Lutero e a Dieta de Worms de 1521
Martin N. Dreher
Os sempre crescentes ataques de Lutero contra a Igreja Romana, que chegam a uma primeira culminância na Disputa de Leipzig (1519), levaram a que no ano de 1520 o processo contra Lutero, iniciado após a publicação das 95 teses (1517), fosse reativado. A 15 de junho de 1520 foi publicada a bula ¨Exsurge domine¨ (1). Ela contém uma ¨admoestação caridosa¨, o convite para que Lutero abjure no espaço de 60 dias suas doutrinas. Caso Lutero não abjurar no prazo previsto, será excomungado, devendo ser encaminhado a Roma. Toda e qualquer localidade que o abrigar será declarada interdita, i. é, nela não mais serão celebrados os sacramentos, os templos e capelas terão suas portas cerradas.
1. LUTERO QUEIMA A BULA
O bibliotecário papal Jerônimo Aleandro e o teólogo Johann Eck, oponente de Lutero na Disputa de Leipzig, foram encarregados de tornar a bula conhecida (2). Aleandro conseguiu que as obras de Lutero fossem queimadas em Antuérpia e em Lüttich. Em Louvaina, Colônia e Mogúncia, porém, foram queimadas obras de teólogos escolásticos, sob o pretexto de estarem sendo queimadas obras de Lutero. Nem todos os príncipes estavam dispostos a aceitar a bula; muitos bispos vacilaram. O povo estava agitado, assumindo a causa de Lutero; temia-se revoltas populares (3).
Lutero reagiu à queima de seus escritos com uma cena que causou sensação em toda a Alemanha. Diante do Portão do Elster queimou os livros de Direito Canônico e a Bula de ameaça de excomunhão. Melanchthon convocara os estudantes a participar do acontecimento. No final de sua convocação podemos ler: ¨Ergue-te pia e estudiosa juventude, participa desse piedoso e religioso ato; pois certamente chegou o tempo, no qual o Anticristo deve ser revelado.¨ (4) Lutero jogou a bula no fogo, na presença da multidão, com as palavras: ¨Porque perverteste a verdade de Deus, perverta-te hoje o Senhor neste fogo.¨ (5) O ato da queima da bula e dos livros do Direito Canônico representam o rompimento formal de Lutero com a Igreja Romana, a Igreja papal, que é para ele a personificação do Anticristo. No dia seguinte à queima da bula, após haver dado sua aula sobre o Livro dos Salmos, Lutero admoestou seus estudantes a que se cuidassem com as leis papais. A queima da bula seria apenas um primeiro ato, o próprio Papa e a Santa Sé deveriam ser queimados. Lutero chama à luta contra o Anticristo, mesmo que isso signifique o martírio: ¨Façam outros o que quiserem, chegou a hora de voltarmos a ter juízo.¨ (6)
As consequências da cena junto ao Portão do Elster são terríveis. Jerônimo Aleandro escreveu para Roma: ¨Toda a Alemanha se acha em grande revolta; nove décimos erguem o grito de guerra: `Lutero!’; para o outro décimo, caso Lutero lhe for indiferente, a senha é: ‘morte à cúria romana!’ ¨ (7)
A 2 de janeiro de 1521 é promulgada a bula de excomunhão ¨Decet Romanum Pontificem¨. Cabe agora à autoridade civil declarar Lutero proscrito e cumprir a sentença de excomunhão, entregando-o ao carrasco. Tal é a situação em que se encontra Lutero quando a Dieta de Worms é convocada.
2. A DIETA DE WORMS
Na Dieta de Worms, o monge excomungado, Martim Lutero, vai ser colocado frente ao jovem Imperador Carlos V (24-2-1500 — 21-9-1558). Carlos nasceu na cidade de Gent como filho de Felipe, o Belo, e de Joana, a Louca. Mais famosos que seus pais são seus avós: Maximiliano I, Rei da Áustria e Imperador Alemão, e Fernando e Isabel, Reis da Espanha, os mesmos que financiaram a viagem de Colombo à América. Em 1517, Carlos tornou-se sucessor de Fernando e Isabel. Em 1519, os Príncipes Eleitores alemães, ¨convencidos¨ por vultosas somas em dinheiro, fornecido pela casa bancária dos Fugger, mas também esperançosos de que Carlos viesse a realizar a reforma da Igreja, elegeram-no Imperador alemão. Carlos V estava animado pela ideia de um Império universal e considerava-se vigário da Igreja, sendo seu dever defender a Igreja de inimigos internos e externos. Quis preservar a herança dinástica e manter um sacro império. Suas pretensões universalistas chocaram-se com os interesses franceses, nos quais vai ter constantes inimigos que se aliam ora com os italianos, ora com a cúria romana, ora com os ingleses para quebrar a hegemonia de Carlos V. Apesar dessas ligações da cúria romana com seus adversários, Carlos V não alterou sua devoção em relação à Igreja Católica. Seu posicionamento na Dieta de Worms é um sinal claro de sua devoção. Essa devoção permanecerá inalterada ao longo de sua vida (8).
Pressionado pelos estamentos do Reino, Carlos V convocou, logo após sua eleição, uma Dieta para a cidade de Worms. A Dieta corresponde a uma reunião dos representantes da nobreza e do clero alemães, onde eram tomadas resoluções relativas ao Reino. A Dieta de Worms, como ficou conhecida, foi aberta a 27 de janeiro de 1521. Muitos eram os pontos constantes da ordem do dia. Os estamentos do Reino queriam que se iniciasse com a reforma administrativa do Reino. O Imperador pretendia que na Dieta lhe fossem fornecidas tropas e dinheiro. Havia revoltas na Espanha e tudo indicava que haveria guerra com a França. Finalmente, era necessário que na Dieta fosse encontrada uma solução final para o ¨caso Lutero¨ (9).
Em novembro de 1520, Frederico, o Sábio, Príncipe-Eleitor da Saxônia e protetor de Lutero (Lutero era seu mais famoso professor na Universidade de Wittenberg), dirigiu carta ao Imperador Carlos V, solicitando que por ora não tomasse medidas contra Lutero e que lhe permitisse fazer-se acompanhar por Lutero na Dieta de Worms, que iniciaria a 6 de janeiro de 1521. O Imperador concordou, desde que Lutero nada escrevesse contra sua santidade papal. Posteriormente, houve queima de publicações de Lutero, como relatamos acima, e, às instâncias de Aleandro, círculos influentes da corte de Carlos V concordaram que Lutero só poderia vir a Worms caso se houvesse, anteriormente, retratado de sua heresia. Nesse sentido, Carlos V escreveu novamente a Frederico, o Sábio: Lutero não poderia ir a Worms, nem mesmo tendo feito retratação. A situação parecia decidida, mas a 5 de janeiro de 1521 Frederico, o Sábio, chegava a ‘Worms e recriminava o Imperador por causa de sua postura dúbia: primeiro consentira e posteriormente voltara atrás. Frederico foi categórico ao exigir que o ¨monge fosse ouvido e não fosse violentado¨ (10). Mas, os assessores do Imperador não estavam nada propensos a ouvir a Lutero. Para eles uma coisa estava certa: Lutero deveria ser condenado (11). Entre os assessores imperiais, especialmente uma obra de Lutero causava mal-estar. Trata-se do livro ¨Do Cativeiro Babilônico da Igreja¨ (12), publicado no ano de 1520. As negociações, entretanto, prolongar-se-iam (13) e somente a 14 e 15 de março de 1521, finalmente, o Imperador concordaria em assinar os documentos que davam as necessárias garantias para a viagem de Lutero a Worms. Interessantes são alguns dos motivos que fazem o Imperador, afinal, concordar com a vinda de Lutero e com a interpelação deste frente à Dieta: Por diversas vezes surgem nos documentos da época referências ao ânimo exaltado da população. O povo está do lado de Lutero. Sua condenação e a negativa de salvo-conduto para apresentar-se em Worms poderia ter a consequência de manifestações populares! (14)
3. A CONVOCAÇÃO DE LUTERO
A 26 de março de 1521, Lutero recebia, em Wittenberg, a convocação e o salvo-conduto para sua viagem a Worms:
¨Carlos, por graça de Deus, Imperador Romano eleito, em todos os tempos aumentador do Reino, etc.
Honrado, amado, pio! Depois de Nós e os Estamentos do Sacro Império, que agora aqui estão reunidos, nos havermos proposto e decidido, por causa das doutrinas e das livros que há algum tempo foram por ti publicados, tomar informações de ti, concedemos a ti, para até cá vires e daqui novamente até tua segura custódia (voltares), livre e direta garantia e escolta Nossa e do Reino, a qual com o presente te enviamos; com o desejo de que te ergas com presteza para que com toda a certeza estejas ante nós nos vinte e um dias previstos em nosso salvo-conduto e para que não faltes e também não temas nenhuma violência e nenhuma injustiça; pois durante o prazo previsto queremos proteger-te decididamente e confiar, enfim, na tua vinda, e com isso cumpres Nossa séria intenção. Dado em Nossa e na do Reino cidade de Worms, no sexto dia do mês de março, ano etc. 1521, de nosso Reinado no segundo ano.
Por ordem do Senhor Imperador, Carolus Alberto de Mainz, Cardeal, Chanceler-Mór do Reino, assinou de próprio punho. Niclas Ziegler.¨ (15)
Lutero saiu de Wittenberg a 2 de abril sob a guarda do Arauto do Reino, Gaspar Sturm. Viajou em uma carroça cedida pelo Conselho da cidade de Wittenberg. A universidade doou-lhe 20 guinéus para as despesas de viagem (16). Companheiros de viagem foram Nicolau de Amsdorf, Pedro Suaven, o agostiniano Johann Petzensteiner, Thomas Blaurer. Em Erfurt, Justus Jonas passou a integrar a comitiva (17), que passou por Leipzig, Naumburg, Weimar, Eisenach e Frankfurt/Main. Ao longo da viagem, Lutero e seus companheiros encontraram-se com mensageiros imperiais que publicavam editais de confisco das obras de Lutero. Lutero confessa que tais medidas o assustaram, mas logo compreendeu que essas manifestações visavam afastá-lo de seu intuito de chegar a Worms. Não se apresentando ante o Imperador estaria desobedecendo a convocação.
A viagem, apesar da doença de que Lutero foi acometido (18), foi triunfal. O Arauto do Reino escreveu ao Imperador, dizendo que ¨em toda a parte, onde passamos, todo o mundo, velhos e jovens, meninos e meninas, sem que eu o possa impedir, corre de encontro ao Doutor Lutero¨ (19). Todos queriam ver ¨o homem maravilhoso que fora tão intrépido a ponto de se opor ao Papa e a todo o mundo. Alguns, contudo, consolavam-no de maneira muito inoportuna. Como haveria muitos cardeais e bispos na Dieta, certamente também se o iria queimar imediatamente, transformando-o em pó, como outrora acontecera a Hus, em Constança.¨ (20) Pouco antes de Lutero chegar a Worms, ainda houve tentativas de fazê-lo recuar. Mensageiros do Imperador tentaram fazer com que se atrasasse e o próprio Frederico, o Sábio, mandou dizer-lhe que retornasse a Wittenberg, pois já estaria condenado. Com uma confiança inabalável em Deus, Lutero segue seu caminho. A 16 de abril, por volta das 10 horas, a trombeta soou do alto da torre da catedral de Worms. O povo acorreu às ruas. Eram cerca de 2000 pessoas. Quando Lutero desceu da carroça foi abraçado por um sacerdote e antes de entrar na estalagem afirmou: ¨Deus estará comigo.¨ (21)
4. PERANTE A DIETA
Já no dia seguinte, 17 de abril, por volta das 16 horas, o Marechal do Reino Ulrich von Pappenheim conduziu Lutero ao palácio episcopal ante à Dieta e ao Imperador e instruiu-o para que somente se manifestasse frente às perguntas que lhe fossem dirigidas. Já o porta-voz do Imperador, João von Eck, oficial do arcebispo de Tréveres, dirigiu-se a Lutero com as palavras: ¨A majestade imperial convocou-te, Martim Lutero, pelos seguintes dois motivos: Primeiro, para que tu reconheças, aqui in loco, os livros até aqui publicamente conhecidos sob o teu nome, para saber se são teus e, em seguida, após os teres reconhecido, digas se os reconheces todos como sendo teus e se queres revogar alguma coisa deles.¨ Antes que Lutero pudesse responder, Jerônimo Schurff, seu acompanhante, gritou: ¨Que se leia os títulos dos livros!¨ Os títulos foram lidos. Entre eles encontravam-se o ¨Sermão das boas obras¨, o Comentário aos Salmos, de 1519, a ¨Interpretação do Pai Nosso¨. Após a citação dos títulos, Lutero respondeu em alemão e em latim: ¨A Majestade Imperial apresenta-me duas questões: primeiro, se reconheço como meus todos os livros que levam meu nome; segundo, se estou decidido a permanecer nisso ou a revogar alguma coisa dos livros que até aqui publiquei. Responderei a isso de maneira simples e breve, tão bem quanto o puder. Primeiro, não posso negar que os livros agora mencionados não sejam meus, e certamente jamais negarei algum deles. No que segue, que eu ou praticamente me aferre a tudo ou o revogue, o que seria visto como não tendo o testemunho da Escritura; como se trata de uma questão pertinente à fé e à salvação da alma e que atinge a Palavra divina — nada há maior tanto no céu quanto na terra que essa Palavra, a qual nós todos com justiça deveríamos honrar —, seria impensado e até perigoso caso eu declarasse alguma coisa impensadamente, ao afirmar menos do que diz respeito à causa e mais que à verdade, o que em ambos os casos poder-me-ia colocar sob o juízo que Cristo proferiu, quando disse: ¨Quem me negar ante os homens, a esse negarei ante meu Pai nos céus! Por esse motivo peço, e, humildemente, de Vossa Majestade, tempo para refletir, para que sem ferir a palavra divina e sem perigo para a bem-aventurança de minha alma possa satisfazer à pergunta.¨
O Imperador, que não falava o alemão, pediu que a resposta de Lutero lhe fosse traduzida. Seus conselheiros elaboraram a resposta que foi dada a Lutero: Lutero recebe o prazo de um dia e a reprimenda de que poderia ter deduzido da citação ante o Imperador que deveria responder a essa pergunta. Ao tentar revidar, Lutero é afastado da sala a um aceno de Carlos V (22).
A impressão deixada por Lutero entre os presentes não é nada positiva. É, antes, negativa. Lutero, porém, está convicto de uma coisa: ¨Eu não revogarei, nem uma letra sequer.¨ São essas as palavras que escreve a um amigo no mesmo dia (23).
Na manhã do dia 18 de abril, na estalagem em que se encontra hospedado, Lutero formula a resposta que dará ao Imperador e ao Reino. A primeira folha da redação dessa resposta ainda existe (24).
5. O DISCURSO DE LUTERO
Por volta das 16 horas do dia seguinte, 18 de abril de 1521, Lutero foi novamente levado ao palácio episcopal. Teve que esperar duas horas até ser levado à presença do Imperador e dos Príncipes. As 18 horas foi introduzido na sala iluminada por tochas. A sala era outra, maior, pois a do dia anterior não tinha condições de abrigar todos os nobres que se faziam presentes. Alguns deles já lá se encontravam desde às 10 horas da manhã, para garantir um lugar (25).
O oficial do arcebispo de Tréveres renovou a pergunta do dia anterior. Um cronista nos diz que o ¨D. Martinus respondeu tanto em latim como em alemão, se bem que com humildade, suave e comedidamente, sem, no entanto, deixar de lado o ardor e a firmeza cristãs e de tal maneira que seus adversários ficaram a desejar que seu discurso e seu espírito fossem mais deprimidos. Com mais avidez, no entanto, aguardavam a revogação…¨ (26). O que veio foi um discurso, classificado por Peter Meinhold de ¨primeira confissão evangélica ante o mundo¨ (27). Nele, Lutero diz ter produzido três espécies de escritos. Escritos que tratam da fé e dos costumes e contra os quais mesmo os adversários nada têm a objetar. Esses escritos não podem ser revogados. Em segundo lugar, produziu escritos contra o papado. Neles ataca a tirania papal que com suas leis oprime as consciências e que se apropriou dos bens e das propriedades dos cidadãos, especialmente no Reino Alemão. Revogar essas acusações seria fortalecer a tirania papal, permitindo que oprimisse ainda mais o povo, o que ainda teria aparente sanção do Imperador e do Reino que estariam a exigir a revogação de Lutero. Em terceiro lugar, ele teria produzido escritos contra indivíduos que apoiavam a tirania papal e impediam a pregação da Palavra. Neles Lutero reconhece ter sido violento, além do que convinha a um monge. No entanto, não pode revogar nada do que escreveu, pois estaria beneficiando a tirania papal e negando a doutrina de Cristo.
Numa visão quase que profética, antecipando temas da discussão que se seguiria através dos tempos, Lutero apresenta dois argumentos que poderiam ser levantados contra esse seu posicionamento irrevogável: 1) Ele é um indivíduo capaz de erros, que se volta sozinho contra um mundo de pessoas doutas e de doutrinas que se desenvolveram através dos séculos. 2) Seu posicionamento corre o risco de significar cisão para a Alemanha. Isso é, nesses dois argumentos, Lutero cita os temas da tradição e da unidade cultural que estaria rompendo. — O próprio Lutero responde a esses argumentos, mostrando-se disposto, primeiro, a revogar caso for convencido pela Escritura: ¨… não posso proteger meus livros de outra maneira do que meu Senhor Jesus Cristo, ele próprio, defendeu sua doutrina, o qual ao ser perguntado ante Anás a respeito de sua doutrina e tendo recebido uma bofetada de um dos servos, disse: ‘Se falei mal, dá testemunho do mal’ ¨. E, Lutero pede: Quem o puder, peço, ¨… traga provas, me convença de meus erros e me subjugue com os escritos proféticos e evangélicos…¨. Em segundo lugar, Lutero diz saber muito bem que suas colocações põem em perigo a unidade cultural da Alemanha, mas testemunha com alegria o fato de ¨por amor à Palavra de Deus ocorrerem divisões e discussão. Pois esse é o curso, a maneira e o evento da Palavra de Deus, como ele diz: ‘Não vim para trazer a paz, mas a espada. Pois vim para voltar o homem contra o seu pai. etc.’ Por isso devemos considerar quão maravilhoso e terrível nosso Deus é em suas deliberações, para que eventualmente aquilo que se irá fazer para pôr fim às discussões, caso o principiarmos com uma condenação à Palavra de Deus, não se transforme em um dilúvio de intoleráveis maldades e se tenha que temer que o governo desse jovem, piedoso, Carlos (no qual após Deus se deposita a maior esperança) principie nefasto e infeliz.¨ (28)
Após o discurso de Lutero a sessão é interrompida. Os príncipes retiram-se para deliberar. A pergunta que fica é: Houve revogação ou não? Reabertos os trabalhos, o oficial do arcebispo de Tréveres pergunta Lutero de maneira incisiva: Revoga ou não os livros e seus erros (29). Lutero responde em latim: ¨Como Vossa Majestade e Vossas Altezas exigem de mim uma resposta simples, quero dar uma tal sem chifres e dentes. Caso não for convencido por testemunhos da Escritura e por motivos racionais evidentes — pois não creio nem no Papa nem nos Concílios, pois é evidente que erraram muitas vezes e se contradisseram —, estou convencido, pelas passagens da Sagrada Escritura que mencionei, e minha consciência está presa à Palavra de Deus e não posso nem quero revogar qualquer coisa, pois não é sem perigo nem salutar agir contra a consciência. De outra maneira não posso, aqui estou, que Deus me ajude, amém.¨ (30)
Lutero deu uma resposta clara à pergunta que lhe fora formulada. O oficial do arcebispo de Tréveres gritou a Lutero, dizendo-lhe que sua consciência estaria a errar. Lutero jamais poderia provar que os concílios erraram. Mas, Lutero revidou, dizendo que podia (31). A incipiente discussão foi, no entanto, interrompida por Carlos V que ordenou que se retirasse Lutero do plenário. Houve preocupação. Alguns pensavam que Lutero estava sendo levado para o cárcere. Lutero, no entanto, foi acompanhado até a estalagem. ¨Quando ali chegou — diz uma testemunha — ergueu as mãos na minha presença e na de outros e gritou com rosto alegre: ‘Passei, passei!’ ¨ (¨Ich bin hindurch, ich bin hindurch!¨) (32)
6. A CONFISSÃO DE CARLOS V
A 19 de abril, a Dieta voltou a se reunir. Os estamentos pedem tempo, pois esperam ainda poder levar Lutero a fazer concessões. Para Carlos V, no entanto, a questão já está decidida. Ele se dirige à Dieta com o primeiro documento redigido de próprio punho. Trata-se de sua própria confissão. Com esse documento, a Dieta de Worms passa a ter duas confissões: a confissão luterana e a confissão imperial. Carlos ordena que seja lido o original francês e, posteriormente, pede que o mesmo seja traduzido:
¨Vós sabeis que descendo dos imperadores mui cristãos da nobre nação germânica, dos reis católicos de Espanha, dos arquiduques de Áustria, dos duques de Barganha, os quais todos, até a sua morte, foram filhos fiéis da Igreja romana, defensores da fé católica, dos santos usos e costumes do culto, os quais me deixaram tudo isso como legado, e, segundo o seu exemplo até aqui vivi. Por isso estou decidido a ater-me a tudo o que aconteceu desde o Concílio de Constança. Pois é certo que um único irmão erra, quando se opõe à opinião de toda a cristandade, pois do contrário a cristandade teria laborado em erro, mil anos ou mais. Por isso estou decidido a mobilizar meus reinos e domínios, amigos, corpo e sangue, vida e alma. Pois seria uma vergonha para nós e para Vós, membros da nobre nação alemã, caso em nosso tempo, em virtude de nossa negligência, mesmo que aparentemente, se instalasse heresia e dano para a religião cristã nos corações dos seres humanos. Depois de havermos ouvido aqui ontem o discurso de Lutero, eu vos digo que lamento haver vacilado par tanto tempo em agir contra ele. Jamais voltarei a ouvi-lo; que ele tenha sua escolta; doravante, na entanto, considerá-lo-ei herege notório e espero que Vós como bons cristãos também façais o que vos compete.¨ (33)
Tanto o discurso de Lutero quanto o de Carlos V são marcos históricos. No primeiro expressa-se a consciência presa ao evangelho, no segundo expressa-se a responsabilidade frente à tradição e ao compromisso de proteger a Igreja romana. No discurso de Lutero expressa-se o curso da Igreja da Reforma, no discurso de Carlos V temos os motivos que nortearão suas ações nos conflitos que se seguirão: a eliminação da heresia. O discurso de Carlos V é o anúncio de luta sem trégua contra a Igreja da Reforma.
7. REAÇÕES POPULARES
Na noite de 19 de abril de 1521 surgiram manifestações que fizeram os príncipes-eleitores tremer. Na prefeitura de Worms fora afixado um bilhete com a ameaça de que 400 cavaleiros ter-se-iam juntado para proteger Lutero. Do bilhete constava ainda o desafio aos adeptos de Roma e dos príncipes, especialmente ao arcebispo de Mogúncia. Nele podia-se ler: ¨Escrevo mal, mas penso em grande estrago. Quero guerrear com 8000 homens. Bundschuh, Bundschuh, Bundschuh!¨ (34) O Bundschuh, o sapato de camponês amarrado com longas correias, é símbolo para o movimento revolucionário popular na Alemanha na época da Reforma (35). O povo camponês que em 1525 se envolverá na grande guerra camponesa alemã, manifesta-se em favor de Lutero. Os acontecimentos regionais de descontentamento camponês, que já se tornam patentes nessa época, fazem os príncipes tremer. Eles voltam a negociar com Lutero.
Mas um outro cartaz afixado na cidade, nessa mesma noite, nos faz ver que nem todo o povo estava ao lado de Lutero: ¨O Papa te condena; o Imperador te condena, Frederico também há de te condenar, louco Lutero! És capaz de ruminar velhos erros, nada de novo encontras!¨. (36) As manifestações favoráveis ou contrárias a Lutero evidenciam que há efervescência no seio das classes populares.
Por isso, não causa admiração que os príncipes, por iniciativa própria, se dirijam ao Imperador, pedindo que Lutero seja mais uma vez ouvido na presença dos representantes do Reino. Dessa vez deveria discutir com doutores em Teologia. A 23 de abril, o Imperador responde: Os príncipes têm três dias para conseguir a revogação de Lutero (37).
8. NEGOCIAÇÕES
Os três dias que se seguem estão repletos de negociações. Todos procuram uma saída. Usa-se de todos os meios: interrogatório, negociações, conversas particulares, fazem-se ofertas, ameaças. Procura-se uma saída para a questão que está clara para Lutero e para o Imperador. Parece-me que essa questão é evidente: apenas Carlos V e Lutero sabem naqueles dias que não há mais o que negociar! Nas negociações pretende-se fazer concessões de ordem político-eclesiástica e espera-se, em troca, que Lutero renuncie a suas convicções dogmáticas. As cenas das negociações (38) são exemplares para inúmeros acontecimentos da história da Igreja: Pretende-se resolver questões doutrinais com política eclesiástica. Aqui se evidencia também que para Lutero, na Reforma, não se trata de mudanças de exterioridades eclesiásticas. Na Reforma, para Lutero, tudo gira em torno da doutrina. Mudanças exteriores não levam à correção da doutrina. O caminho tem que ser o inverso: a mudança da doutrina, a correção da doutrina, a reforma da doutrina é que leva a mudanças exteriores. Lutero não permite que lhe tirem a Bíblia da mão, não permite que o Evangelho que deve nortear a Reforma da Igreja seja transformado em um programa político-eclesiástico.
Uma pergunta do arcebispo de Tréveres, que lhe solicitava um meio para pôr fim à contenda, levou Lutero a responder com uma palavra de Atos 5.38s: ¨Se esta obra vem de homens, perecerá; mas se é de Deus, não podereis destruí-la.¨ São essas as últimas palavras de Lutero em Worms. Ele se coloca sob o juízo de Deus.
9. EPILOGO
Lutero saiu de Worms a 26 de abril de 1521, às 10 horas. No caminho de volta para casa, Lutero foi ¨seqüestrado¨ por amigos e levado para o Wartburgo. O desaparecimento de Lutero fez com que os ânimos populares voltassem a se exaltar. Alguém escreveu ao Cardeal Alberto de Mogúncia: ¨Perdemos Lutero, assim como o desejávamos; no entanto, o povo está tão revoltado que não temos chances de escapar com vida, caso não o procurarmos em toda a parte com archotes e não o chamarmos de volta.¨ Lutero escreveu a Melanchthon a esse respeito: ¨Trata-se de um gracejo, mas que acontecerá, se o gracejo virar coisa séria?¨ (39)
A 8 de maio, Carlos V assina o Edito de Worms, formulado por Aleandro. A 25 de maio, a tradução alemã da Edito é lida e aprovada pelos príncipes que ainda se encontram em Worms. Carlos V assina esta versão a 26 de maio. A versão latina é enviada para Roma, a versão alemã é publicada para todo o Império.
No Edito, Lutero é proscrito. A proscrição é fundamentada com os erros doutrinais de Lutero: a doutrina dos sacramentos, a doutrina do servo arbitrio, a rebelião contra a autoridade do Estado e da Igreja, desrespeito aos Concílios. A ordem é prender a Lutero e seus adeptos. Proíbe-se a divulgação de suas obras. Todos os livros que doravante forem publicados em língua alemã deverão ser submetidos à censura prévia dos bispos; em questões de fé deverão ser consultadas as Faculdades de Teologia (40).
Com suas determinações, o Edito de Worms já nos apresenta um dos traços mais característicos da Contra-Reforma que é o controle eclesiástico sobre a vida intelectual e religiosa.
Pouco depois de encerrada a Dieta, Carlos V teve que deixar a Alemanha. Seu retorno dar-se-ia apenas no ano de 1530, quando presidiria nova Dieta, desta vez em Augsburgo (41). Nesta Dieta de 1530 ver-se-ia confrontado com um movimento que abrangia três quartas partes da Alemanha e que apresentava sua confissão de fé: A Confessio Augustana.
Notas:
(1) MIRBT, Carl. Quellen zur Geschichte des Papsttums und des römischen Katholizismus. 6. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1967, v. 1, p. 504-513.
(2) Quanto a Aleandro, CL LIEBING, Heinz. Hieronymus Aleander. In: GALLING, Kurt, ed. Die Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. TÜbingen, J. C. B. Mohr, 1957, V. 1, col. 224; quanto a Eck, cf. LAU, Franz. Johann Eck. In: GALLING, Kurt, ed. Die Religion In Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr 1958. v. 2, col. 302— 303.
(3) Cf. BOEHMER, Heinrich. Der junge Luther. 3. ed. Leipzig, Koehler & Amelang, 1939, p. 299ss. JUNGHANS, Helmar, ed. fie Reformation in Augenzeugenberichten. München, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1973, p. 94.
(4) WA 7, 183; JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 95s.
(5) WA 7, 184; JUNGHANS, Helmar. Ibidem, p. 96s.
(6) WA 7, 186; JUNGHANS, Helmar. Ibidem, p. 98s.
(7) KALKOFF, Paul. Die Depeschen des Nuntius Aleander vom Wormser Reichstage 1521. 2. ed. Halle, 1897, p. 69, citado em: MEINHOLD, Peter. Luther beide, Wirken und Theologie Martin Luthers, des Reformators der Kirche, in ihrer Bedeutung für die Gegenwart. Berlin e Hamburg, Lutherisches Verlagshaus, 1967, p. 65.
(8) Cf. quanto a Carlos V, BRANDI, Karl. Kaiser Karl V. Werden und Schicksal einer Persönlichkeit und eines Weltreiches. 4. ed. München, F. Bruckmann, 1942. FUCHS, Walter Peter. Karl V. In: GALLING, Kurt, ed. Die Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1959. v. 3, col. 1152-1154.
(9) Cf. BRANDI, Karl. op. cit., p. 106-114.
10) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 313.
(11) Cf. BOEHMER, Heinrich. Ibidem, p. 314ss, onde se encontra detalhes a respeito das negociações com os assessores do Imperador.
(12) São Leopoldo, Sinodal, 1982.
(13) Cf. BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 315ss.
(14) BOEHMER, Heinrich. Ibidem, p. 317.
(15) Cf. JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 103.
(16) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 326.
(17) WA Br 2, 297, Nota 9.
(18) Cf. WA Br 2, 298.
(19) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 326.
(20) BOEHMER, Heinrich. Ibidem, p. 326.
(21) BOEHMER, Heinrich. Ibidem, p. 330.
(22) JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 104-106.
(23) WA Br 2, 300
(24) WA, 7, 815.
(25) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 336.
(26) JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 107.
(27) MEINHOLD, Peter. op. cit., p. 69.
(28) JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 107-112.
(29) Cf. WA 7, 838, segundo as anotações de Aleandro.
(30) A última frase não é comprovada por todas as testemunhas. E certo que elas reproduzem o posicionamento de Lutero. Errôneo seria interpretá-las ou lê-las em tom heróico! Cf. BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 338, nota 1. (31) A resposta por escrito será dada em 1539, quando Lutero escreverá Dos Concílios e da Igreja.
(32) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 339.
(33) Citado cf. BRANDI, Karl. op. cit., p. 112s.
(34) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 340.
(35) Cf. FRANZ, Günther. Der deutsche Bauernkrieg. 11. ed. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977, p. 53.
(36) BOEHMER, Heinrich. op. cit., p. 340.
(37) BOEHMER, Heinrich. Ibidem, p. 341.
(38) Os textos estão publicados em JUNGHANS, Helmar. op. cit., p. 114— 123.
(39) WA Br 2, 331.
(40) Não tive todo o texto do Edito de Worms a minha disposição. Li as principais partes em RADE, Martin. Doktor Martin Luthers Leben, Thaten und Meinungen, auf Grund reichlicher Mitteilungen aus seinen Briefen und Schriften dem Volke erzählt. Neusalza i. S., Hermann Oeser, 1887. v. 2, p. 191-197.
(41) Cf. DREHER, Martin N. A Confissão de Augsburgo. A fé, a vida e a missão. da IECLB. Estudos Teológicos, São Leopoldo, 20 (1): 41-56, 1980.
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