesus: ao retornar para o lago e presenciar a pesca maravilhosa, Pedro vê confirmada a suspeita de que Deus está se manifestando em Jesus.
Seja como for o encontro do ser humano com Deus, cumpre observar que é Deus mesmo quem dá o primeiro passo em sua direção. Fé cristã não se passa adiante nem se recebe por herança. Por mais que o contexto familiar e social possa facilitar a transmissão da fé, essa necessita de uma decisão pessoal em favor do evangelho e da vida cristã. Mas é importante destacar que essa fé e vocação para o discipulado nascem do encontro com a palavra proclamada do evangelho e com a percepção dos sinais e das manifestações de Deus em nossa vida e na realidade do mundo. Para dizer com o apóstolo Paulo, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo (Rm 10.17).
b) O encontro com o evangelho traz à luz a condição do ser humano diante de Deus: Quando o ser humano se encontra com o evangelho, ele adquire uma percepção realista sobre si mesmo. Pode olhar tranquilamente para dentro de si e reconhecer-se como realmente é, assim como aconteceu com Pedro, com o profeta Isaías e o apóstolo Paulo. Não precisa ocultar-se atrás de uma máscara ou desempenhar um papel que não lhe corresponde para impressionar quem quer que seja. Não precisa buscar uma justificativa ou uma desculpa para todos os seus atos falhos. Não precisa desesperar-se ante o fato de que não consegue cumprir as metas ou promessas a que se havia proposto. Pode assumir suas fraquezas e sua condição de pessoa pecadora, assim como o filho mais novo daquela parábola de Jesus, que decidiu voltar ao Pai de mãos vazias, sem ter qualquer motivo de orgulho para lhe apresentar (Lc 15.11-32).
c) O encontro com o evangelho revela ao ser humano como ele é visto aos olhos de Deus: Se olhar para si mesmo e reconhecer-se como pessoa pecadora é a parte mais difícil do encontro com Deus, saber como somos vistos por ele é a parte mais gratificante e libertadora. Para falar novamente com a parábola de Jesus, é como voltar à casa paterna, com um discurso ensaiado sobre nossa condição de pecado, cientes de que não somos dignos de ser tratados como filhos e filhas, e enxergar o Pai de abraços abertos, pedindo que nos seja providenciada a melhor roupa e que nos seja colocado um anel no dedo e sandálias nos pés, antes que se inicie uma festa de comemoração. Quando reconhecemos nossa fraqueza e impotência, a força e o poder de Deus podem revelar-se em nós, como tão bem expressou o apóstolo Paulo em meio ao espinho na carne que lhe fazia sofrer: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo (2Co 12.9).
d) Deus prefere contar conosco: A multidão que comprime Jesus para a beira do lago e a quantidade de peixes apanhados, mesmo fora de hora, são duas imagens que se correspondem na narrativa de Lucas. Elas mostram que existe demanda pela palavra de Deus e que as perspectivas são promissoras. Mas Jesus não cumprirá sozinho seu programa de evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos, pôr em liberdade os cativos e apregoar um tempo que agrada a Deus. É por isso que Jesus chama Pedro, depois os doze discípulos e os setenta, homens, mulheres e crianças. É por isso que o Espírito Santo suscita outras tantas formas de lideranças ao longo da história da igreja. De várias pessoas sabemos os nomes, sua contribuição e sua história. Da grande maioria não sabemos absolutamente nada. Mas de todas essas pessoas Deus se serviu para anunciar suas maravilhas ao mundo. Como dirá o apóstolo Paulo, um planta e outro rega (1Co 3.1-9). Há espaço para a diversidade de dons e carismas na igreja compreendida como o corpo de Cristo (1Co 12). O que confere unidade a essa diversidade é o propósito de corresponder à proclamação e ao programa de Jesus assim como ele foi esboçado na sinagoga de Nazaré e como Jesus anunciou à beira do lago. Na igreja não há espaço para projetos de poder, mas de serviço. Importa reconhecer nosso papel como cooperadores de Deus: ser instrumentos nas mãos de Deus, que faz tudo crescer, seja a planta, seja o corpo de Cristo, que é a igreja.
4. Imagem para a prédica
Os aspectos mencionados acima na meditação podem servir de roteiro para a pregação. Em preparação à prédica, enquanto a comunidade canta a canção abaixo, sugiro que se projetem (na medida do possível) imagens de pescadores fazendo o seu trabalho no lago da Galileia (veja, por exemplo, em ).
Tu vieste à margem do lago!
Não buscaste nem sábios nem ricos:
queres somente que eu te siga.
Senhor, olhaste em meus olhos
e, sorrindo, disseste meu nome!
Lá na areia deixei o meu barco
e contigo vou buscar outro mar!
Tu sabes tudo o que eu tenho:
no meu barco não há ouro nem prata,
somente redes e o meu trabalho.
Tu necessitas de mim
Do meu trabalho que a outros descanse
Do amor que queira seguir amando.
Tu, pescador de outros lagos,
ânsia eterna de homens que esperam,
meu bom amigo que assim me chama.
( ou )
5. Subsídios litúrgicos
Introito: Ao lembrar a fundação e a história da comunidade, o apóstolo Paulo escreve o seguinte às pessoas cristãs de Corinto: Eu plantei, Apolo regou; mas Deus o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento.
Hinos: LCI: 29 (Entrada), 41 (Confissão de pecados), 49 (Anúncio da Graça), 584 (Palavra), 285 (Bênção). Os hinos estão disponíveis no link: https://www.luterano.org.br/livro-de-canto/
Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, sempre de novo tu vens ao nosso encontro e te revelas a nós por meio de tua palavra, de teus sacramentos e das obras maravilhosas que criaste. Perdoa-nos se não reconhecemos os sinais de tua presença entre nós, com as quais queres mover nosso coração e nossa vida na tua direção. Senhor, sempre de novo te revelas a nós como um Deus de graça e misericórdia, conforme podemos enxergar em teu filho Jesus Cristo. Perdoa-nos se nos esquivamos de ti e preferimos contar com nossas próprias forças, ao invés de aprender a viver a partir da força que procede de ti.
Senhor, sempre de novo demonstras que contas conosco na divulgação de tua palavra e no estabelecimento de uma paz que brota da justiça, em especial para as pessoas desamparadas e desfavorecidas. Perdoa-nos se nos eximimos de nossa responsabilidade e esperamos que tu resolvas os problemas que nós criamos e que temos condições de resolver.
Abre nossos ouvidos para a tua palavra, que nos convoca sempre de novo a trilhar o caminho do seguimento de teu filho Jesus Cristo. Abre nossos corações para que ouçamos o clamor que brota do meio de teu povo carente de dignidade, solidariedade e esperança. Em nome de teu Filho Jesus Cristo, Amém!
Palavra de graça: Deus responde à nossa confissão de pecados assim como respondeu ao apóstolo Paulo atormentado por suas fraquezas: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza (2Co 12.9).
Oração de coleta: Senhor, nosso Deus, aquieta nossa mente e nosso coração no momento em que nos preparamos para ouvir tua palavra. Fala tu mesmo a nós na palavra que nos será anunciada e anima-nos a responder a ela com alegria, obediência e comprometimento. Por Jesus Cristo, teu Filho, Amém!
Bibliografia
BOVON, François. El evangelio según San Lucas. Salamanca: Sígueme, 2005.
FITZMYER, Joseph A. El evangelio según Lucas. Madrid: Cristiandad, 1987.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).