Prédica: Lucas 6.17-26
Leituras: Jeremias 17.5-8 e 1 Coríntios 15.12,16-20
Autor: Osmar Luiz Witt
Data Litúrgica: 6º. Domingo após Epifania
Data da Pregação:11/02/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Observações introdutórias
A perícope do Evangelho de Lucas destacada para a pregação faz parte da atividade de Jesus na Galiléia (4.14-9.50). Mais precisamente, porém, situa-se no início do Sermão da Planície (6.20-49). O texto paralelo no Evangelho de Mateus (5.1-7.29), mais desenvolvido e, por isso, posterior, é conhecido como o Sermão do Monte. A crítica literária sustenta que ambos os evangelistas dependem de uma fonte mais antiga de ditos de Jesus, os quais cada qual reuniu de acordo com sua ênfase teológica e seu público-alvo (cf. Stöger, p. 182; Rengstorf, p. 86). Trata-se de
uma coleção de palavras de Jesus, reunidas com uma finalidade parenética (visando à formação cristã), o que nos permite concluir que este Sermão era utilizado na instrução dos catecúmenos ou na doutrinação dos recém-batizados. Em Lucas (6.20-49), este catecismo se destina a cristãos oriundos do paganismo; em Mateus (cc. 5-7), a judeu-cristãos. (Jeremias, 1978, p. 39).
Esta distinção, bem como a fonte comum dos evangelistas, ajuda a compreender a razão por que em Lucas foram omitidas as partes referentes às leis e práticas judaicas (Mt 5.17-6.18), de menor interesse para seus leitores, e também por que em Mateus encontramos passagens que em Lucas aparecem noutro contexto (p. ex., Mt 6.9-13, 22s., etc.)
2. O texto por partes
vv. 17-19 – Estes versículos introduzem a nova cena que se de¬senrola em novo ambiente. Jesus desce do monte aonde se retirou para orar e, depois de passar a noite orando, vocacionou doze apóstolos dentre o grupo de seguidores. Com estes ele desce para um lugar plano, onde o espera um número maior de seguidores e seguidoras e onde se encontra uma multidão que o busca para ouvir seus ensinamentos e para ser por ele curada. Descer do monte e ir ao encontro das pessoas que esperam é o primeiro desafio que Jesus propõe aos seus escolhidos.
Lucas menciona no relato sobre o início do ministério de Jesus que a fama de sua atuação se espalhou por toda a região circunvizinha da Galiléia (4.14). Agora nomeia as regiões de onde procedem seus ouvintes: Judéia, Jerusalém, litoral de Tiro e Sidom. O evangelista emprega o termo Judéia em sentido lato: todo o país de Israel (assim também em 7.17; 23.5, cf. Bíblia de Jerusalém, p. 1.350, nota j). Essa nomeação dá a ideia de que de norte a sul, da capital aos locais distantes, as pessoas ouviam falar de Jesus e de sua fama.
De outra parte, a descrição dessa cena nos permite reconhecer três círculos de pessoas, que são identificadas pela sua proximidade em relação a Jesus: os apóstolos, escolhidos para estarem com ele e por ele serem enviados (9.1-6); os discípulos, um grupo maior de pessoas e do qual faziam parte as mulheres (8.1-3); e a multidão, que se aproxima para ouvir e ser curada de suas enfermidades. Pikaza deduz daí uma eclesiologia. Escreve ele:
Nesta cena Lucas manifestou a estrutura do mistério salvífico de Cristo e da sua igreja. Tudo procede de Jesus, que está no centro, passa através dos apóstolos e fiéis (os discípulos) e é força salvadora para aqueles que se acham dominados pelo mal, endemoninhados (p. 56).
Contudo, deve-se ter o cuidado de não identificar simplesmente o movimento de Jesus e seus seguidores e seguidoras com as características da igreja tal qual ela se desenvolveu. Se quisermos deduzir uma eclesiologia dessa cena é preferível acompanhar a observação de Stöger: O Espírito, que O ungiu, opera em todos, reunidos em torno dEle. Eis a imagem da Igreja! (p. 181).
A cena da descida do monte e posterior proclamação da boa nova lambem pode ser comparada à experiência de Moisés no Êxodo. Mie também recebeu as tábuas no monte Sinai e, depois de haver descido, proclamou a Lei para o povo de Israel. Alguns intérpretes entendem que esse paralelismo estaria na intenção do evangelista e que, dessa forma, Jesus estaria sendo apresentado como aquele que traz a nova lei. O Sermão da Planície seria, então, a lei de Jesus para seus seguidores e seguidoras (cf. Lancellotti e Boccali, p. 85). Contudo, não há como ignorar que o sermão inicia com anúncio da graça. A mensagem de Jesus ao mundo não começa sendo um ensinamento moral, nem é um conjunto de doutrinas. É, antes, uma proclamação absolutamente nova, internamente paradoxal. (Pikaza, p. 56)
vv. 20-22 – A partir daqui começa o Sermão propriamente. Jesus dirige-se aos seus discípulos. Não somente aos doze escolhidos, para dar continuidade ao anúncio do Reino, mas àqueles e àquelas que estão esperando por ele na planície. Sua fala começa com o anúncio da bem-aventurança. Não começa com imperativos e exigências, mas com uma inusitada inversão de valores que proclama bem-aventurados os que na prática são desventurados. Proclama, então, as quatro bem-aventuranças, às quais correspondem quatro ais nos versículos seguintes, que acentuam aquela inversão, proclamando infelizes os que na prática pensam ter alcançado a felicidade.
Primeiramente, são declarados bem-aventurados os pobres. Mateus introduziu o termo pobres de espírito. Muitas interpretações têm sido dadas para essa aparente distinção. Observemos, porém, que também aqui é necessário considerar o contexto diferente dos leitores dos dois evangelhos. Mateus escreve para uma comunidade formada de pessoas que vivem sob o risco de confiar demasiado na sua prática piedosa. Lucas para uma comunidade sob o risco de ser atingida pelos valores do mundo helenista (cf. 12.13ss.; 16.19ss.; 18.18ss.). Se com a expressão pobres de espírito Mateus destaca a dimensão interior (espiritual) e se Lucas enfatiza a dimensão externa (material) da pobreza, isto não se deve a que um estivesse preocupado apenas com essa e o outro com aquela dimensão. Antes pelo contrário, compreenderemos melhor quem são os pobres a quem Jesus declara bem-aventurados se levarmos em conta que a piedade farisaica, combatida por Mateus, tinha larga penetração nas camadas empobrecidas da sociedade judaica (cf. Rengstorf, p. 87). Seguindo nesta mesma direção, também Joachim Jeremias argumenta em lavor da necessidade de ampliar o conceito pobre para estar em sintonia com a proclamação de Jesus:
O ponto de partida (…) é o reconhecimento de que a sentença ptochoí euaggelítzontai (Mt 11.5 par.; Lc 4.18) é citação de Is 61.1, entendido como palavra profética: Enviou-me para anunciar a boa-nova aos pobres. Constatar isso é de grande ajuda, porque o conceito de pobre no contexto de Is 61. l se esclarece por toda uma série de expressões paralelas: os de coração partido, os que se acham presos (à culpa?), os acorrentados (v. 1); os que estão tristes (v. 2); os que estão em desespero de espírito (v. 3). Assim, está assegurado que os pobres são os oprimidos em sentido muito geral: são os opressos, que não se podem defender, os desesperados, os sem perspectiva de salvação. (…) É neste sentido largo que também Jesus a usou. (Jeremias, 1977, p. 175).
Sendo assim, as três bem-aventuranças que seguem servem como um desdobramento da primeira: os que têm fome, os que choram e os rejeitados por causa do Filho do homem pertencem à mesma categoria de pobres, mencionados no início. São aquela categoria de pessoas que não têm a quem recorrer para defender sua causa. Dependem inteiramente de que a misericórdia as alcance. Sua esperança está em que Deus lhes faça justiça. A antítese desse grupo são os ricos, que dispõem de recursos, podem exercer influência em benefício próprio e, aparentemente, não dependem de ninguém, confiam em si mesmos e na sua prática piedosa. Se devemos entender o conceito pobre sem o reduzir ao seu significado económico, o mesmo se dá em relação ao conceito rico. Não é somente o que tem muitos bens, mas aquele que, tendo muitos bens, põe neles sua confiança, esperança e sentido de viver (Lc 12.13-21).
Ao proclamar a bem-aventurança dos pobres, Jesus está em sintonia com a mensagem profética do Antigo Testamento. Israel experimentou em sua história que Deus não se esquece dos pobres e oprimidos (Is 49.13), ouviu o seu clamor e interveio para libertar e salvar da opressão (Êx 3.7s.). A proximidade do Reino de Deus em Jesus confirma a mensagem dos profetas, os quais também foram perseguidos e difamados, enquanto os falsos profetas foram adula dos (vv. 23 e 26).
v. 23 – A proclamação das bem-aventuranças é reforçada por mais uma promessa de recompensa no reino vindouro. Não se refere aqui a um futuro no qual alcança o prémio aquele que sofre neste mundo. Fala-se de um presente (…) Este presente é a verdade do reino que Jesus oferece e que nos traz (Pikaza, p. 57). Os seguidores e as seguidoras de Jesus vivem na iminente expectativa de que a inversão anunciada, que já pode ser experimentada como realidade concreta, se realize plenamente. Por isso, podem já agora alegrar-se e começar a festejar.
vv. 24-26 – Cada uma das bem-aventuranças recebe um contraponto. Os que são ricos, os que estão saciados, os que riem e os que são louvados são confrontados com um alerta vermelho. Cuidado, vocês que se julgam seguros! Vocês construíram suas casas sem alicerce (v. 49). A quem propriamente se destinam essas palavras? Por certo, não apenas aos outros da multidão, mas também aos seguidores e seguidoras de Jesus. Atingidos pela proclamação do juízo são todos os que não compreendem a grande mudança dos tempos, ou que não querem compreendê-la, pois temem suas necessárias consequências (Rengstorf, p. 86). Também no que se refere ao anúncio do juízo, Jesus está na companhia dos profetas que denunciaram a prática da injustiça e vindicaram o direito dos pobres como forma de render culto a Deus (cf. Is 5.8ss.).
3. Pregar o texto
Haverá ainda algo a ser dito sobre as bem-aventuranças que alcance ultrapassar os limites dos ouvidos daquelas pessoas que nos ouvem e que possa atingir os seus corações e provocar transformações em seus atos? Textos muito conhecidos podem facilmente produzir o sentimento de que de antemão já se sabe o que será dito. Os ouvintes pobres talvez pensem na consolação a que foram acostumados: aguentem seu sofrimento, pois vocês serão recompensados no céu. Os ricos, por sua vez, talvez se sintam constrangidos, pois terão de ouvir alguns xingamentos e ameaças. A questão a ser enfrentada pelo pregador ou pregadora é, pois, a de preservar o caráter inusitado da proclamação de Jesus. Essa proclamação é evangelho e lei. Ela restabelece esperança em meio à desesperança e remete aos perigos de uma existência centrada em si mesma. Lucas nos recorda que Jesus fala para provocar mudanças em seus ouvintes. A partir da nova situação escatológica da salvação, ele requer um novo agir. (Wendland, p. 24).
Não será demais lembrar que o pregador ou a pregadora tem diante de si uma comunidade a quem são dirigidas tanto as bem-aventuranças quanto os ais. As pessoas bem-aventuradas também serão confrontadas com a palavra de juízo, e aquelas que são atingidas pelo juízo serão lembradas das bem-aventuranças. A perícope é, antes de mais nada, um desafio a que seguidores e seguidoras de Jesus abdiquem da felicidade autoconstruída e se entreguem confiadamente ao Senhor que lhes oferece vida.
Fiquemos, porém, atentos a uma questão central nesta perícope. Vale para ela o que Goppelt afirma para todo o Evangelho de Lucas: O ponto de partida da atividade de Jesus é sua posição em relação ao problema do contraste entre ricos e pobres (p. 533). Disso, porém, não devemos deduzir que o evangelista introduz a ideia como se Jesus tivesse anunciado apenas uma simples inversão da situação social. O rico não se perde pelo simples fato de ser rico, nem o pobre se salva pelo simples fato de ser pobre. O critério geral é aquele formulado no início e no fim da parábola do agricultor rico (12.15,21): erra o sentido da vida todo aquele que acha poder viver daquilo que ele próprio adquire (p. 534).
A tentação de construirmos sozinhos um sentido para as nossas vidas é enorme. É quase uma exigência em vista da necessidade de provarmos constantemente nossas capacidades e competências. No entanto, a sociedade dividida entre pobres e ricos gera sempre maior insegurança e desconfiança; sempre mais isolamento e infelicidade; sempre mais pessoas se perguntando pelo sentido da vida, na miséria e na opulência. O que Jesus propõe é simples, mas uma simplicidade revolucionária: é preciso revisar os valores pelos quais damos sentido às nossas existências. Construir a vida sobre a rocha (v. 48) é guardar os ensinamentos de Jesus e não se deixar seduzir pelas riquezas materiais. A leitura de Jeremias acentua que a pessoa que põe sua confiança em Javé é como árvore plantada às margens de um rio. Ela é abastecida de nutrientes que lhe dão estabilidade. Da mesma forma, o apóstolo Paulo, na Carta aos Coríntios, recorda que a esperança da ressurreição nos remete para além da vida presente. Seguidores e seguidoras de Jesus vivem da graça: trabalham, lutam, amam, choram, acertam, erram, agradecem, confessam culpa, crêem, duvidam, partilham dores, são mal-falados, mas são felizes, pois sabem que nada é em vão quando a esperança está posta no Reino que virá. A pregação sobre este texto poderá levar a comunidade a uma reflexão sobre o que nos faz felizes e quais são os valores que guiam nossas vidas.
4. Subsídios litúrgicos
Saudação: Salmo 146.5-10.
Confissão de pecados: Misericordioso Deus! Nos te confessamos que, muitas vezes, temos preferido confiar em nós mesmos e na segurança de nossos bens, em lugar de nos confiarmos inteiramente em tuas mãos. Perdoa a nossa infidelidade. Tu asseguras a nossa felicidade e o nosso bem-estar, mas nós somos orgulhosos e não queremos reconhecer tua bondade. Perdoa a nossa auto-suficiência. Ao agirmos assim, somente conseguimos construir insegurança e ansiedades. Pedimos-te, Senhor: vem em nosso auxílio para que aprendamos a entregar nossas vidas e nossa felicidade em tuas mãos bondosas. Escuta-nos quando te rogamos: tem piedade de nós, Senhor.
Coleta: Querido Deus! Somos-te gratos porque nos conduzes com a tua Palavra. Por ela somos derrubados e outra vez postos de pé. Neste culto permite que a tua Palavra encontre acolhida em nossos corações, para que nossas vidas sejam construídas sobre um fundamento firme. Acolhe, Senhor, nossas orações e nossos cantos; concede-nos comunhão e abençoa a pregação. A ti trazemos nossa gratidão e nossa súplica, em nome de Jesus Cristo, que Contigo e com o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém.
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis, São Leopoldo : Vozes, Sinodal, 1982. v. 2.
JEREMIAS, Joachim. O sermão da montanha. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1978.
_____ Teologia do Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1977.
LANCELLOTTI, Angelo, BOCCALI, Giovanni. Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis : Vozes, 1979.
PIKAZA, Javier. Teologia de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1978.
KENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. (Das Neue Testament Deutsch, 3).
STÖGER, Alois. O Evangelho segundo Lucas : 1ª. parte. Petrópolis : Vozes,1973. (Coleção Novo Testamento: Comentário e Mensagem, 3/1).
WENDLAND, Heinz-Dietrich. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal, 1974.