Todos somos chamados
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 1.14-20
Leituras: Jonas 3.1-5, 10 e 1 Coríntios 7.29-31
Autor: Claiton André Kunz
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 25/01/2015
1. Introdução
Os quatro evangelhos relatam sobre o chamado dos primeiros discípulos de Jesus, entre eles vários pescadores de profissão. Apesar de Marcos ser o evangelho mais curto e objetivo, reserva um espaço considerável ao chamado dos discípulos devido à importância do tema dentro do evangelho. Junto ao chamado para tornar-se discípulos, foi-lhes dado também a missão para a qual estavam sendo convocados. Tornar-se-iam “pescadores de homens”. De certa forma, continuariam a fazer o que já sabiam, mas o alvo de seu trabalho não seria mais o mesmo: ao invés de peixes, seres humanos seriam o objetivo de sua tarefa.
O texto de Jonas, também relacionado para essa data, exemplifica essa missão, quando o profeta foi convocado por Deus para proclamar a mensagem aos homens perdidos de Nínive. Não obstante sua resistência à convocação divina, relatada no primeiro capítulo do livro, e sua possível displicência na execução da tarefa, relatada no capítulo três, Deus provoca transformação naquele povo, fazendo com que a “pescaria” seja abundante na longínqua Assíria.
Já o texto de 1 Coríntios trata da urgência no cumprimento dos compromissos. Embora o contexto esteja tratando do tema do matrimônio, fica claro que o tempo se abrevia e, como consequência, deve-se realizar o serviço cristão sem demora.
2. Exegese
Quanto ao texto de Marcos 1.14-20, podemos fazer as observações que seguem.
V. 14 – O texto informa que João Batista foi preso. Ele não aparecerá mais no evangelho, a não ser no seu martírio relatado no capítulo 6. Mas já nesse texto a experiência de João nos dá uma prévia do que está reservado para Jesus e seus discípulos. O pioneiro na pregação do arrependimento é também o primeiro a ser aprisionado. O verso ainda faz uma nítida demarcação do início do ministério de Jesus. Por um lado, afirma que o começo se dá após a prisão de João Batista – o tempo é demarcado. Por outro lado, informa que Jesus foi para a Galileia, cuja região dominará a metade do livro (até 8.26) – o espaço também é demarcado. No final do versículo, destaca-se a ênfase de todo o ministério de Jesus: ele foi “pregando (kēryssōn) o evangelho”.
V. 15 – Os contemporâneos de Jesus aguardam ansiosamente a libertação do povo de Deus de seus opressores romanos. Havia a clara esperança messiânica quando Deus agiria na história, redimindo Israel, expulsando os conquistadores estrangeiros e instaurando uma nova época de paz e justiça. Provavelmente, a pregação de João Batista acendera novamente a esperança de que a intervenção divina estava próxima. A declaração de Jesus é enfática: o tempo (kairos) está cumprido, e o reino de Deus está próximo. O versículo apresenta duas expressões no indicativo (está cumprido e está próximo) e duas no imperativo (arrependei-vos e crede). Com os indicativos Jesus declara a existência de certas realidades criadas por Deus que demandam (imperativos) certas respostas daqueles que as ouvem (ou leem).
V. 16 – A expressão “caminhando junto ao mar da Galileia” dá a impressão de que não há uma iniciativa proposital, nenhum encontro marcado. Jesus, entretanto, viu com um olhar de qualidade especial. Afinal, pode-se ver com olhos diferentes. Por exemplo: um animal, uma criança, um artista e um cientista olharão de modo bem diferente para uma flor no campo. Na parábola de Lc 10, o sacerdote e o levita “viram” o assaltado, porém no v. 33 o samaritano, “vendo-o, compadeceu-se dele”. Em Mc 10.21, percebe-se algo semelhante: “Fitando-o, o amou”. Jesus, portanto, abrangeu Simão e André não apenas com os olhos, mas também com o coração. E abrangeu-os com o coração para não mais perdê-los de vista. O acréscimo significativo “porque eram pescadores” parece aludir ao sentido da escolha deles e para o propósito que viria a seguir.
V. 17 – A expressão Disse-lhes Jesus: Vinde após mim! é repleta de autoridade. Poderia quase ser comparada às declarações criadoras de Gn 1, nas quais chama-se algo à existência. Nenhum rabino judeu falava desse jeito. Jesus cria e exige obediência irrestrita como Deus. E eu vos farei pescadores de homens. O tempo é futuro: ainda se trata de um anúncio. Seguir Cristo ainda não é ser enviado; isso vem depois. Seja como for, o discipulado já foi direcionado com o envio anunciado. A nova vocação dos discípulos é esclarecida com auxílio da antiga. Assim como Davi, o pastor de ovelhas, de acordo com 2Sm 5.2, tornou-se pastor de pessoas, esses pescadores de peixes se tornam pescadores de gente.
V. 18 – Então, imediatamente, eles deixaram as redes e o seguiram é uma expressão especial. Uma naturalidade misteriosa faz com que se voltem e os leva até Jesus. Tudo está sob a luz de 1.15, a boa notícia de Deus. Algo totalmente novo teve início. O chamado de Jesus é acompanhado da força espiritual que os faz considerar imediatamente velho o que é velho e viver o que é novo. Foi um chamado para a graça total. De forma que os discípulos não agiram por obrigação nem por leviandade, simplesmente deixaram que o Deus que se aproximara deles fosse Deus, realizando com isso o que o v. 15 chama de “crer”.
V. 19,20 – Não muito distante dali, dois outros pescadores, Tiago e João, estão em seus barcos, consertando as redes. Jesus também os convida. Eles deixam seu pai Zebedeu no barco com os empregados e seguem Jesus. Essa é uma maneira irônica de começar um reino. Ninguém estabelece um reino com quatro pescadores. Mas isso é somente uma das surpresas que o relato nos oferece. O relato sucinto do chamado dos quatro pescadores enfatiza a autoridade marcante de Jesus e as exigências radicais de seu reino. Jesus aparece; sua palavra é revestida de autoridade. Aqueles que a ouvem obedecem sem demora, sem questionamento algum. Sua palavra encontra-os no meio de seu dia a dia. Todas as atividades e responsabilidades anteriores perdem a importância à luz das exigências superiores do reino.
3. Meditação
Desde o convite e chamado feito por Jesus a Simão, André, Tiago e João, milhares (ou milhões) de pessoas já foram convidadas pelo Mestre a segui-lo. E ele continua chamando ainda hoje.
Todos somos chamados para o arrependimento e a fé: O centro da mensagem, tanto de João Batista como de Jesus, era a proximidade do reino de Deus, a manifestação do domínio soberano daquele que criou todas as coisas. Diante dessa iminente manifestação, exige-se o devido preparo para aguardar a chegada do reino. A proclamação é clara: “arrependei-vos e crede no evangelho”. Arrependimento e fé são fundamentais nesse chamado.
Arrependimento é o abandono ou repúdio do pecado. Em nossos dias, o arrependimento nem sempre é devidamente compreendido. Fala-se de aceitar Jesus e crer, sem mostrar que o indivíduo precisa reconhecer seu pecado e deixá-lo. É preciso icar claro que o arrependimento é fundamento para a salvação (Lc 13.2- 5; Mt 21.32; Mc 1.15). O arrependimento envolve três aspectos: a) O elemento intelectual: subentende uma mudança de ideia (em relação ao pecado, a Deus e a si próprio). A Bíblia fala epignosis hamartias, ou seja, o conhecimento do pecado (Rm 3.20; Sl 51.3). b) O elemento emocional: o arrependimento subentende uma mudança de sentimento. Tristeza pelo pecado e desejo pelo perdão são aspectos do arrependimento (Sl 51; 2Co 7.9-10). c) O elemento volitivo: o arrependimento subentende uma mudança da vontade e da disposição. É uma volta íntima contra o pecado.
Fé é o ato de se apossar das promessas da obra de Cristo (At 16.31; Mc 16.16). Os termos básicos são o verbo grego pisteuo e o substantivo pistis. Significam “acreditar em alguém, aceitar uma verdade, crer em algo verdadeiro, confiança pessoal. A fé é uma forma de conhecimento. Ela atua em conjunto com a razão, não contra ela. A fé é o ato da alma voltar-se para Deus, assim como o arrependimento é o ato da alma voltar-se contra o pecado. Ela também envolve três aspectos: a) O elemento intelectual: a fé inclui a crença na revelação de Deus, na natureza e nos fatos históricos narrados pelas Escrituras. A fé nunca é baseada em hipóteses, mas nas melhores evidências (Rm 10.17). b) O elemento emocional: o elemento emocional é constituinte da fé, mas não pode ser tratado como o único elemento (Mt 13.20-21). c) O elemento volitivo: o elemento volitivo inclui a rendição do coração e a apropriação de Cristo como Salvador (Jo 1.12).
Todos somos chamados para seguir Jesus: O convite de Jesus, após proclamação geral sobre o arrependimento e a fé, foi vinde após mim (v. 17). Assim como o Antigo Testamento, o judaísmo raras vezes usou “seguir” para adesão intelectual e religiosa. Essa figura, porém, de alguém que segue a certa distância uma pessoa que merece respeito, dessa forma expressando uma relação de admiração, deve ser nosso ponto de partida. Essa forma de “seguir” era comum entre os judeus nas ruas: o ilho seguia seu pai, o soldado seu comandante e o escravo seu dono. O aluno também seguia seu “rabi”, o professor da lei. Nesse caso, fica evidente que o aluno faz parte da escola desse professor e, com isso, de íntima comunhão de vida com ele. O aluno estava à volta do seu professor no orar, comer, trabalhar, no dia a dia em casa e na rua. Dessa forma recebia dele uma formação marcante. Em troca, estava à disposição dele como servo (cf. 1.7). Não podemos deixar de ver as semelhanças formais com o discipulado com Jesus. As diferenças, todavia, também são grandes. Para ser aluno ou discípulo de Jesus não era possível inscrever-se, era preciso ser chamado. O ensino não se dava em lugar fixo, na sinagoga; antes, muitas vezes, em caminhos de fuga, ao relento ou no deserto. Não havia troca de professor nem formatura. O vínculo não estava na matéria a ser aprendida, mas na pessoa do próprio Jesus. “Siga-me” é a primeira e também a última palavra de Jesus a seus discípulos, de acordo com o Evangelho de Marcos (1.17; 16.7). Para esse caminho de discipulado Jesus chamou Simão e André; ele também chama todos.
Todos somos chamados para nos tornar pescadores de homens: Jesus não inventou o termo “pescadores de homens”. Naquele tempo, essa era uma expressão comum, que descrevia filósofos e outros mestres que “cativavam a mente dos homens” pelo ensino e pela persuasão. Jogavam as “iscas” com seus ensinamentos e “fisgavam” discípulos. É provável que até sete dos discípulos do Senhor fossem pescadores (Jo 21.1-3). Sem dúvida, as qualidades dos pescadores bem-sucedidos também contribuiriam para o sucesso no difícil ministério de resgatar almas perdidas: coragem, capacidade de trabalhar em equipe, paciência, energia, resistência, fé e tenacidade. Pescadores profissionais não se podiam dar ao luxo de desistir e de murmurar.
Assim, compete a nós, que fomos chamados ao arrependimento e à fé, que fomos chamados a seguir Jesus e trilhar o caminho do discipulado, também nos tornar pescadores de homens. A proclamação do reino e de suas exigências precisa chegar a muitas pessoas ainda, e o Senhor conta conosco para essa grande “pescaria”.
4. Imagens para a prédica: A parábola dos pescadores sem peixes
Era uma associação de pescadores que viviam no meio de rios e lagos, cheios de peixes famintos. Eles se reuniam regularmente para discutir sobre o chamado para pescar, a abundância de peixe e a emoção de pegar peixes. Ficavam muito animados com o assunto da pescaria.
Alguém sugeriu que o grupo precisava de uma filosofia de pesca. Assim, cuidadosamente, definiram e redefiniram a pesca e o propósito da pescaria. Desenvolveram estratégias e táticas. De repente, perceberam que haviam começado de trás para frente – haviam se interessado pela pescaria do ponto de vista do pescador e não do ponto de vista do peixe. Como o peixe vê o mundo? Como vê o pescador? O que e quando o peixe come? Era importante entender essas coisas. Por isso iniciaram estudos e pesquisas. Participaram de conferências sobre a pescaria. Muitos viajaram a lugares longínquos para estudar diferentes tipos de peixes, com diferentes hábitos. Alguns obtiveram Ph.D. em piscicultura.
Contudo ninguém havia ido pescar. Formou-se, então, um comitê para enviar pescadores. Havia muito mais lugares propícios para pescar do que pescadores. Por isso o comitê precisava determinar prioridades. A lista de prioridades foi colocada em quadros de avisos em todos os salões da associação.
Mas, como antes, ninguém estava pescando ainda. Foi feita uma pesquisa para saber por quê. A maioria não respondeu ao questionário, mas, entre os que responderam, descobriu-se que alguns se sentiam chamados para estudar a pesca, outros para fornecer equipamentos de pesca e outros ainda para encorajar os pescadores. E com tantas reuniões, conferências e seminários simplesmente não tiveram tempo para pescar.
Jacó era novato na associação de pescadores. Depois de uma reunião muito animada, ele foi pescar. Fez algumas tentativas, pegou o jeito e conseguiu pegar um lindo peixe. Na reunião seguinte, ele contou sua história e foi elogiado pelo sucesso. Acabou sendo convidado para falar em todos os núcleos da associação e contar como havia sido a sua pescaria. Assim, com tantos compromissos e por ter sido eleito para a diretoria da associação, Jacó nunca mais teve tempo para pescar.
No entanto, não demorou muito e ele começou a se sentir intranquilo e vazio. Teve saudades da pesca propriamente dita, de sentir o puxão no anzol. Assim decidiu deixar a diretoria da associação, bem como os demais compromissos com os núcleos, e convidou um amigo para ir pescar com ele. Os dois foram – sozinhos – e pegaram peixes. Os membros da associação de pescadores eram muitos, e os peixes eram abundantes. Mas os pescadores continuavam sendo muito poucos.
(Autoria desconhecida – Fonte: Revista Ultimato)
5. Subsídios litúrgicos
Na introdução, pode ser utilizada a ilustração que segue sobre O Garoto e o Pescador: Um garoto foi pescar, mas com uma ferramenta totalmente improvisada. De um galho fez a vara e com um alfinete, o anzol. Mesmo assim, conseguia fisgar peixes. Não demorou muito, e a seu lado se instalou um homem com uma tremenda tralha, uma verdadeira parafernália. Contudo não conseguia sequer perceber a presença de peixes. O garoto, que continuava fisgando lindos peixes, ficou admirado ao ver seu “companheiro” com todas as ferramentas não conseguir nada e lascou:
– Ei, moço, será que o seu alfinete não está fechado?
(Pr. José Wellington Bezerra da Costa)
Bibliografia
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova.
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba: Esperança, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).