Luteranismo e Participação Política *
Martin N. Dreher
1. LUTERO E POLÍTICA
Lutero, homem do século XVI, é tudo, menos apolítico. Vivendo na tradição de Santo Agostinho e de Bernardo de Clairvaux, Lutero tem a convicção de que o Dia do Senhor irromperá a qualquer hora, pois Satanás está a solta. A defesa que a Cúria e o poder papal apresentam para a prática da venda de indulgências estão a evidenciar que o Anticristo vem vindo. Isso lhe dá a convicção de que nunca a Igreja esteve tão mal. Por outro lado, observando as autoridades de seu tempo, Lutero vai ver que nunca o mundo esteve tão mal. Vê que Satanás não se contenta apenas em invadir a Igreja; ele também quer governar o mundo, para destruir a criação de Deus, para reintroduzir o caos que havia antes da criação. O tempo em que ele está vivendo não é apenas tempo de permanecer firme na fé, mas também tempo de sobreviver no mundo. Lutero não entrega a Igreja e o Mundo ao caos. Os cristãos estão em perigo, mas contam com defesa; são atacados, mas não estão sem defesa. Onde o Evangelho é pregado, há a possibilidade de se sobreviver aos ataques de Satanás. Onde a doutrina cristã arranca a autoridade civil das mãos do Anticristo, o mundo pode ser melhorado. Dentro dessa convicção Lutero escreve, por exemplo, em 1520, o livro: ¨A nobreza cristã de nação alemã a respeito do melhoramento do estamento cristão¨. O tempo é de melhoramento, ¨Besserung¨.
Dentro da perspectiva de que o cristão não entrega nem a Igreja, nem o mundo ao diabo, pois são boas obras de Deus, Lutero vai lutar por boas obras. Assim, a 31 de outubro de 1517, em suas 95 teses, Lutero vai gritar aos cristãos: boas obras são melhores do que indulgências!
¨Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidades e a despeito disso gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do papa, mas provoca a ira de Deus¨. (tese 45)
Lutero luta por boas obras, não como méritos diante de Deus, mas como serviço necessário ao mundo e a suas instituições. O professor de Wittenberg é um profeta da penitência, sem dúvida, mas não de penitência monástica. Sua pregação não é ascética, distanciada do mundo. Não pretende transformar o mundo em um convento, como Savonarola. Sua pregação destina-se ao mundo para que o mundo permaneça e seja o que é: a boa criação de Deus (1).
Em outubro de 1520, Lutero publicou o manifesto ¨Da liberdade cristã.¨ Nele, defende a fala da liberdade para a salvação e da liberdade para a ação. ¨Um cristão é senhor livre de todas as coisas e não está sujeito a ninguém¨. Livre das opressões da lei, o crente é herdeiro cia santidade, da justiça e da piedade de Cristo. Liberdade recebe-se gratuitamente e transmite-se ao próximo gratuitamente. Por isso, ¨um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos¨ (2). A dimensão coletiva desse serviço foi mostrada por Lutero no escrito ¨A nobreza cristã de nação alemã, a respeito do melhoramento do estamento cristão¨. Deve-se deixar de lado o luxo e a ostentação; deve-se controlar o comércio; deve-se combater a usura, os monopólios, fechar as casas de prostituição. Suas propostas não são propostas de reforma, mas de ¨melhoramento¨ (3). Reforma é para ele ação de Deus. A partir daí pode-se compreender que sua ética, também sua ética política, não é ética válida para todos os tempos, mas ética de sobrevivência em tempo difícil. É ética no contexto de caos e de perigo, não é lei, mas adaptação à necessidade da época. O cristão vive entre a raiva do diabo e a ira de Deus, entre o poder do caos e o juízo que vem, por isso o tempo que lhe resta deve ser usado para proteger a criação, o campo em que vivemos, com todas as forças. Até a hora derradeira, o ser humano tem a incumbência de cuidar do mundo de Deus. Nisso ele é cooperador de Deus. Aos que fugirem desse compromisso, Deus castigará, mesmo que tenham mandado rezar muitas missas, participado de peregrinações e lutado contra hereges. Correr atrás da salvação e abandonar a família, casa e lar, a política, não é boa obra. Aí quem se alegra é o diabo, pois nós o ajudamos a promover o caos. O diabo faz festa quando o cristão pára. Lutero transfere o alvo da ética cristã do céu para a terra. Boas obras produzem salvação, a salvação da sobrevivência em um mundo em perigo. Só a partir daí é que se pode compreender toda a abrangência do conceito de política de Lutero. Política abrange para Lutero o âmbito que vai dos sapatos ao imperador. Ter ou não ter sapatos, ter ou não ter imperador é questão política. Política abrange: ¨comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, consorte piedoso, filhos piedosos, empregados bons, superiores piedosos e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, vizinhos fiéis, e coisas semelhantes¨ (4).
A partir dessa convicção é que Lutero vai falar a respeito da autoridade, da economia, de escolas, dos monopólios, da situação agrária. Dizer que não se ocupasse com política é algo temerário. Suas palavras aos governantes assustam a todo o político: ¨E deves saber que desde o início do mundo um príncipe sábio é ave rara, e um príncipe honesto mais raro ainda. Em geral são os maiores e os piores patifes da terra; por isso sempre tem que se esperar o pior deles e pouco de bom, especialmente em relação às coisas divinas que dizem respeito à salvação da alma.¨ (5) ¨Nada mais sabem fazer que desfolar e raspar, cobrando imposto sobre imposto, uma taxa sobre taxa, soltar aqui um urso, ali um lobo. Além disso não há neles nem fidelidade nem verdade, e portam-se de uma maneira que até ladrões e bandidos considerariam excessiva.¨ (6) ¨Estes são nossos príncipes cristãos que defendem a fé e querem devorar o turco. De fato, bons companheiros, nos quais certamente se pode confiar! Uma coisa conseguirão com tal inteligência e sutileza: quebrarão o pescoço e lançarão o país e o povo em desgraça e miséria.¨ (7) ¨Pois há bem poucos príncipes que não sejam considerados loucos ou patifes.¨ (8) ¨Não se tolerará, não se pode nem se quer tolerar indefinidamente vossa tirania e caprichos! Queridos príncipes e senhores, atendei a isso. Deus não o tolerará por mais tempo. O mundo já não é mais aquele, como quando caçáveis e perseguíeis as pessoas como animais de caça. Por isso deixai vossos crimes e violências, e pensai em proceder com justiça.¨ (9).
Lutero critica, aconselha, assessora, faz pronunciamentos, está convicto do fim, da ação do diabo que não quer permitir a vinda do ¨querido dia final¨. Ele é teólogo da vida cristã entre os tempos. Sua atividade política é atualização da mensagem cristã da vinda iminente de Deus. Por isso passam a ser proverbiais suas palavras de que se soubesse que o mundo terminaria amanhã, plantaria ainda hoje uma macieira; não entregaria, hoje, no último dia, a boa criação de Deus ao caos, ao diabo, por ser apolítico.
2. UMA CATÁSTROFE E SUAS CONSEQUÊNCIAS
As palavras de Lutero a que nos referimos acima são pronunciamentos anteriores a 1525. Ainda vamos encontrar outros pronunciamentos no período posterior e que têm caráter semelhante. Penso, por exemplo, em seus escritos a respeito da usura, nos quais discute com o capitalismo incipiente (10). A catástrofe da Guerra dos Camponeses, no entanto, traz uma clara cesura, pois após a catástrofe, Lutero pede à, autoridade que assuma a reforma em suas mãos. Surge assim o ¨episcopado supremo do senhor territorial¨. Com isso, todo o monarca era também bispo de sua igreja. Ele poderia dispor de seus pastores como quisesse. O mesmo deve ser dito em relação aos crentes. Essa situação iniciada em 1525 viria a ser definitivamente sancionada pela Paz de Augsburgo de 1555. A situação criada parece-me ser fatal em um duplo sentido: a) o luteranismo ficou sendo provinciano; ficou limitado às fronteiras dos diversos principados e cidades. Sua expansão só viria com as crises econômicas que se fizeram sentir na Europa Central e que levaram à migração de grandes partes da população alemã. Mesmo assim, o caráter provinciano do luteranismo estava fixado. b) Sendo supremo bispo em seu território, o senhor territorial passou a controlar todos os meios de formação de opinião: a escola, o púlpito e a cátedra. Ele passa a determinar o culto e a vida de seus súditos. Aos súditos é deixada a religiosidade interior, que nada mais tem a ver com conformação política da sociedade. Exemplo disso é o que vai ser feito com o Culto luterano. Ele passa a ser instrumento de controle da vida pública dos membros luteranos. Podemos encontrar exemplos para tanto na época da Ortodoxia Luterana, na época do Pietismo Luterano, quando o rei prussiano torna-se pietista e em nome do pietismo controla a política, e na época do despotismo esclarecido.
Tomo como exemplo mais próximo de nós um acontecimento do século passado. Ele é interessante, pois precede à emigração de alemães para o Brasil e evidencia, pelo menos parcialmente, algumas características da postura luterana no Brasil (11). Em 1804, o rei da Prússia, Frederico Guilherme III, escreveu uma carta a seu primo, o Czar de todas as Rússias, na qual comunicava que nos próximos dias seguiria uma delegação para a Rússia. Essa delegação deveria estudar a liturgia e a música sacra russa com a finalidade de ¨acorrentar os membros das comunidades aos cultos, e assim solapar de antemão qualquer pensamento revolucionário e perigoso¨. Na mesma carta, o rei diz que a liturgia é para a comunidade o mesmo ¨que a parada para o exército¨, faz com que os membros acertem o passo! Pouco depois o rei ordenaria que cada comunidade empregasse um músico ou um professor, que ensinasse a comunidade a cantar. Quem canta seus males espanta, não pensa, é bom súdito. Ele próprio elaborou nova liturgia, orientando-se em modelos do século XVI. Todo o pastor deveria rezar pela mesma cartilha, pelo mesmo manual de culto.
O Estado controla os luteranos, as obras de Lutero, sobre a usura, sobre a autoridade secular, sua exposição do Salmo 82, estão esquecidas. O luterano é súdito fiel, sempre disposto a se submeter à autoridade, que usa a escola, o púlpito e a cátedra teológica para reproduzir súditos fiéis. Esses súditos fiéis vêm ao Brasil a partir de 1824.
3. O POVO LUTERANO IMIGRANTE
O povo luterano imigrante é apolítico, mas vai desde o início ser usado politicamente no Brasil. Sua vinda deve-se, em primeiro lugar, à ideologia do ¨branqueamento da raça¨. D. João VI encontra um Brasil negro e há a necessidade de branquear a raça existente. O imigrante luterano é importado contra o negro! (12)
O regime do trabalho escravo, por outro lado, está se tornando antieconômico. Dentro do esquema mercantilista inglês é necessária a criação de uma classe média no Brasil. O escravo produz, mas não compra. O colono luterano produz e compra. O colono luterano recebe as terras que o negro não recebe (13).
O Rio Grande do Sul é área de litígio entre o Brasil e a Argentina. Há que povoar a área. O imigrante luterano vai ser usado politicamente para resolver uma questão de segurança nacional (14).
O povo luterano imigrante vai ser usado politicamente ao produzir gêneros de subsistência. Fortalece assim o latifundiário que fica liberado para sua produção de monocultura.
Usado politicamente, o imigrante é politicamente marginal, devido a sua situação jurídico-legal. A Constituição Imperial assegura-lhe liberdade religiosa (artigo 179), mas proíbe-lhe o testemunho público (artigo 5) e só permite que católico-romanos sejam eleitos para o parlamento (artigo 95). Seu matrimônio não é reconhecido e quando casa com elemento católico, perde o direito de educar os filhos na fé de seus antepassados. Além do mais, seus filhos são considerados filhos naturais. Não lhes é concedida a cidadania. A exigência de juramento ao assumir função pública, comprometendo-se a zelar pela religião católico-romana, afastava-o definitivamente da vida política e pública (15).
O elemento que em sua terra de origem estava fora da atividade política, continua fora da política na terra em que imigra.
Os poucos luteranos que votam, dão seu apoio ao Partido Liberal, pois encontram em Gaspar Silveira Martins, que a partir de 1866 passa a se pronunciar em seu favor, um dos poucos que defendem seus direitos. O ¨Silberner Martin¨ parece concentrar em sua pessoa as esperanças dos luteranos. Sua defesa dos luteranos no caso da construção da torre da Igreja Luterana de Santa Maria da Boca do Monte parece haver aumentado ainda mais suas simpatias. Quer me parecer que ao final do Império há toda uma movimentação que aponta para um progressivo envolvimento, constante dos luteranos em direção a uma participação ativa na política. Falta o momento apropriado, mas… esse não vem. O que vem é preparação para a catástrofe (16).
4. O PREPARO DA CATÁSTROFE
Às vésperas da Proclamação da República há movimentação política entre os teutos no Rio Grande do Sul. Em 1881 o parlamento provincial tem os primeiros dois deputados teutos. A Proclamação da República traz consigo a separação de Igreja e Estado e a grande naturalização. A fé luterana não é mais motivo para discriminação política e todos são cidadãos brasileiros mercê da naturalização. Desgraçadamente, porém, o Partido Liberal havia fornecido os últimos Gabinetes do Império. Os antigos conservadores aderem ao Partido Republicano. Os latifundiários que nunca foram favoráveis ao pequeno proprietário continuam no poder. Em 1893 eclode a Revolução Federalista, e, os luteranos estão do lado errado, pois apóiam os liberais. O resultado da Revolução Federalista é totalmente adverso aos luteranos. Sua incipiente atividade política está destruída. Os teutos de maneira geral e os luteranos, em particular, estão fora da política. Estabelece-se um acordo tácito entre vencedores e vencidos: deixa-se os descendentes de alemães serem alemães, e isso significa marginalidade total (!), e recebe-se, em contrapartida, seus votos. O fato de o Rio Grande do Sul adotar, sob a hegemonia do Partido Republicano, uma constituição positivista é para os luteranos mais catastrofal ainda, em sentido político. O Estado não intervém na vida intelectual do povo. As ciências, as artes e a religião desenvolveram-se independentemente do Estado. ¨Aprenda quem quiser, ensine quem puder¨. Alijados da política, favorecidos pela constituição positivista, os luteranos vão se concentrar nos valores de uma fé interiorizada e nos valores de sua etnia. A Revolução Federalista sedimenta o quisto étnico. Não é por acaso que nos anos que vão de 1893 a 1930 as Sociedades Alemãs e Escolas Alemãs vão atingir sua maior expressão na história dos teutos no Rio Grande do Sul (17).
Desgraçadamente, na época em que no Brasil os luteranos são alijados da participação política, a Alemanha vem a ¨redescobri-los¨. A publicação da obra de Arsène Isabelle a respeito do Brasil faz com que na Alemanha se fique atento para a nova possibilidade de mercados que se abrem para a incipiente indústria alemã. Os cônsules prussianos visitam as ¨colônias alemãs¨, por sua intermediação consegue-se pastores para os luteranos, p. ex., de São Leopoldo (Hermann Borchard é o mais conhecido exemplo), os cônsules suíços não vão ficar atrás! Assim surgem as obras de Avé-Lallemant, von Tschudi e tantos outros. O homem que mais vai formar pastores para os luteranos brasileiros é Friedrich Fabri, o pai do movimento colonial alemão. Sua obra ¨Bedarf Deutschland der Colonien? Eine politsch-oekonomische Betrachtung¨, Gotha 1879, é escrita a partir de relatos de seus alunos, pastores no Rio Grande do Sul. Seu filho Cari Fabri, um dos fundadores de Dona Francista/SC, sonha mais tarde com a idéia de uma ¨Nova Alemanha¨ fruto da separação das Províncias Meridionais brasileiras do restante do país. Enquanto Bismarck comanda a política da Prússia e mais tarde do Reino Alemão, vale a sentença de Bismarck: ¨Um alemão que despe sua pátria como um velho casaco não é mais um alemão para mim, não tenho mais interesses de compatriota em relação a ele¨. Mas nem todos fizeram suas essas considerações. Durante a Revolução Federalista espera-se, na Alemanha, a separação dos Estados Meridionais. A ¨Nova Alemanha¨ seria o substitutivo das colônias que a Alemanha não tinha. No entanto, após a queda de Bismarck, a situação se modifica. No Reino Alemão as idéias pangermanistas dominam e em relação ao Brasil é desenvolvida uma política de preservação da germanidade: Mantendo-se os alemães e seus descendentes no Brasil, alemães, ter-se-á mercados para os produtos alemães. Quatro são os caminhos usados para alcançar tal objetivo: a imprensa alemã, a escola alemã, as congregações e igrejas de fala alemã e a marinha alemã. O Reino Alemão tenta implantar um sistema de cabo submarino para fornecer notícias aos jornais de fala teuta e fornece verbas substanciais para esses mesmos jornais. O tiro saiu pela culatra, pois só um jornal de Santa Catarina, o ¨Urwaldbote¨, vai fazer propaganda para o Reino Alemão. Bem maior foi o êxito obtido com o financiamento da ¨escola alem㨠no Brasil. Associações como o Allgemeiner Deutscher Schulverein, o Alldeutscher Verband, o Flottenverein, o Deutsch-Brasilianischer Verein, a Blumenau-Stiftung canalizaram muito dinheiro para essas escolas. Organizações protestantes como, a Associação Gustavo Adolfo e a Sociedade Evangélica para os Alemães Protestantes na América fariam o mesmo. O próprio Reino colocou meios à disposição do projeto escolar: Em 1902, 56 escolas recebem um total de 42.068 Marcos. Os Chefes de Legação têm um fundo à disposição com o qual as escolas e os professores deveriam ser auxiliados. Em 1905 esse fundo era constituído por 15.000 Marcos. Nesse mesmo ano o Fundo Escolar do Ministério de Relações Exteriores enviou 60.000 Marcos ao Brasil. Em 1906, o Ministério de Relações Exteriores financiou a edição de um livro de leitura alemã para as escolas no Brasil. O livro foi elaborado, contendo referências à vida na Alemanha, lendas alemãs e cenas da vida do imperador alemão. — As constantes visitas de navios da marinha alemã também não devem ser minimizados. A finalidade dessas visitas é patente, quando se pode ler, em relatórios, que visavam despertar nos descendentes de alemães ¨patriotismo alemão¨. Os reflexos da política pangermanista podem ser também encontrados na atividade eclesiástica desenvolvida pelas Igrejas Territoriais alemãs. Não é por acaso que após a queda de Bismarck a Igreja Territorial da Prússia promulga, em 1900, uma lei possibilitando a filiação de comunidades evangélicas no exterior e seus pastores à Igreja Territorial da Prússia. Não é por acaso que essa mesma Igreja cria em 1911 um Seminário para o Exterior, no qual vão ser formados pastores exclusivamente para o Brasil, e que tenha a partir desse mesmo ano um Representante Permanente, residindo em Porto Alegre. Em todas essas atividades uma tônica vai ser determinante: manter e preservar a germanidade dos alemães evangélicos no Sul do Brasil (18).
As conseqüências da marginalização política no Brasil após a Revolução Federalista e da política pangermanista do Reino Alemão, através dos quatro meios acima citados, se evidencia plenamente em 1922 e em 1924. Quando das celebrações do Centenário da Independência do Brasil, os teutos do Rio Grande do Sul vão celebrar a participação dos imigrantes no desenvolvimento do Brasil desde o descobrimento do Brasil. Descobre-se coisas sem dúvida interessantes, mas o interesse pelas descobertas está a evidenciar a situação de marginalidade. Essa marginalidade explodirá em 1924, ano do centenário da imigração alemã. Alimenta-se o orgulho em relação à herança dos antepassados, à etnia e faz-se juramentos solenes de manter a herança dos pais. Quer-me parecer, contudo, que já antes da 1ª. Guerra Mundial começam a aparecer os primeiros nomes de luteranos nas prefeituras e nas câmaras de vereadores dos municípios. A nível estadual um único nome aparece na legislatura de 1905 a 1909. Trata-se de Amo Philipp. De fato, no entanto, a situação é de marginalidade e reflete o caráter provinciano do luteranismo.
5. O CHOQUE DOS ANOS 1930 A 1945
Nessa situação de marginalidade política, os luteranos, e com eles todos os grupos de descendentes de imigrantes no Brasil, vão se chocar com os ideais do movimento modernista que, desde 1917, se encontra em marcha. Tudo gira em torno da defesa do ¨espírito nacional¨, trata-se de ¨abrasileirar o Brasil¨. O termo chave da época passa a ser ¨brasilidade¨. Durante os governos de Getúlio Vargas as exigências do movimento modernista virão a se concretizar.
Mesmo que Vargas tenha conseguido, no período que vai de 1930 a 1945, as simpatias de muitos luteranos e feito de um luterano, o leopoldense Lindolfo Boeckel Koller (Collor), seu primeiro Ministro do Trabalho, no geral o período pode ser caracterizado como o mais crítico da história dos luteranos no Brasil. Cumpre lembrar que, em 1935, o luterano A. J. Renner passou a integrar o legislativo estadual.
As medidas nacionalizadoras de Vargas atingiram em cheio os luteranos. Seu sistema escolar ruiu por terra, seus cultos foram proibidos, pois proibido estava o idioma de comunicação nas colônias alemãs. Nos templos reuniam-se pessoas que não entendiam a pregação, nos sepultamentos as palavras de consolo não eram compreendidas. Nas escolas preparava-se a situação de semianalfabetismo das colônias teutas, do luterano que não tem mais a formação suficiente para ler sua Bíblia e seu catecismo.
Se estas foram algumas das conseqüências da política nacionalizadora, elas sem dúvida só puderam ter a conseqüência que tiveram graças à situação de marginalidade em que se encontravam os luteranos no início do período. Pois foi graças a essa situação de marginalidade, ainda, que, finda a República Velha, muitos luteranos foram centrar sua atividade política no Movimento Integralista ou nas atividades da Organização para o Estrangeiro do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP).
O choque dos anos de 1930 a 1945, que não nos cabe descrever aqui, foi altamente salutar para os luteranos. Salutar qua choque, não qua experiência. Em conseqüência do choque parece haver surgido a consciência de que permanecendo na situação de marginalidade em que haviam sido colocados, estavam condenados a uma existência sectária. É por isso que a partir de 1945 vamos encontrar uma situação totalmente modificada.
6. OS ANOS DE 1945 A 1964
Com o fim da 2ª. Guerra Mundial e com a queda de Vargas surge para os luteranos uma nova situação. Para as lideranças, pelo menos em uma das igrejas luteranas, está claro que tem que se partir para a ofensiva. Em 1946, em data que não nos foi possível precisar, o então Presidente do Sínodo Riograndense, Hermann G. Dohms, foi convencido por lideranças leigas da necessidade de participação luterana ativa a nível estadual e federal. Um dos auxiliares diretos de Dohms viajou através das comunidades luteranas do Rio Grande do Sul, conscientizando os luteranos para que votassem conscientemente em candidatos luteranos. Foi assim que na Assembléia Legislativa de 1947 vai se encontrar um percentual de deputados luteranos que atinge a casa dos 4%. 7 dos 55 deputados estaduais são luteranos. A título de curiosidade sejam citados os seus nomes: Hildebrand, Jost, Michaelsen, Roesch, F. G. Schmidt, Born, Class. 4 pertencem ao PSD, 1 ao PTB, 1 à UDN e 1 ao PRP. Um luterano é eleito deputado federal, Germano Dockhorn, pela legenda do PTB.
O envolvimento direto das lideranças eclesiásticas não voltaria a se repetir nos anos seguintes. Esse fato vem a se fazer sentir nas eleições de 1950, quando serão eleitos 5 deputados estaduais luteranos (Scheibe, Heuser, Carlson, Closs e Schmidt), dois do PSD, dois do PTB e um do PRP, e 2 deputados federais luteranos (Jost e Dockhorn). Nas eleições de 1954, os luteranos eleitos para a Assembléia Legislativa do Estado são apenas três, fato que volta a se repetir em 1958 e 1962. Na Câmara Federal haverá sempre de um a dois representantes. Significativo, no entanto, é o fato de em 1962 haver, pela primeira vez, um candidato luterano ao governo do Estado, que no entanto não vem a ser eleito. Trata-se de Egydio Michaelsen.
Os dados são significativos. Comparados com os números que tínhamos até 1945, o que acontece após a 2.a Guerra Mundial é uma inversão da situação. O indiferentismo político parece rompido, há um claro desenvolvimento em direção à integração. Os interesses estão definitivamente centrados no Brasil. Mais clara ainda fica a situação a nível municipal. Em São Leopoldo, p. ex., a Câmara de Vereadores, eleita em 1947 tem maioria luterana.
7. O DESENVOLVIMENTO APÓS 1964
O golpe militar de 1964 não consegue mais interromper o desenvolvimento que se iniciara. Os luteranos vão ser atingidos pelo regime de arbítrio que se instala da mesma maneira que os que não são luteranos. O sucessor de lido Meneghetti teria sido um luterano, mas foi cassado.
Na série de governantes militares vamos encontrar um luterano. Suas origens não são políticas, mas militares. Aqui seria necessário um estudo da participação de luteranos na vida militar e especialmente um grupo de imigrantes luteranos mereceria estudo em particular. Penso nos descendentes dos imigrantes da Westfália.
Mais importante para o nosso tema parece-me o estudo de um aspecto da vida nacional que vai atingir os luteranos a partir de 1960. Desde princípios da década de 1960, as luteranos vão ser atingidos em massa pelo fenômeno do êxodo rural e da migração interna. Começa a surgir um proletariado luterano e grandes contingentes de luteranos vão se ver forçados a deixar suas terras e migrar em direção à nova fronteira agrícola. O problema social entra nas congregações luteranas. A Igreja Luterana como um todo vê-se compelida a tomar posição e esse posicionamento é político. Participação política agora não é mais apenas uma questão de políticos individualmente, mas de toda uma Igreja. Se observamos os posicionamentos luteranos, principalmente a partir de 1970 vamos poder constatar esse fato. Há posicionamentos a respeito de direitos humanos, questão indígena (1970), anistia (1978), confisco da soja, barragens ao longo do rio Uruguai, Itaipu, aplicação do Estatuto da Terra, Reforma Agrária, Lei de Estrangeiros, Lei de Segurança Nacional. Em 1982 todos os luteranos ocuparam-se com uma questão candente: ¨Terra de Deus — Terra para Todos¨.
Não se pode mais falar hoje de uma postura apolítica dos luteranos no Brasil. Aspectos importantes da Reforma Luterana do século XVI parecem-me terem sido recuperados. O chamado de Lutero pelo cristão servidor no mundo, em amor, volta a se fazer presente.
Há 7 luteranos na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2 na Câmara Federal. Luterano é também o vice-governador do Estado. O número de prefeitos e vereadores é incontável. Creio que, hoje, não mais podemos dizer que haja ausência luterana na realidade política brasileira.
* Palestra apresentada em 19 de outubro de 1983, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ciclo ¨UFRGS debate Lutero¨. A solicitação que me foi dirigida pretendeu que o tema se centrasse mais no Rio Grande do Sul. Por esse motivo não foram consideradas as demais unidades da Federação
Notas
(1) Cf. meu estudo, Entre a Idade Média e a Idade Moderna. A localização de Lutero e de sua reforma, neste volume. p.
(2) Cf. LUTERO, Martim. Da Liberdade Cristã. 3. ed. São Leopoldo, Sinodal, 1979, p. 9.
(3) Cf. WA 6, 404-469.
(4) Cf. sua explicação à quarta petição do Pai Nosso. In: Comissão Inter-luterana de Literatura (ed.). Livro de Concórdia. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1980, p. 374.
(5) Cf. LUTERO, Martim. Da Autoridade Secular. A obediência que lhe é devida. São Leopoldo, Sinodal, 1979, p. 55
(6) LUTERO, Martim. Ibidem, p. 50.
(7) LUTERO, Martim. Ibidem, p. 59.
(8) LUTERO, Martim. Ibidem, p. 59.
(9) LUTERO, Martim. Ibidem, p. 59s.
(10) Cf. Sermon von dem Wucher, de 1519, WA 6, 3-8; Sermon von dem Wucher, de 1520, WA 6, 36-60; Von Kaufshandlung und Wucher, de 1524, WA 15, 293-322; An die Pfarrherrn, wider den Wucher zu predigen, de 1540, WA 51, 331-424.
(11) Cf. quanto ao que segue VEIT, Marie. A capacidade crítica da fé. In: Estudos Teológicos 19(3): 143-152. 145s, 1979.
(12) A questão do ¨branqueamento da raça¨ perpassa toda a história brasileira. Nos Anais da Assembléia Nacional Constituinte de 1934 foi transcrita carta de Oliveira Vianna, na qual podemos ler: ¨Para nós, portanto, que pelo fato mesmo de termos uma formação em que predominam dois sangues inferiores (o negro e o índio), somos um povo de eugenismo pouco elevado, o grande problema é a arianização intensiva de nossa composição étnica. Tudo quanto fizermos em sentido contrário a essa arianização é obra criminosa e impatriótica.¨ Citado apud SCHORER PETRONE, Maria Thereza. O imigrante e a pequena propriedade (1824-1930) (Tudo é história 38). São Paulo Brasiliense, 1982, p. 43.
(13) Veja o estudo de LAZZARI, Maria Beatriz. Imigração e ideologia. Rea-ção do Parlamento Brasileiro à política de colonização e imigração (1850-1875). Porto Alegre, EST, Caxias do Sul, UCS, 1980, e ainda a obra de SCHORER PETRONE, citada na nota anterior.
(14) Cf. DREHER, Martin Norberto. Igreja e Germanidade. Estudo Crítico da História da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre, EST, Caxias do Sul, UCS, 1984, p. 27s.
(15) Cf. DREHER, Martin Norberto. op. cit., p. 23-26.
(16) Cf. KUNERT, Augusto Ernesto. Aspectos da relação IECLB e Estado, em uma compreensão histórica e teológica. In: Estudos Teológicos 22(3): 221, 1982.
(17) Cf. DREHER,, Martin Norberto. op. cit., p. 39-43.
(18) Expus com detalhes os aspectos mencionados em meu estudo, mencionado na nota 14.
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