Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 8.26-39
Leituras: Isaías 65.1-9 e Gálatas 3.23-29
Autor: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 4º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/06/2010
1. Introdução
O Evangelho de Lucas em sua composição literária é devedor ao Evangelho de Marcos e a uma fonte de ditos de Jesus (Fonte Q). Essa dependência não impede que, ao reelaborar o material recebido, ele dê o seu colorido e acabe por definir um caminho próprio. Esse caminho próprio é marcado por uma ênfase no encontro com o outro, de modo especial com o estrangeiro/estranho nos caminhos da vida e na celebração comunitária. Um exemplo clássico disso está no capítulo 24 – o relato dos caminhantes de Emaús –, onde o evangelho alcança seu ápice ao descrever a transformação que se dá no olhar de dois discípulos quando eles se permitem dialogar, caminhar e, principalmente, dividir a mesa com um estranho. Quando isso acontece, os olhos se abrem e Jesus é reconhecido. O mesmo acontece entre os capítulos 9 e 19, onde há um longo relato sobre a caminhada de Jesus a Jerusalém. Nela há conflitos e encontros, sendo uma parte significativa deles com estrangeiros. Esses dois exemplos nos apontam a realidade de uma comunidade que vamos descrever como culturalmente de fronteira. Ou seja, ela está entre duas culturas: a judaica (nesse caso, judaico-cristã) e a greco-romana. A convivência com o outro, de modo especial à mesa (lugar da refeição eucarística), é o desafio dessa comunidade.
Diante disso, fugindo ao que a maioria dos pesquisadores aponta, vamos localizar essa comunidade na região da Antioquia, e não na Grécia. As tradições judaico-cristãs galilaicas de Mateus e Marcos encontram nessa região geograficamente limítrofe e culturalmente fronteiriça o desafio de dialogar e negociar com a cultura greco-romana.
O evangelho é uma resposta a essa situação de conflito. Nossa pequena história acerca da salvação do endemoninhado geraseno, emprestada do Evangelho de Marcos pela comunidade lucana, acaba sendo embebida por essa realidade e por esses desafios.
2. Exegese
O endemoninhado geraseno e Jesus: um encontro transformador
Como afirmamos acima, essa pequena história foi assumida pela comunidade lucana a partir da tradição recebida do Evangelho de Marcos. Lucas conserva em grande parte tanto nossa pequena história como o bloco de narrativas da qual ela é parte na forma recebida, porém as pequenas mudanças redacionais que ele faz marcam uma nova construção de sentido para a comunidade. Com isso podemos afirmar que Lucas interfere redacionalmente no texto de Marcos, fazendo pequenas alterações, que se tornam significativas para o fortalecimento e a orientação da fé da comunidade.
O primeiro nível de pequenas alterações significativas dá-se na reorganização das narrativas presentes nos capítulos 8 e 9 de Lucas a partir do material recebido de Marcos. A primeira constatação é que a ordem de Marcos não é seguida à risca. Em Lucas 6.17-8.3, o evangelho segue um caminho próprio sem lançar mão do material marcano. A partir de Lucas 8.4-9.50, há uma profunda dependência do Evangelho de Marcos, porém com ações redacionais, como podemos ver no quadro abaixo:
Temas |
Lucas |
Marcos |
Ensino de Jesus em parábolas, resumindo o bloco recebido de Marcos |
Lc 8.3-18 |
Mc 4.1-9,10-
20,21-25 |
A família de Jesus, ainda dependente de Marcos,
mas retirado de outra parte do evangelho |
Lc 8.19-21 |
Mc 3.31-35 |
A tempestade acalmada |
Lc 8.22-25 |
Mc 4.35-41 |
O endemoninhado geraseno e a rejeição da cidade |
Lc 8.26-39 |
Mc 5.1-20 |
A filha de Jairo e a mulher encurvada |
Lc 8.40-56 |
Mc 5.21-43 |
A missão dos 12 |
Lc 9.1-6 |
Mc 6.7-13 |
Herodes e João Batista |
Lc 9.7-9 |
Mc 6.14-29 |
Multiplicação dos pães |
Lc 9.10-17 |
Mc 6.30-44 |
A confissão de Pedro e o desafio de levar a cruz |
Lc 9.18-27 |
Mc 8.27-31+
8.34-9.1 |
A transfiguração |
Lc 9.28-36 |
Mc 9.2-8 |
A cura de um jovem possesso |
Lc 9.37-43a |
Mc 9.14-29 |
Jesus anuncia sua morte e a discussão sobre o maior no reino dos céus |
Lc 9.43b-48 |
Mc 9.30-37 |
A aceitação dos que expelem demônios em nome de Jesus sem segui-lo |
Lc 9.49-50 |
Mc 9.38-40 |
As linhas em negrito mostram os pontos em que a ordem apresentada pelo Evangelho de Marcos não foi seguida por Lucas. Há inserção de material oriundo de outra parte do Evangelho de Marcos, há omissões de narrativas e modificações na maior parte delas. O que se percebe é que Lucas registra nesse bloco uma predileção por relatos de milagres e ações milagrosas, envolvendo grupos periféricos na cultura da época, como o estrangeiro, a mulher, a criança, os possuídos de espíritos impuros. Um destaque importante é que esse bloco precede e prepara um bloco tipicamente lucano e importantíssimo para o evangelho, que é composto pelos relatos da subida a Jerusalém (9.51-19.27).
O mesmo processo redacional percebido no bloco é encontrado também em nossa história. Lucas segue o texto de Marcos com pequenas e significativas alterações. A primeira alteração ocorre quando, ao apresentar a cidade dos gerasenos, Lucas acrescenta ao texto de Marcos que ela é fronteira da Galileia (8.26). A segunda alteração aparece na descrição do sofrimento do endemoninhado. Enquanto Marcos apresenta um catálogo de sofrimentos (Mc 5.3-5), Lucas espalha essa descrição em diversos versículos (27b, 29b-30) e de forma reduzida. Por exemplo, a autolapidação em meio aos sepulcros (Mc 5.5) é omitida. A terceira alteração é que Lucas modifica a descrição que Marcos faz do homem possesso como “possesso de espírito impuro” para possesso de demônios (única exceção é encontrado no v. 29, em que aparece a descrição “espírito imundo”). A quarta alteração é que, enquanto em Marcos (Mc 5.10) a súplica dos demônios é para “não sair da região”, em Lucas ela é substituída por não ir “para o abismo (abysson)”. A quinta alteração é que o latinismo encontrado no Evangelho de Marcos foi mantido com uma pequena alteração. Nesse evangelho – Marcos – encontramos como resposta à pergunta do nome dos demônios uma palavra proferida em latim: legião (legión), porque somos muitos (Mc 5.9). No Evangelho de Mateus essa parte foi suprimida (8.28-34). No Evangelho de Lucas, ela foi mantida modificando o complemento da resposta: Legião (legión), porque tinham entrado nele muitos demônios. Uma última alteração significativa que queremos destacar é a reação da cidade. Enquanto no Evangelho de Marcos a cidade, ao saber do que acontecera com o endemoninhado e com os porcos, pede a Jesus para se retirar, em Lucas encontramos que a cidade, ao saber como o endemoninhado fora salvo, pede a Jesus para se retirar, pois estavam possuídos de temor.
Essas modificações na perícope apontam para uma mudança de perspectiva. A história em Marcos, que se localiza em meio à guerra judaica, enfatiza através da concentração de citações sobre o sofrimento do endemoninhado a violência das legiões. Já o texto de Lucas está focado nos sofrimentos de um estrangeiro que vive além da fronteira, é possuído por demônios que falam outra língua e que trazem um grande sofrimento para esse homem.
Percebemos então duas ações redacionais que se complementam. A primeira no tratamento dado ao bloco recebido por Marcos, no qual a ênfase recai sobre diversos grupos periféricos atendidos por Jesus, sem omitir conflitos com os próximos – por exemplo, a família. A segunda, na história do endemoninhado geraseno, onde a ênfase se desloca para a localidade onde ele vive e para o sofrimento desse estrangeiro. É interessante perceber que a restauração daquele que vivia à margem da cidade determina uma ação de exclusão para com Jesus por parte dela. Por isso Jesus volta ao barco e, como desfecho dessa história, envia o homem restaurado de volta para casa, a fim de anunciar o que Deus tinha feito por ele. Se, por um lado, a cidade rejeita Jesus, de outro, ela se torna alvo da proclamação do homem que foi curado.
Essas duas ações redacionais conjugadas podem oferecer-nos pistas para a reflexão.
3. Meditação
A comunidade cristã em Antioquia, com sua memória registrada no Evangelho de Lucas e no livro de Atos, viveu o desafio da fronteira. Dobradiça entre o cristianismo judaico-cristão e o cristianismo gentílico que se espalhou no mundo mediterrâneo, articulou os desafios apresentados pelo choque de culturas. Entre os grandes desafios estava a mesa, lugar de encontro eucarístico, que deveria unir e dar identidade aos membros da comunidade. Nessa comunidade, infelizmente, a mesa dividia. Encontrar um gentio e um judeu assentados juntos seria algo impensável na cultura judaica da época. Como superar essa divisão? Como quebrar essa barreira? Como garantir o lugar do estrangeiro na vida de fé? Deveria ele se tornar judeu para ser aceito? Haveria outro caminho possível?
Diante desses desafios, o evangelho reconta as histórias e ensinos de Jesus em uma nova perspectiva. A partir das tradições judaico-cristãs recebidas através do Evangelho de Marcos e da fonte dos ditos de Jesus (fonte Q), o evangelho relembra e anuncia para sua comunidade o que essas fontes também afirmam: que Jesus atuou na Galileia e morreu e ressuscitou em Jerusalém. Porém relembra e enfatiza que Jesus atuou nas cercanias da Galileia e que, ao trilhar um longo caminho a Jerusalém (descrito em dez capítulos), atravessou terras de estranhos/estrangeiros, ensinando, curando e fazendo missão.
A preparação para esse caminho é o bloco de textos que inclui nossa história. Esses textos, recebidos do Evangelho de Marcos, são reorganizados em uma perspectiva que destaca a atenção de Jesus aos mais desprezados da sociedade. Em nossa história aparece o resgate de um estrangeiro endemoninhado. Um homem que está à margem da vida, sofrendo a violência da possessão demoníaca, abandonado pela cidade. A atuação de Jesus restaura a vida desse homem e, quando ele quer seguir Jesus, é enviado como um missionário à sua própria cidade, a mesma que pediu para que Jesus se retirasse dela (Lc 8.38-39). Esse estrangeiro impuro e marginalizado como também a sua cidade, que não estava aberta à presença de Jesus, são alcançados por sua ação restauradora. A dignidade e a vida desse homem são restauradas sem que ele se torne um judeu. Ao mesmo tempo, sua cidade intolerante com a presença de Jesus torna-se espaço para a ação missionária desse homem.
4. Imagens para a prédica
A nossa perícope e o bloco na qual ela se localiza colocam problemas que desafiam as comunidades de fé e que podem ser evocados para uma reflexão.
O primeiro desafio está no contexto das fronteiras que marcam nosso mundo e nossas comunidades. Fronteiras pensadas a partir de uma conceituação mais ampla, que mais do que descrever diferenças de espaços geográficos demarca também diferenças étnicas, de gênero, culturais, sociais, econômicas etc. Podemos iniciar a prédica destacando imagens daquilo que nos separa tanto em termos globais (guerras em nome de Deus, fome, violência, devastação do meio ambiente como marca do egoísmo humano) como também destacando imagens dos desafios e conflitos que nos separam no âmbito do cotidiano de nossas comunidades locais.
Frente a essas divisões, Lucas enfatiza as ações de Jesus que rompiam as barreiras e iam em busca do outro. Aquilo que nos divide deve ser, na perspectiva do texto, o que nos desafia para uma ruptura de barreiras e construção de espaço de partilha.
O segundo desafio é que, de acordo com o texto, a ruptura de barreiras constrói espaços de dignidade e restauração da vida do outro. O endemoninhado vivia fora da cidade, nos lugares da não-vida. O encontro com Jesus reconstrói sua existência, recoloca-o na cidade e na família e lhe confere um papel na vida de fé.
Finalmente, as imagens da divisão podem ser retrabalhadas com imagens de encontro, partilha e construção da paz. Nesse ponto, pode-se enfatizar que o período após o Pentecostes na tradição litúrgica nos desafia a refletir sobre a vida debaixo da orientação do Espírito. A partir dos escritos ligados à autoridade lucana (evangelho e o livro de Atos) encontramos o desafio da superação das divisões. No evento de Pentecostes (At 2), as barreiras entre Deus e os seres humanos são quebradas no simbolismo da chama que toca a cabeça de cada discípulo. Imediatamente isso gera a superação das divisões humanas, quando cada um passa a ouvir em sua própria língua. A superação das divisões deve ser um processo gerador de vida e restaurador da dignidade de todos e todas.
5. Subsídios litúrgicos
Abaixo, apresentamos alguns textos para uso litúrgico que enfatizam a inclusão, a quebra de barreiras e o amor transformador da vida. Esses e outros podem ser encontrados clicando aqui.
Saudação:
Saudamos as diferentes pessoas que hoje se encontram em um mesmo espírito, numa mesma fé e no mesmo amor. Em nome da vida partilhada e da morte vencida; em nome da liberdade sonhada e da dor esquecida; em nome da justiça esperada e da lágrima sofrida; em nome do amor sem fronteiras e da humanidade redimida; em nome da esperança anelada e da paz atingida; em nome da unidade desejada e da dignidade vivida; sintamo-nos carinhosamente acolhidas e acolhidos.
[Adap. por Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos a partir de texto litúrgico de D. Pedro Casaldáliga]
Acolhida do povo de Deus:
Reunimo-nos como povo de Deus bem-aventurado, que celebra a força dos pobres; que enxuga as lágrimas dos que choram; que cultiva a mansidão; que sacia a fome e a sede na prática da justiça; que exercita a misericórdia; que de coração limpo contempla a face de Deus na promoção da paz; que com perseverança enfrenta perseguições e injúrias todos os dias. Somos povo, no entanto misericordiosos; pobres, porém mansos; famintos e sedentos, mas justos; persegui- dos e injuriados e, ainda assim, pacificadores. Somos o que somos pela graça de Jesus Cristo, nosso Senhor. Somos o que somos pelo amor de Deus, nosso Pai. Somos o que somos pelas misericórdias do Espírito Santo, nosso eterno consolador.
[Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos, baseado em Mateus 5.1-12: As Bem-Aventuranças]
Creio, cremos:
Creio, cremos, na unidade da igreja, casa dos pobres, comunidade de fé, mutirão de fiéis.
Creio, cremos, na luta dos que sofrem, que cuidam da terra, que amam a vida, que celebram a paz.
Creio, cremos, na palavra bem-dita do diálogo, poema que se faz carne, que se revela nas diferenças, que se cala para ouvir em meio às muitas vozes a palavra do totalmente Outro: aquele que, sendo eterno, nos atrai com cordas humanas e, sendo humano, nos une com laços eternos.
[Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos]
Despedida:
Graças te damos, ó Deus, porque derramaste sobre nós o teu Espírito Santo. Que essa comunhão nos ajude a crescer na fé e no amor solidário. Que possamos, também nós, sair daqui cheios do teu Espírito, animados e animadas a partilhar a vida do teu reino com todos aqueles e aquelas que de nós necessitam. Por Cristo, teu Filho amado. Amém.
[Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos]
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).