Lutero e a Educação *
Martin Volkmann
1. INTRODUÇÃO
¨Lutero e a educação¨ — este é o tema deste Concílio. E a mim foi solicitado introduzir este tema com alguma reflexão em torno desta temática. Antes de abordar o assunto propriamente dito, gostaria de apontar para alguns aspectos que destacam a importância desta temática, seja em âmbito da IECLB em geral e de suas comunidades e famílias em particular, seja em âmbito de Brasil como um todo. Por isso o acerto da opção por este tema para o presente Concílio.
1.1. Estamos no ano de Lutero. 1983 é para nós ensejo de relembrar o Reformador. Porém, não no sentido de um saudosismo que reverencia um herói do passado. Mas antes, os 500 anos de nascimento de Lutero nos desafiam à reflexão sobre a sua contribuição teológica. Não vamos relembrar tanto a pessoa de Lutero; vamos aproveitar a data para aprender do seu fazer teologia como fazer teologia hoje.
1983, como primeiro ano da gestão de um novo Conselho Diretor da IECLB, está marcado também por novas prioridades colocadas para esta gestão. Em acordo com a moção aprovada no XIII Concílio Geral de Hamburgo Velho, em outubro de 1982, a Direção da Igreja estabeleceu a educação como uma de suas metas prioritárias. Lemos no Boletim Informativo n.° 82: ¨A educação é condição fundamental para a transformação da sociedade e campo de missão da Igreja… Consideramos que a educação pertence à missão da Igreja. E, no contexto brasileiro, é necessário que aconteça uma educação que vise a realidade brasileira, buscando a formação do homem que participe da vida nacional com responsabilidade, que se saiba comprometido com a pessoa toda e com todas as pessoas, em fidelidade à, causa libertadora do Evangelho de Jesus Cristo¨.
1.2. Qual a contribuição de Lutero para a educação? Sobre esta questão temos opiniões muito contraditórias. De um lado há aqueles que têm Lutero em alta consideração neste aspecto. Classificam-no como um grande pedagogo, uma personalidade pedagógica por excelência, um reformador do sistema educacional… Lemos, por exemplo, a opinião de um autor: ¨Lutero merece, daqui em diante, ser reconhecido como o maior dos reformadores, não só religiosos, como educacionais¨ (Painter, FNV — Luther on Education, 1928 in: Eby, F. História da educação moderna, p. 57). De outro lado há os que vêem em Lutero justamente aquele que barrou o processo de reforma da educação, por exemplo, Erasmo de Roterdã, contemporâneo de Lutero, que afirma: ¨Onde quer que prevaleça o luteranismo, aí desaparece o ensino¨. Principalmente entre analistas católicos, mas não só entre estes, Lutero é visto como alguém que trouxe maiores prejuízos do que vantagens para o desenvolvimento da educação.
Seja como for, é inegável o efeito da Reforma na educação. O movimento de Lutero, que foi antes de mais nada uma reforma teológica por sua redescoberta do evangelho, deixou suas marcas na estrutura eclesiástica, bem como no sistema de ensino da época e até hoje. Senão vejamos: Nos primórdios da IECLB a criação de comunidades e de escolas acontecia conjuntamente; o pastor era muitas vezes simultaneamente professor e vice-versa; ainda hoje igreja e escola estão lado a lado em muitos lugares. Além disso, não se pode deixar de considerar que Lutero, em suas pregações e escritos, seguidamente aborda questões relacionadas com a educação, além de escrever alguns escritos em que ele enfoca mais concretamente problemas da educação e que foram chamados de ¨escritos pedagógicos¨. São eles: ¨Carta aos prefeitos e conselheiros das cidades alemãs¨ de 1524; ¨Sermão sobre o dever de enviar as crianças à escola¨ de 1530, além dos Catecismos Menor e Maior de 1529.
Apesar dessas consequências da Reforma no setor educação e apesar das manifestações de Lutero sobre questões pedagógicas, não é tão importante analisarmos o pedagogo Lutero ou a importância de Lutero no desenvolvimento da educação e das escolas. Importa antes ver as colocações pedagógicas de Lutero a partir de suas conclusões teológicas. Em outras palavras: Se Lutero chega a se manifestar sobre problemas da educação, então ele o faz a partir de sua descoberta reformatória. Se a educação entra no âmbito da reflexão de Lutero, então porque a fé cristã tem algo a ver com estas questões. Em última análise, a educação é vista sob o prisma da fé.
2. A EDUCAÇÃO — POSSIBILIDADE E TAREFA HUMANAS
A quem cabe a tarefa da educação? A Igreja ou ao Estado? A autoridade secular ou à. autoridade espiritual?
Em sua ¨Carta aos prefeitos e conselheiros das cidades alemãs¨, Lutero dirige um apelo às autoridades municipais ¨para que organizem e mantenham escolas cristãs¨. Aqui se evidencia que, para Lutero, a tarefa da educação cabe à autoridade secular. ¨Erziehung ist ein weltlich Ding¨ — educação é uma atividade deste mundo. A tarefa de educar não inicia com a vinda do evangelho; esta tarefa compete aos pais e às demais autoridades seculares desde a criação do mundo. Lutero escreve no prefácio do Catecismo Menor: ¨Aqui também deves insistir particularmente com as autoridades e os pais, para que governem bem e levem os filhos à escola, mostrando-lhes por que é sua obrigação fazê-lo e que pecado maldito cometem se não o fazem¨. Basta lembrar aqui também o ¨Sermão sobre o dever de enviar as crianças à escola¨.
Por isso, a educação não é uma tarefa específica e exclusiva da Igreja. O evangelho não nos fornece um reconhecimento básico novo em questões de educação nem nos traz ensinamentos novos com relação à tarefa da educação. Isto cabe à pedagogia. O evangelho tão somente confirma algo que já existe muito antes dele: a educação existe desde que o homem habita a face da terra. Faz parte da natureza humana a preocupação com a educação. Por sermos seres racionais sabemos que devemos educar. A posição de destaque do homem em todo o mundo, a tarefa que lhe cabe de sujeitar e dominar toda a criação (Gn 1-2) — isto é fundamentação para a tarefa educativa do homem: com a criação Deus dotou o homem de sua capacidade racional e, à base desta sua capacidade, ele desempenha a sua função. ¨A razão foi criada para que ela impere sobre estas coisas; os pais têm a razão para que orientem o filho¨, diz Lutero numa prédica de 1529 (WA 29,355).
Lutero vai um passo mais adiante. A base da razão, à base do direito natural dado por Deus a cada pessoa, os homens compreendem não só que, mas também como devem educar. O evangelho, a igreja, a teologia não trazem novas revelações nem dão novas orientações sobre questões pedagógicas. Como educar? O amor natural dos pais para com seus filhos lhes diz como devem proceder diante de seus filhos. O coração de uma mãe sabe muito mais e muito melhor como lidar com seus filhos do que qualquer livro possa orientá-la. Lutero, em suas pregações, seguidamente aponta para este fato. Além disso, as tradições e os costumes que se desenvolveram durante séculos são uma orientação segura para os pais nesta sua incumbência.
Em síntese: A educação faz parte deste mundo. É competência da razão humana não só reconhecer esta tarefa, mas também encontrar os caminhos para se desincumbir desta tarefa.
E qual o papel da igreja, da teologia, do orientador teológico? Afinal, eles ainda têm uma incumbência neste sentido?
À primeira vista poder-se-ia dizer que não. Sem o evangelho o homem já sabe que deve e como deve educar, então o evangelho nada tem a dizer sobre questões pedagógicas. A este ponto, porém, Lutero não chega. A teologia, a igreja têm algo a dizer neste sentido.
Voltemos à ¨Carta aos prefeitos e conselheiros¨. Lutero não a entende como uma orientação concreta em questões didático-pedagógicas, mas como um apelo a estas autoridades de pensar seriamente na organização e manutenção de escolas, que é sua tarefa. Este escrito é, pois, uma advertência às autoridades para que elas assumam aquilo que lhes cabe por natureza.
Assim sendo, a teologia, a igreja têm algo a dizer nesta questão: Ela antes de mais nada confirma aquilo que já existe desde a fundação do mundo, qual seja a de que a educação é tarefa intrínseca ao ser humano. Fazendo isso, a igreja passa a desempenhar uma tarefa específica dela em relação à educação: a de relembrar as autoridades competentes de sua tarefa específica. A igreja, os pregadores não podem deixar de admoestar os responsáveis natos pela educação, isto é, os pais e as autoridades estatais de assumirem esta sua responsabilidade. Com isso a contribuição da igreja se situa na área ética: o educador, que por natureza sabe que e como deve educar, deve ser relembrado sempre de novo desta sua tarefa.
Por que isso? Por que a intromissão da igreja na questão da educação, se esta tarefa já vem definida desde a criação? Por que admoestação dos responsáveis, se eles sabem que lhes cabe esta tarefa; ainda mais se eles por natureza, à base de sua razão, sabem como educar?
Aqui se evidencia novamente a tarefa específica da igreja. A partir do evangelho a igreja deve sempre de novo relembrar esta responsabilidade às autoridades seculares, porque tal conhecimento da tarefa e da possibilidade não são uma posse imperdível. O homem precisa ser relembrado desta tarefa, porque é pecador. O pecado ofusca este conhecimento humano, fazendo com que ele esqueça sua responsabilidade educativa. Vejamos novamente a que Lutero diz no prefácio do Catecismo Menor: ¨…mostrando,. lhes por que é sua obrigação fazê-lo e que pecado maldito cometem se não o fazem¨. Por isso a igreja não pode deixar de apontar sempre de novo para esta responsabilidade.
Até aqui, em traços gerais, a posição de Lutero frente à tarefa da educação. É evidente que se trata aqui de educação num sentido bem amplo — na família, na escola — e não especificamente a educação na fé, que nos interessará no capítulo seguinte.
Esta posição de Lutero, sem dúvida alguma, ainda aponta para um aspecto importante que ainda tem seu valor hoje: é o reconhecimento de que a educação é uma tarefa intrínseca ao ser humano; que a educação não ganha o seu valor apenas a partir do evangelho; que educação não é educação efetiva apenas se for educação cristã, em escola evangélica. Não só os cristãos sabem educar. Mas aí se levantam com maior insistência as perguntas: O que nós como igreja temos a ver com educação? A nossa responsabilidade, nossa reflexão e contribuição não deve ficar restrita à educação na fé?
Se respondermos afirmativamente esta última pergunta e consequentemente dizemos que a igreja nada tem a ver com educação e que Lutero nada tem a contribuir com o problema educação em geral — se for esta a nossa conclusão, não entendemos Lutero corretamente. Então nós nos retiramos para a esfera da fé e deixamos tudo o mais ao Deus-dará. Isto é uma falsa compreensão da doutrina dos dois reinos.
Mas uma coisa estas perguntas deixam transparecer: De fato, o problema igreja/educação é hoje um tanto diferente do que era na época de Lutero. Por um motivo muito simples. É que para Lutero ainda era óbvio que todas as pessoas fossem cristãs. Na sua época ainda não havia o que hoje conhecemos por secularização. As autoridades seculares, mesmo no exercício de sua função específica, não deixavam de ser cristãos. Vejamos novamente a passagem da ¨Carta aos prefeitos e conselheiros¨ anteriormente citada. Ali Lutero dirige um apelo a estas autoridades ¨para que organizem e mantenham escolas cristãs¨. Era óbvio na época que estas escolas teriam um caráter cristão. Por isso, a tarefa da igreja podia restringir-se a admoestar as autoridades competentes a assumirem a sua tarefa. Com isso também fica evidente que a doutrina dos dois reinos não permite uma separação entre Reino de Deus e Reino do mundo. Na questão educação se evidencia que, para Lutero, Deus é Senhor nos dois Reinos e que o homem é responsável perante Deus por aquilo que ele faz tanto no Reino de Deus, quanto no Reino do mundo.
Mas em nossas dias não se pode mais falar que toda pessoa é automaticamente cristã. Da mesma forma não se pode repetir simplesmente o apelo para que as autoridades seculares organizem e mantenham escolas cristãs. Justamente por isso aumenta a nossa responsabilidade como igreja e como cristãos individualmente frente ao problema educação. Porque agora nós temos que perguntar com mais objetividade e perspicácia se as autoridades seculares, que não deixam de ser responsáveis pela educação, apenas precisam ser relembradas de sua tarefa; se nós podemos confiar tão cegamente de que eles sabem como educar.
Esta pergunta se torna ainda mais aguda se nós olharmos especificamente para o sistema educacional brasileiro. É inegável que o setor educação recebeu um certo impulso nos últimos anos, sem ter sido o que já era em épocas anteriores. Foi criado o Mobral; há os cursos através dos meios de comunicação; há escolas estaduais na maioria dos municípios. E nunca houve uma tamanha proliferação de faculdades em toda parte como na década de 70. Todo mundo queria fazer o 3.° grau, porque — entre outras coisas — o nível de remuneração depende do nível (entenda-se anos) de formação: quanto mais cursos, reciclagens e seminários, tanto mais chances de promoção no magistério, por exemplo. Por outro lado, nos últimos anos, aumentam sempre mais os cursos de pós-graduação. Concluída a faculdade o estudante continua estudando. Por quê? Porque com novos cursos vai ser melhor remunerado e porque a sua formação é sempre mais deficiente. O que antes era feito a nível de 2.° grau, hoje nem mesmo no 3.° grau acontece, em certos aspectos. Por quê? Porque a lei 5692/ 71, que reformulou o sistema de ensino instituindo os cursos profissionalizantes teve um efeito devastador sobre a educação no Brasil. Esta lei objetivava dar um caráter de terminalidade aos cursos de 2.° grau. Ao invés dos antigos cursos clássico (com maior ênfase nas línguas e ciências humanas) e o científico (enfatizando mais as ciências exatas), as escolas deveriam oferecer uma iniciação profissional para que o aluno concluinte do 2.° grau tivesse alguns rudimentos que facilitassem o exercício de uma profissão imediatamente. Esta profissionalização requeria matérias novas específicas. Como introduzi-las? Aumentando o número de horas/aula? Obviamente não. Então só restava uma saída: reduzir o número de aulas das outras disciplinas, ou seja, as matérias de formação geral, ou melhor, aquelas matérias que desenvolviam o raciocínio e o posicionamento próprio do aluno.
Por que esta reforma do ensino? O Brasil entrara na era do desenvolvimento. O milagre estava para acontecer. Precisava-se de mão-de-obra para a indústria e não de cabeças que soubessem pensar.
Passados mais de dez anos podemos constatar alguns efeitos desta reforma que faz com que já se esteja pensando numa reforma da reforma. Um dos efeitos é o baixo nível de formação. A unificação dos antigos cursos primário e ginasial para formarem o curso fundamental, com duração de 8 anos, fez com que em muitos lugares, por exemplo no RS, a formação básica fosse reduzida por um ano. Além disso, a inclusão de sempre novas disciplinas, por exemplo Moral e Cívica, faz com que não se possa mais aprofundar os conhecimentos básicos nas demais disciplinas, especialmente a língua portuguesa. Sem falar na proliferação de livros didáticos ¨descartáveis¨. Outra consequência negativa é que não se tem nem profissionalização nem formação geral. Com a diminuição das aulas de formação geral esta decaiu, e com o diminuto número de aulas de formação específica — sem falar na falta de condições técnicas — não é possível dar uma iniciação profissional. Uma terceira consequência é que justamente aquelas escolas, que preparavam especificamente para uma profissão, por exemplo a Escola Parobé de Porto Alegre, foram esvaziadas e não conseguem mais formar alunos como antigamente, porque foram obrigadas a incluir em seu currículo as matérias do núcleo comum e assim tornaram-se escolas semelhantes às demais. Uma quarta consequência é que se pode observar uma corrida para as universidades, porque os jovens não têm profissão nem querem ser simples rodinhas na engrenagem do sistema produtivo (inconscientemente talvez, o que é mais provável). E uma quinta consequência é a proliferação dos cursinhos para fazer aquilo que as escolas deixaram de fazer em um certo sentido.
O que nós como igreja temos a dizer frente a esta situação? Basta admoestar que as autoridades seculares devem assumir a sua tarefa educacional ou a igreja deve dizer algo também em relação ao modelo de educação? Creio que estaremos interpretando Lutero corretamente se respondemos afirmativamente a segunda pergunta. À igreja cabe uma contribuição positiva com relação à educação, também em termos de modelo e conteúdo. À igreja cabe zelar, se no modelo educacional a pessoa é considerada como ser humano. A partir da criação e com base no evangelho podemos e devemos dizer que o ser humano tem uma posição de destaque em toda a criação. Ele tem a tarefa de dominar o mundo, de ser senhor e não objeto na mão de outros. O modelo educacional brasileiro — desde o Mobral até a universidade — faz da pessoa um objeto e não facilita para que ela mesma assuma a sua história em suas mãos.
Mas a igreja, ao acentuar a posição de destaque do homem em toda a criação, não pode perder de vista que também este homem está alienado em seu ser e consequentemente todo o mundo está alienado do propósito de Deus. Por isso, querendo combater a superacentuação da técnica no modelo educacional e a preparação de jovens Como técnicos, não podemos cair num otimismo humanista que desconhece a real situação do homem e do mundo. Por isso, a partir de urna visão clara do homem e do mundo que o evangelho nos fornece — alienados do real propósito de Deus, mas mesmo assim amados por Deus e confirmados como sua criação — evitaremos um otimismo tecnológico que superacentua a técnica e a profissionalização para a criação de rodas na engrenagem do sistema produtivo. E evitaremos, de outro lado, um otimismo humanista que vive na ilusão de poder coordenar harmoniosamente tecnologia e humanismo de forma absoluta e completa. Abordando o tema ¨Humanismo e Tecnologia¨, W. Altmann conclui: ¨O cristão, a partir da visão realista da fé, centrada na dignidade e na responsabilidade da criatura diante do Criador, mas também no conhecimento da ruptura do relacionamento do homem para com Deus, irá manter a consciência crítica e transmiti-la adiante. Irá desmascarar o absoluto de ideologias e programas educacionais, reduzindo-os ao seu papel provisório e sempre questionável.¨ (1)
Aqui reside a contribuição das escolas evangélicas para com o sistema educacional brasileiro. Na época de sua criação, estas escolas foram instaladas, porque não havia a rede pública que pudesse atender a demanda. Hoje as escolas evangélicas ligadas às comunidades de nossa igreja necessariamente não precisariam existir; a rede pública está suficientemente desenvolvida. Mas como alternativa, como elemento crítico do sistema educacional e como busca de novas propostas, a escola evangélica comunitária tem sua razão de ser.
3. EDUCAÇÃO NA FÉ
Como no capítulo anterior, vamos iniciar também aqui com uma pergunta: A quem cabe a tarefa da educação na fé? A Igreja ou à família? Ao pregador e catequista ou ao pai e à mãe?
No prefácio do Catecismo Maior, depois de apontar para a importância e necessidade de as crianças aprenderem o Catecismo, Lutero acrescenta: ¨Por isso é dever de todo pai de família arguir, pelo menos uma vez por semana, um por um, seus filhos e empregados domésticos, e tomar-lhes a lição, para verificar o que sabem a respeito ou estão aprendendo, e de instar seriamente com eles a que se empenhem no estudo, caso não conheçam a matéria¨.
Tínhamos visto no capítulo anterior que a educação é tarefa intrínseca ao ser humano e que cabe às autoridades seculares esta tarefa. Estas autoridades não são só as autoridades estatais, mas incluem os pais. Vemos aqui que também a educação na fé é atribuição da família. Assim, segundo Lutero, os pais personificam uma dupla autoridade: eles representam tanto a autoridade civil — correspondente ao estado , quanto a autoridade espiritual — correspondente à igreja. Em relação aos filhos eles fazem a vez do governante e do pastor. Numa prédica de 1528, Lutero afirma: ¨Os pais devem dar graças a Deus, porque têm a tarefa de orientar os filhos tanto corporalmente, quanto espiritualmente¨. Lutero chega a designar os pais de apóstolo, bispo, pastor. Portanto, a educação na fé cabe em primeiro lugar aos pais.
Se os pais representam a autoridade espiritual e como tais têm a tarefa da educação na fé, esta tarefa cabe igualmente àquela instância que é por excelência a autoridade espiritual: a igreja. Como autoridade espiritual ela vive do evangelho e é responsável por sua divulgação. Mas como a fé não é uma posse, como sempre somos aprendizes na fé, a tarefa da igreja nunca termina. Onde ela deixa de desempenhar esta sua tarefa, ela perde a sua finalidade. Portanto, a igreja tem a incumbência de educar seus membros na fé. É por isso que o único ministério da igreja — o de testemunhar o evangelho de Cristo — se desdobra em vários ministérios, tantos quantas forem necessários, tendo em vista o melhor desempenho desta tarefa. Tendo em vista esta incumbência, Lutero escreveu os Catecismos Menor e Maior para que servissem de subsídio para a educação. Estes dois escritos foram de importância fundamental tanto na época da Reforma, quanto nos anos posteriores, até nossos dias.
Como Lutero entende esta educação? Qual a relação desta educação na fé com a educação geral? A educação na fé é educação de fato ou ela é meramente pregação?
Considerando certas expressões de Lutero, parece haver uma distinção entre educação na fé e educação geral. Por exemplo, quando Lutero diferencia entre duas funções pedagógicas dos pais, a secular e a espiritual: a função secular seria a educação geral; a espiritual, a instrução na fé, que Lutero chega a denominar de pregação.
Sem dúvida alguma, Lutero vê a educação na fé inserida no contexto global da pregação cristã e em princípio diferenciada da educação global. Mas o fato de Lutero empregar indistintamente as mesmas expressões (educar, criar, educação, disciplina) para ambas as funções, evidencia que esta distinção é somente uma questão de princípio para deixar claro o caráter especial da educação na fé: Aí trata-se do ser confrontado com o evangelho que é ‘extra nos’, que vem totalmente de fora para a nossa realidade. Na prática, porém, esta distinção não é tão relevante, pois as duas acontecem conjuntamente. O confronto com o evangelho acontece em meio à educação geral; a instrução na fé é também educação. Mas o que esta distinção deixa claro é que Lutero entende toda educação a partir desta função espiritual dos pais. Educação não é uma coisa separada da fé. Pelo contrário, para Lutero toda educação é determinada pela fé. Em outras palavras: o que é educar isto se compreende a partir da fé, a partir do confronto com o evangelho. Com isso, apesar de a educação ser ¨ein weltlich Ding¨, Lutero pleiteia, a partir da fé, a partir do confronto com a palavra uma nova forma de ensinar e de viver.
4. UMA NOVA FORMA DE ENSINAR E DE VIVER
Na questão educação muitas novas descobertas se fez depois de Lutero. Não podemos simplesmente transferir o modelo de educação de Lutero para a nossa época: os contextos são totalmente diferentes. Nós devemos aproveitar, também na nossa tarefa educativa como comunidade, aquelas descobertas novas que a pedagogia nos oferece para, da melhor forma, nos desincumbirmos da nossa função educativa.
Mas as colocações de Lutero podem ser importantes nesta nossa busca pela melhor maneira de sermos fiéis ao encargo do Senhor no nosso contexto. Vejamos alguns aspectos de uma nova forma de ensinar e de viver.
4. 1. Educação Permanente
Olhando para o que acontece tradicionalmente em nossas comunidades em termos de educação, isto se limita, em muitos lugares, ao ensino confirmatório. Por isso, entre muitos jovens, a confirmação tem um certo aspecto de formatura, de conclusão da formação em questões de fé. Ao invés de ser entendida exatamente como real introdução na vida da comunidade, a confirmação muitas vezes representa o convite para se desligar da comunidade.
Para Lutero a educação na fé não acontece apenas num momento isolado na vida da pessoa; ela é um processo contínuo. Por isso ele faz uma crítica severa a estes que se consideram ¨formados¨ e acham que não precisam aprender continuamente em questões de fé. Ele diz: ¨No que toca à minha pessoa, digo o seguinte: .eu também sou doutor e pregador, e, na verdade, tão erudito e experimentado quanto possam ser todos aqueles que tanta coisa -de si presumem e têm aquela segurança. Não obstante, faço como uma criança a que se ensina o Catecismo: De manhã, e quando quer que tenha tempo, leio e profiro, palavra por palavra, o Pai-Nosso… Tenho de continuar diariamente a ler e estudar, e devo permanecer criança e aluno do Catecismo… Razão por que peço mais uma vez a todos os cristãos, especialmente aos pastores e pregadores, que não queiram ser doutores muito cedo e não imaginem que sabem tudo… Com o passar do tempo, eles mesmos bem hão de confessar que, quanto mais estudam o Catecismo, tanto menos dele conhecem e tanto mais têm de aprender¨.
As palavras de Lutero são eloquentes: tanto aquele que ensina, o pastor, o catequista, o professor de escola dominical, quanto aquele que aprende, no culto infantil, no ensino confirmatório, no ensino religioso, são eternos aprendizes.
4. 2. Educação Libertadora
É um dos fatos marcantes de nossa era que no contexto latino-americano começa a surgir uma reflexão que leva em consideração justamente a realidade sofrida, injusta e oprimida em que vive a maior parte da população deste continente. Foi neste continente, mais precisamente neste país, que surgiu uma pedagogia que, a partir desta realidade, visa libertar a pessoa da situação de opressão justamente à base de um modelo de educação. ¨Pedagogia do oprimido¨, ¨Educação como prática da liberdade¨ são algumas obras do grande pedagogo Paulo Freire. E num processo de reflexão muito próxima e sob influência desta pedagogia surgiu neste continente a teologia da libertação, que coloca justamente a nós luteranos diante de grandes desafios. Mas justamente nós luteranos deveríamos ter ouvidos abertos para esta reflexão, exatamente a partir da teologia de Lutero.
Sem querer fazer de Lutero um teólogo da libertação ou um pedagogo da libertação, cai em vista a ênfase que Lutero dá à liberdade no processo educativo. Sem dúvida, Lutero — filho de seu tempo — dá orientações bastante diretivas e rígidas em relação à forma de educar a juventude. Mas ao lado destas também se encontram admoestações como esta: ¨Ninguém se pode nem se deve obrigar à fé… Aqui de novo é preciso martelar… que a ninguém devemos coagir à fé ou ao sacramento… Limita-te a apresentar bem a utilidade e o dano, a necessidade e os benefícios, o perigo e a bênção (isto é, da salvação) …, então de si mesmos virão sem coação de tua parte¨ (Prefácio do Catecismo Menor). Educação cristã, segundo Lutero, é expor a utilidade, o valor da salvação; é expor o evangelho puro. Ao mesmo tempo, ¨não coagir à fé¨ destaca a liberdade do outro como sujeito de seu processo educativo. Educadores — pais, professores, catequistas — são apenas mediadores que, de forma alguma, devem levar a uma situação de dependência. Educação cristã, segundo o princípio de Lutero, é educação para a liberdade.
4. 3. Conteúdo da Educação
A educação na fé visa uma vivência desta fé na comunidade. No entanto, Lutero não entende esta vivência na comunidade como algo distinto e separado da vida civil. Pelo contrário, vive-se como cristão sempre na dependência de Deus. Deus é Senhor na igreja e no mundo; na comunidade e na sociedade. Por isso o conteúdo da educação deve proporcionar que a pessoa tenha condições de viver como cristão no seu ambiente.
Que conteúdos devem ser abordados? Em nossos dias, na definição dos conteúdos, um dos fatores relevantes é a própria realidade do educando. Numa educação libertadora, segundo o pensamento de nossos dias, este é um aspecto muito relevante. Esta realidade é então confrontada com o evangelho.
Lutero vai um caminho um tanto diverso sem, no entanto, menosprezar a realidade contextual do educando. Como o objetivo da educação é preparar a pessoa para uma vivência cristã, o conteúdo desta educação deve ser o centro da mensagem cristã. Este centro temos resumido no Catecismo, que é uma síntese dos temas centrais da fé cristã. Por isso, para facilitar a tarefa dos educadores, Lutero escreveu os Catecismos Menor e Maior, que são uma explicação destes temas centrais. Lutero diz no prefácio do Catecismo Menor: ¨Por isso rogo a todos vós que ajudeis a inculcar o catecismo às pessoas e especialmente à juventude¨. Assim, o Catecismo, que Lutero chama de ¨a Bíblia dos leigos¨ e que é uma chave teológico-pedagógica para a Escritura, introduz o jovem na compreensão da Escritura. Uma vez alcançado isto, a pessoa deve ser introduzida gradativamente na Bíblia toda.
A nossa situação é bem diversa da de Lutero, de modo que sentimos um grande abismo entre o Catecismo e a nossa realidade atual. Nas explicações do Catecismo reflete-se uma situação agrícola-feudal; a situação familiar é patriarcal onde aos filhos cabe obediência incondicional. Hoje vivemos numa nova estrutura social; os meios de comunicação exercem grande influência sobre as pessoas, principalmente os jovens. Além disso, não podemos deixar de considerar as novas descobertas da pedagogia, da psicologia, da sociologia e de outras ciências. Assim, não podemos simplesmente reproduzir a aprendizagem de conteúdos do catecismo; o Catecismo Menor ou o tão conhecido ¨Livro de Doutrina¨ não podem mais ser os únicos livros didáticos. Sem dúvida, por o catecismo conter o cerne da mensagem do evangelho, este conteúdo básico permanecerá. Mas justamente com este conteúdo básico devemos levar em consideração a aprendizagem e a vivência da fé na vida concreta do dia-a-dia. Hoje aprendemos a valorizar mais do que na época de Lutero o contexto em que a pessoa está inserida como parte do conteúdo da educação.
5. CONCLUSÃO
Lutero e a educação — a primeira constatação que fizemos foi que Lutero não quer ser pedagogo, nem reformador da pedagogia. Ele é teólogo — minister verbi divini. E como tal ele se manifesta sobre questões de educação. Apesar disso constatamos que a sua contribuição para com a educação é muito valiosa e vale como desafio ainda hoje.
Como igreja da Reforma devemos aprender do Reformador que a questão educação não pode ser excluída da nossa reflexão e que nós como igreja, não podemos nos restringir à esfera da educação na fé, mas que temos uma tarefa em relação à educação geral no Brasil.
(*) Palestra proferida no Concílio Regional da RE V, realizado de 2 a 4 de setembro de 1983, em Maripá/Palotina – PR
Nota:
(1) ALTMANN, Walter. Tecnologia e humanismo: avaliação crítica do sistema educacional brasileiro. Estudos Teológicos. São Leopoldo, 15 (2): 35, 1975.
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