Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Lucas 9.28-36 (37-43)
Leituras: Êxodo 34.29-35 e 2 Coríntios 3.12-4.2
Autor: Léo Konzen
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania (Transfiguração do Senhor)
Data da Pregação: 14/02/2010
1. Introdução
Todos nós somos constantemente influenciados por outras pessoas e pelo ambiente em que vivemos. Sempre fomos seres de relações e nunca deixaremos de ser. Grande parte das relações que nos constituem não dependem de nossas decisões. Muitas coisas, porém, resultam das nossas escolhas individuais e coletivas. Podemos optar conscientemente por valores e modos de vida, fazer opções políticas, escolher de quem queremos nos aproximar, com quem dialogar e conviver, de quem queremos aprender etc.
A celebração deste domingo convida à reflexão sobre as escolhas que podemos e devemos fazer em nossas vidas. Ela traz à nossa memória as opções do povo hebreu, que havia saído da escravidão no Egito e rumava para a “terra prometida”, destacando a liderança de Moisés, transfigurado pelo encontro com Deus no Sinai (1ª leitura). Traz presente especialmente a liderança de Jesus, cuja prática libertadora desperta muitos conflitos, mas que é confirmada pela Escritura e, diretamente, pela voz divina no relato de sua transfiguração (evangelho). Evoca, ainda, a reflexão e a prática das primeiras comunidades cristãs, que vão aprendendo aos poucos a ler com novos olhos todo o seu passado para encontrar nele as forças para o testemunho fiel de Jesus Cristo (2ª leitura). Os textos bíblicos apresentam momentos de luz e de confirmação das lideranças que animavam a difícil caminhada em busca de mais vida, de vida plena.
2. Exegese
O Evangelho de Lucas esforça-se para mostrar a solidez da fé da nova comunidade (cf. 1.1-4). Ele apresenta o seu relato mostrando um Jesus com credibilidade para ser seguido.
No relato da transfiguração de Jesus, isso se torna evidente. O contexto da narrativa é o final da atuação de Jesus na Galileia e a sua partida (literalmente, seu “êxodo”) para Jerusalém, onde, passando pela morte na cruz, será “elevado” ao céu. Pouco antes e logo depois, Jesus fala do seu futuro sofrimento e ressurreição e das condições para o seu seguimento, colocando aí a exigência de tomar a cada dia a cruz.
O relato da transfiguração indica que houve, na conflitiva caminhada de Jesus, experiências de percepção do sentido e do significado profundo de sua pessoa e de sua proposta. Essas experiências foram relidas e reinterpretadas, posteriormente, à luz da presença do Jesus ressuscitado na vida das comunidades e com cores e luzes que vinham da Bíblia. E cada evangelista, por sua vez, deu seus retoques ao relato, harmonizando-o com as grandes linhas de seu evangelho.
Os retoques de Lucas são impressionantes. Destacamos apenas os mais salientes. Em primeiro lugar, a referência à oração: Lucas é o único evangelho a dizer que o motivo para Jesus subir à montanha foi “para orar” e que a transfiguração de Jesus ocorreu “enquanto orava”. Outro detalhe é o assunto da conversa de Moisés e Elias com Jesus: eles falavam do “êxodo” de Jesus, que iria se consumar em Jerusalém (os outros evangelhos não especificam o assunto). Uma terceira característica é o sono dos discípulos, que faz lembrar o sono deles no monte das Oliveiras durante a agonia de Jesus. Quarto detalhe: a voz que veio do céu coloca Jesus como “meu Filho” e acrescenta “o Eleito”, fazendo lembrar os Cânticos do Servo de Javé, do Livro de Isaías.
A referência à oração de Jesus está em perfeita sintonia com o que Lucas apresenta em todo o seu relato, inclusive nos Atos dos Apóstolos. Muito mais do que os outros evangelhos, ele mostra Jesus em oração; nos Atos, apresenta as comunidades também como orantes. Isso sugere que o autor acredita na oração como espaço de manifestação de Deus. A comunidade pode refazer a experiência da transfiguração no contexto de seus momentos litúrgicos e de oração, contanto que estejam em sintonia com o projeto do reino de Deus, como ocorreu com o próprio Jesus.
A referência ao “êxodo” de Jesus, sobre o qual Moisés e Elias conversam com ele, revela a compreensão de Lucas sobre o sentido da caminhada de Jesus, que culmina na paixão e morte na cruz. O evangelista vê o caminho de Jesus como uma espécie de reedição do êxodo da escravidão no Egito e da entrada na terra prometida. A morte de Jesus na cruz, então, não é um fracasso ou uma derrota. Ela é, antes, o momento alto de um caminho de libertação. Por esse caminho Jesus vai para a glória de Deus, e sua morte é também sua “elevação” para junto de Deus. Não se trata, evidentemente, da libertação da alma de Jesus em relação a seu corpo, como se esse fosse sua prisão, nem de uma libertação da condição humana de Jesus, como se essa fosse um embaraço para ele. Trata-se, isto sim, da atribuição do sentido mais profundo e radical às opções, à prática liberadora e, enfim, à própria pessoa de Jesus.
Para caracterizar esse sentido profundo da atuação e da vida de Jesus, aparecem no relato da transfiguração Moisés e Elias, representantes qualificados das Escrituras (Lei e Profetas). Lucas diz que os dois conversavam com Jesus sobre o “êxodo” que iria se consumar em Jerusalém. Portanto a paixão e a morte de Jesus são refletidas aqui com estas características: estão em harmonia com as Escrituras e representam a partida de Jesus para junto de Deus, de onde enviará, depois, o Espírito Santo. Esse testemunho das Escrituras é reforçado pela voz proveniente da nuvem, isto é, de Deus mesmo.
A referência à inclusão do termo “o Eleito” na voz que veio do céu mostra a necessidade de se interpretar a Bíblia à luz da prática de Jesus e de sua elevação para junto de Deus. Por outro lado, a prática e a pessoa de Jesus tornam-se compreensíveis quando vistas à luz de textos como aqueles dos Cânticos do Servo de Javé, o Eleito.
O sono dos discípulos aproxima esse episódio do relato da agonia de Jesus no monte das Oliveiras. Lucas associa intencionalmente as duas cenas, mais do que os outros evangelistas, uma vez que tem todo o interesse em mostrar o sentido positivo da cruz para a qual Jesus se encaminha, cruz que é consequência de sua corajosa ação profética, libertadora e conflitiva no meio do povo.
3. Meditação
No filme Titanic, entre outras coisas, impressiona um jovem que tinha entrado clandestinamente no navio. Durante a viagem, ele se enamora de uma mulher e os dois estabelecem um relacionamento muito significativo. Naufragado e estando prestes a morrer nas águas geladas, ele não se arrepende de ter participado da viagem que o levou à morte, mas, ao contrário, diz à mulher amada que a viagem valeu a pena porque foi nessa que a conheceu
Assim como esse jovem, as pessoas são capazes de grandes sacrifícios quando veem sentido nas escolhas que fizeram e naquilo que fazem ou devem fazer. Ao contrário, resistem e se negam a grandes esforços ou renúncias quando não percebem razões para isso.
A opção pelo seguimento de Jesus sempre foi algo exigente. Também hoje é assim. E sempre será. No próprio evangelho não faltam advertências em relação a isso. É preciso tomar a sua cruz cada dia – diz Jesus no Evangelho de Lucas (9.23). Mas não nos faltam testemunhos de pessoas que abraçam essa cruz com alegria e entusiasmo. Muitos dizem que encontram aí o sentido de suas vidas. Alguns chegam mesmo ao dom da própria vida no martírio. E não se queixam disso, como também não se queixou o jovem do Titanic.
Onde encontraram e encontram tanta vitalidade? Certamente na experiência de sentido. Essa, porém, é misteriosa, e nem todos a fazem em torno das mesmas coisas. De qualquer maneira, sem experimentar sentido ninguém vai longe em compromissos livremente assumidos.
Os discípulos de Jesus tinham se entusiasmado com a pessoa, as práticas e a proposta de libertação dele. Como muita gente, eles percebiam que “um grande profeta surgiu entre nós” e que “Deus visitou o seu povo” (Lc 7.16). Mas não podiam imaginar, pelo menos no início, as implicações desse projeto. O próprio Jesus certa- mente foi crescendo nessa percepção das consequências de suas opções. No caminho, porém, a cruz começou a aparecer no horizonte. Confusão e medo também. Para Jesus, as coisas pareciam mais claras, mas não para os discípulos.
Nesse contexto, apresenta-se no evangelho a cena da transfiguração. Ela é, acima de tudo, uma experiência de sentido. Sentido que provém de um olhar para trás e de um olhar para frente.
Olhando para trás, os discípulos puderam perceber que Jesus estava em profunda sintonia com o coração da Bíblia. No relato da transfiguração, isso está representado na aparição de Moisés e Elias, que conversam com Jesus. E, segundo Lucas, falam justamente daquilo que é o nó da crise dos discípulos, ou seja, a cruz de Jesus. Interessante é que Lucas classifica o assunto da conversa como “seu êxodo” ou “sua partida”, que deveria se realizar em Jerusalém. Essa sintonia e concordância entre a vida de Jesus como um todo (particularmente sua morte na cruz) e as Escrituras é uma das questões que afligiam as pessoas das primeiras comunidades cristãs. Isso não é difícil de entender, considerando que havia se difundido uma interpretação da Bíblia que fazia do Messias um poderoso ungido de Deus que derrotaria os inimigos de Israel e extinguiria os impuros do meio do povo. Além disso, havia sinagogas judaicas que condenavam veementemente Jesus e seus seguidores. Perceber e mostrar, então, a sintonia de Jesus com as Escrituras era de grande importância, que fazia reencontrar o sentido da caminhada.
O relato da transfiguração também projeta um olhar para frente: Jesus é percebido com características divinas, semelhantes ao Jesus das aparições pós- pascais. O aspecto do seu rosto alterou-se, diz o texto, e suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura. Mais adiante, uma nuvem o envolveu, a ele e aos dois discípulos. Essa nuvem faz lembrar aquela da ascensão e é um símbolo bíblico tradicional para expressar a presença divina. Quando o olhar para frente faz perceber que “há uma luz no fim do túnel” ou quando se pode experimentar antecipadamente um pouco dos resultados dos esforços, então as pessoas se reanimam. Foi o que aconteceu com os discípulos de Jesus. Eles fizeram a experiência do sentido profundo da caminhada de Jesus. Essa não era uma caminhada para a morte, embora a morte estivesse incluída nela. Era, isto sim, uma caminhada rumo à glória. Era um êxodo que, como aquele do livro do Êxodo, levava a um bom termo.
Uma tentação sempre presente na vida das pessoas e das comunidades é querer a “terra prometida” sem passar pelo êxodo do deserto ou da cruz. Essa pode ter sido também a tentação de Pedro, que quis fazer tendas, talvez para perpetuar a experiência sem precisar voltar ao árduo caminho da construção da sociedade na qual reine a vida. Não deveríamos relatar aqui também as tentações de tantas pessoas, comunidades e instituições que cultivam uma religiosidade milagreira e triunfalista, sem querer carregar a cruz da construção de um outro mundo no qual reinem a justiça e a paz?
Onde e como podemos fazer experiências de sentido que nos motivem a continuar no caminho do seguimento de Jesus, na construção do reino de Deus? O Evangelho de Lucas nos indica um locus especial, certamente não único: a oração. Ele destaca essa prática em vários momentos, tanto na vida de Jesus como na das comunidades cristãs. A oração e as celebrações são espaços próprios para experimentar a presença de Jesus, ao mesmo tempo crucificado e glorificado ou ressuscitado. Mas essa experiência não é automática nem mágica. As orações e celebrações precisam ser devidamente preparadas e realizadas num contexto de práticas de seguimento; caso contrário, elas se tornam vazias e sem sentido. Para Lucas, a oração e as celebrações ajudam a fazer a experiência do sentido justamente da caminhada profética, libertadora e conflitiva, que faz acontecer o “ano da graça” do Senhor.
4. Imagens para a prédica
Diversas imagens podem ajudar na prédica:
Pode-se lembrar o efeito de uma boa avaliação de nossa caminhada, na qual se percebe o sentido daquilo que vem sendo feito e alcançado e na qual se olha também para frente, vislumbrando as “luzes no fim do túnel”.
Também poderá ser de proveito a imagem da celebração do aniversário, bastante valorizado em nossa cultura, constituindo-se num momento de luz, de “transfiguração”, integrando o passado, o presente e o futuro.
Certamente valerá lembrar que nada de importante se conquista sem grandes esforços e sacrifícios. E que, para manter-nos animados na busca, é necessário criar momentos de vivência antecipada do que se busca alcançar.
Pode-se evocar, ainda, as festas que se realizam ao longo do processo de construção e por ocasião da inauguração de alguma obra importante para uma comunidade, principalmente se ela resultou do esforço da própria comunidade.
Finalmente, a imagem do aperitivo poderá ajudar também: o aperitivo já é o início da refeição que virá a seguir e, ao mesmo tempo, anuncia que algo melhor e maior está para chegar. Quando conseguimos produzir “aperitivos” do reino de Deus, estamos diante de transfigurações que animam para prosseguir na caminhada.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia:
Ó Deus, fonte de luz, que na transfiguração do teu Filho Jesus nos revelaste o sentido profundo do exigente esforço humano para construir um mundo de vida para todos os teus filhos e filhas, concede à tua igreja a graça de uma alegre e confiante coragem de comprometer-se de modo perseverante com teus projetos de amor. Isso te pedimos por teu Filho Jesus Cristo e em união com o teu Santo Espírito. Amém.
Preces:
Apresentemos, agora, nossas preces a Deus, que está presente no meio de nós. Digamos após cada oração: Ilumina, Senhor, teus filhos e filhas!
Oremos pelos seguidores de Jesus Cristo, para que em meio a seu esforço de humanizar o mundo encontrem momentos de luz e renovação de seu compromisso.
Oremos pelos governantes, para que liderem suas comunidades e as nações na busca da justiça e da paz.
Oremos pelos líderes das comunidades eclesiais, para que se inspirem sempre no exemplo de Jesus e não tenham medo das dificuldades.
Oremos pelas vítimas da violência, para que seu sofrimento se transforme em apelo de transformação da realidade.
Oremos por nós todos, para que tenhamos a coragem de tomar a cada dia nossa cruz e caminhar com Cristo para a vida plena.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).