Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 1.29-39
Leituras: Isaías 40.21-31 e 1 Coríntios 9.16-23
Autora: Scheila dos Santos Dreher
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 08/02/2015
Deus, teu amor, é qual paisagem bela, qual campo aberto, lar e proteção.
Libertos para o encontro de nós mesmos, libertos para em comunhão viver.
(HPD 1, 176)
1. Introdução
O tom comum aos três textos bíblicos propostos para este 5º Domingo após Epifania é o anúncio do evangelho: O reino de Deus está perto (Mc 1.15). O alvo são as pessoas mais fragilizadas na sociedade. Por isso a boa notícia é experimentada no cuidado emocional, espiritual e corporal, junto a Jesus.
No Salmo 40.21-31, o salmista exalta o poder de Deus Criador. Deus, que está acima de tudo e de todos, governa em todos os tempos, coloca-se junto às pessoas cansadas e fragilizadas e intervém para o bem das pessoas que confiam nele.
Marcos 1.29-39 descreve uma sequência de ações de Jesus num período de vinte e quatro horas: de sábado até domingo pela manhã. As ações de Jesus são libertadoras. No ensino, nas curas e na expulsão de demônios, o reino de Deus vai acontecendo por seu intermédio. O chamado é para uma nova vida (Mc 1.15b). A inclusão das pessoas pobres, doentes, discriminadas por razões diversas numa sociedade que classifica as pessoas com valoração distinta por gênero, condição social, condições físicas, raça e religião é sinal da irrupção do Reino.
Em 1 Coríntios 9.16-23, o anúncio do evangelho é apresentado como algo intrínseco à pessoa cristã. Com relação a Marcos 1.29-39, o anúncio do evangelho acontece: 1) onde e quando eu percebo a necessidade da outra pessoa (junto à sogra de Pedro, por exemplo, através da cura); 2) quando a necessidade da boa-nova está diante de mim (situação experimentada por Jesus quando pessoas doentes foram trazidas a ele para ser curadas); 3) e no anúncio do evangelho para além da situação de conforto na qual me encontro (no texto principal, quando Jesus chama os quatro discípulos para sair da casa de Pedro e acompanhá-lo para anunciar o evangelho em outras localidades). “Ai de mim se não anunciar o evangelho” – diz o apóstolo Paulo. Meu pagamento é a satisfação de anunciar o evangelho (1Co 9.18).
2. Exegese
O movimento de Jesus nasceu dentro do judaísmo. Assim como um escriba, Jesus estava cercado por discípulos, aos quais ele ensinava a vontade de Deus por meio de parábolas, ditos e interpretações da Bíblia de então. Porém a atividade messiânica de Jesus ultrapassava, e muito, a de um escriba. Segundo o
v. 22, “as pessoas que o escutavam ficavam muito admiradas com a sua maneira de ensinar. Jesus ensinava com a autoridade dele mesmo e não como os professores da Lei”. Além disso, as ações de Jesus – a presença junto a pessoas consideradas de menor valor e junto a pessoas consideradas impuras e pecadoras, as curas, a expulsão de demônios e os milagres –, que acompanhavam os seus ensinamentos, distinguiam-no da atividade característica de um escriba.
O texto de Marcos 1.29-39 acompanha-nos no tempo litúrgico de Epifania/ Revelação, que teve início no Dia dos Reis em 06 de janeiro e se estenderá até o 1º Domingo na Quaresma. O texto testemunha acerca do início do ministério de Jesus. A tensão manifesta no texto está justamente entre a messianidade oculta e a revelada de Jesus. Tanto as curas como os milagres e a expulsão de demônios revelavam o amor incondicional de Deus. O alvo da atividade de Jesus eram as pessoas mais fragilizadas; de forma alguma, as curas e os milagres visavam à promoção pessoal.
No Antigo Testamento, Messias (mashiah, em grego christos) era a designação para o ungido, ou seja, o rei israelita que ocupava o governo. Segundo Goppelt, “a atividade de Jesus não corresponderia a nenhuma das imagens de Messias da concepção veterotestamentário-judaica, e Jesus não teria criado nenhuma nova imagem própria de Messias. […] A única pessoa que, segundo a tradição sinótica, cogita seriamente a respeito da sua ‘messianidade’ nos dias terrenos é João Batista. João não pergunta se há correspondência com as imagens veterotestamentárias judaicas a respeito do Messias, mas pergunta a respeito do cumprimento da promessa: ‘És tu o que há de vir?’ E Jesus […] aponta […] para o conteúdo central do tempo da graça, anunciado por todas as profecias, e afirma: Por meu intermédio isso ocorre” (p. 187).
No Evangelho de Marcos, o “mistério do Messias” engloba uma série de ordens de Jesus aos demônios para que se calem a respeito de sua identidade; proibição às pessoas curadas de contar a respeito do autor da cura e revelação somente aos discípulos de sua messianidade. É de se esperar que as pessoas não entendam claramente quem é Jesus no início do seu ministério. Marcos “costura” o testemunho bíblico acerca do ministério de Jesus ocultando sua messianidade, porque Jesus, enquanto Salvador, não corresponde ao Messias esperado pelo povo judeu – não é um Salvador que tomará o poder político nas mãos, como um rei ungido –, tampouco é um milagreiro, exorcista ou curandeiro, como passava a ser visto por muitos. Na vivência junto a Jesus, as pessoas experimentaram “os sinais da graça”, o reino acontecendo. Mas somente a partir do evento da cruz e da ressurreição a messianidade de Jesus pode ser totalmente compreendida.
Se nos ativermos somente ao Evangelho de Marcos, teremos a impressão de que a relação de Jesus com Simão Pedro, André, Tiago e João era muito recente – a partir do convite à beira do lago da Galileia (Mc 1.16-20). O evangelista João testemunha, no entanto, que André era um dos seguidores de João Batista (Jo 1.35-42). Quando André teve um primeiro contato com Jesus, levou seu irmão Simão até ele, que passou a chamá-lo de Cefas (Pedro). Marcos 1.29-39 testemunha sobre a saída de Jesus da casa de oração em Cafarnaum após haver expulsado um espírito mau e sobre o deslocamento do grupo até a casa dos irmãos Simão Pedro e André. Já existia, portanto, entre o grupo, certa relação de familiaridade, e o seguimento dos discípulos ocorria a partir da relação de confiança e de fé (Jo 1.36s, 41).
Na casa de Simão Pedro e de André, contaram a Jesus sobre a enfermidade da sogra de Pedro. Ele a tocou (num sábado!) e curou; e ela passou a cuidar deles. Ao entardecer, muitas pessoas doentes e possuídas por espíritos maus foram trazidas a Jesus, e ele também as curou. Todo o povo da cidade – testemunha o evangelista talvez com certo exagero – estava reunido em frente à casa da família de Pedro e André. Jesus não permitia que os espíritos maus anunciassem quem ele era. No amanhecer do dia seguinte, Jesus retirou-se para um lugar deserto para orar. Os discípulos e outras pessoas puseram-se a procurá-lo. Veja que no Evangelho de Lucas é o povo quem o procura e não quer deixá-lo seguir adiante. Jesus chamou os discípulos para acompanhá-lo aos povoados vizinhos. O texto conclui dizendo que Jesus anunciava o evangelho nas casas de oração e expulsava os espíritos maus. Ou seja, o testemunho bíblico de Marcos 1.29-39 descreve a atividade de Jesus durante o período de um dia – cura da sogra de Pedro durante a manhã, curas ao entardecer, oração ao amanhecer e convite para seguir adiante pela manhã – em favor das pessoas que o buscam: gente que se encontra fragilizada.
3. Meditação
Para o povo que foi se aproximando de Jesus no início do seu ministério ainda não estava claro quem ele era. Ainda que sua autoridade em anunciar a palavra de Deus já fosse reconhecida como algo peculiar, suas curas e seus milagres certamente atraíam as pessoas mais do que seu ensino. Deus foi se revelando em Jesus. Nos ensinamentos e nas ações de Jesus, percebemos que Deus via e vê o sofrimento das pessoas e não fica alheio à sua dor. Jesus não fez algo com vistas a demonstrar o seu poder; mas a misericórdia do próprio Deus alcançou e alcança as pessoas em sua fraqueza, através de Jesus, e revela quem é Deus. Nos ensinamentos e nas ações de Jesus, Deus foi ganhando um rosto concreto. Durante todo o seu ministério, Jesus acudiu e acolheu as pessoas que se encontravam excluídas: doentes, pessoas consideradas pecadoras no âmbito do judaísmo, gente de “menor” valor, como as crianças e as mulheres, pessoas estrangeiras. Com Jesus e a partir do discipulado o reino de Deus já acontece entre nós, à medida que nos sentimos livres para servir, como no caso da sogra de Pedro, que, uma vez curada, se pôs a fazer o que se esperava das mulheres no âmbito doméstico, sem que houvesse diminuição do valor de sua ação.
A saúde ocupa o topo da lista de prioridades na vida das pessoas em geral, especialmente a partir da meia-idade. Investe-se o que se tem e, às vezes, o que não se tem na busca pela saúde, porque, quando ela nos falta, ficamos “sem chão” diante da nossa fragilidade de ser humano e, em muitas ocasiões, confrontamo–nos com a finitude da vida – a morte – ao nosso redor. Assim como hoje, no tempo de Jesus as pessoas conviviam com a doença e a saúde. Entre outras doenças, identificavam-se a lepra (hanseníase) – embora não com o conhecimento que se tem hoje da doença –, a paralisia, a surdez, a cegueira e a disenteria crônica em função do clima. A febre violenta que tomou conta da sogra de Pedro era, provavelmente, segundo Daniel-Rops, uma malária. Os quatro evangelistas relatam sobre muitas situações de doença. Para a maioria das doenças não havia diagnóstico preciso. Doenças mentais e outras não diagnosticadas eram identificadas como possessão demoníaca. De Maria Madalena foram expulsos sete demônios (Lc 8.1-2). Isso significa que ela estava seriamente enferma, visto o número sete na Bíblia estar associado à plenitude (Deus criou o mundo em “sete” dias). Além disso, doença, no tempo de Jesus, era entendida como resultado de pecado. Por isso estar doente significava viver à margem da sociedade e da vida religiosa; em alguns casos, a pessoa ficava sujeita realmente ao isolamento, condenada a viver fora dos muros da cidade. Através das curas Jesus incluiu, reintegrou à sociedade e à vida religiosa; dignificou. Em várias ocasiões, nem mesmo o sábado lhe foi empecilho para curar. A necessidade da outra pessoa ditava sua ação. E as curas foram acontecendo. Houve pessoas que se arriscavam (em termos de saúde e diante da discriminação) a andar na companhia de pessoas doentes para trazê-las a Jesus, porque era fundamental que a saúde fosse restabelecida. Também hoje a doença da outra pessoa precisa ser encarada com a mesma seriedade com que encaro minha própria enfermidade. Somente assim haverá ação coerente com o evangelho, de minha parte, diante da falta de saúde de outra pessoa.
Ao longo do ministério de Jesus, a oração mostrou-se como um momento de restauração. Em muitas ocasiões, Jesus retirou-se para um lugar sossegado a fim de orar. No silêncio, é possível ouvir a própria voz, é possível conversar com Deus e reencontrar o próprio equilíbrio. No silêncio, há tempo oportuno para meditar na palavra de Deus e retornar mais fortalecido para as lutas do dia a dia. Mas o culto comunitário se mostra como espaço privilegiado do encontro de Deus com seu povo. No culto, também nosso horizonte de oração se torna mais amplo. Tanto a meditação e oração individuais como a oração, a pregação e a participação na Santa Ceia no culto são fundamentais para a vida da pessoa cristã. Martim Lutero dizia: “Hoje tenho muito a fazer, por isso vou precisar orar muito”.
4. Imagens para a prédica
a) Poder-se-ia iniciar o culto recitando, em forma de poema, uma canção do âmbito do culto das crianças, escrita por Zeni Soares, com melodia de Moisés Granado.
1. Será Deus um Pai bondoso, paciente, carinhoso, que me ouve com atenção e segura minha mão?
2. Será Deus a mãe que sente a tristeza e a dor da gente? Mãe que anima, que dá vida, que devolve a fé perdida?
3. Será Deus como um amigo a brincar, correr comigo, repartindo seu brinquedo e guardando o meu segredo?
4. Deus, Deus é tudo isso e também bem mais do que isso! Pois sendo ele amor, é o pai que me guia, é a mãe que acaricia e é o amigo com quem posso contar dia após dia!
(Essa canção está disponível no CD do culto das crianças: “Alô, alô, aqui estamos nós!”, produzido pelo Sínodo Vale do Taquari em 2002)
b) Um cartaz que nos acompanha há algum tempo traz o seguinte dizer em língua alemã: Christus hat viele Gesichter – Deus tem muitos rostos. Nós encontramos Deus junto a quem sofre por doença, mas também por discriminação de raça, de sexo ou discriminação econômica; nós o encontramos nas pessoas que já nem contam, porque não produzem. Nesse sentido, o desafio de perceber o sofrimento e ser sensível a ele, de acolher e socorrer diante da necessidade manifesta e ainda de procurar conhecer a realidade das pessoas, para ser útil e coerente ao evangelho, não fica limitado somente à questão da saúde, também quando refletimos sobre o texto de Marcos 1.29-39.
c) Ricardo Rieth publicou nos Estudos Teológicos um texto intitulado “Cruz e cura na teologia e na poimênica de Lutero”. A partir de escritos do reformador Martim Lutero e de um sermão proferido por ele em 1535 a respeito de Mateus 8.5-13, Rieth apresenta algumas teses para discussão muito interessantes. Para Lutero, o discipulado acontece sob a cruz. Nas palavras de Ricardo Rieth, “à vida cristã pertence uma prontidão, uma disposição ao sofrimento, que não rejeita confessar o nome de Cristo quando isso poderia trazer desvantagem. […] O sofrimento, porém, não é um fim em si mesmo. […] Que dizer do sofrimento espiritual e físico, que independentemente da confissão do nome de Cristo acomete uma pessoa. Com frequência, pessoas são levadas por causa disso a refletir sobre a própria vida, encontrando, aprofundando ou então perdendo sua fé em Cristo. As pessoas não precisam preservar esse sofrimento para permanecer cristãs. Podem, sim, devem pedir a Deus por cura” .
Rieth chama a atenção para a prática indicada por Lutero da unção às pessoas doentes como algo pertencente ao cotidiano (e não como extrema-unção) a partir de orientação bíblica. Constata que Lutero convocava a pessoa que ministrava a unção, bem como os presbíteros que a acompanhavam, a insistir na oração “até que Deus escute”.
5. Subsídios litúrgicos
Palavra de saudação: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes” (Mt 9.12).
Canções sugeridas: HPD 1, 229 – Os que confiam no Senhor; HPD 2, 440 – Gente que espera; HPD 2, 441 – Jesus Cristo, esperança para o mundo; HPD 2, 459 – Oração da igreja; Canção do Cuidado e Cuida bem, Senhor (ambas as canções da autoria de Rodolfo Gaede Neto).
Notícias atuais sobre o sofrimento em função da escassez de recursos de saúde Brasil afora podem ser apresentadas, em forma de manchete, no início da pregação ou no espaço do Kyrie. Da mesma forma, notícias que indiquem ações em favor do bem-estar das pessoas podem ser apresentadas em forma de partilha no final da pregação ou no espaço do Glória.
Como Confissão de fé no culto, alguém poderia ler do texto indicado como leitura: “O Eterno criou o mundo inteiro e o governa em todos os tempos. Ele não se cansa, não fica fatigado; ninguém pode medir a sua sabedoria. Aos cansados ele dá novas forças e enche de energia os fracos. Até os jovens se cansam, e os moços tropeçam e caem; mas os que confiam no Deus Eterno recebem sempre novas forças” (Is 40.21-31).
Caso no culto aconteça a celebração da Santa Ceia, sugiro utilizar como voto, no final da comunhão, Marcos 3.35: “Jesus Cristo diz: Quem faz a vontade de Deus é meu irmão, [e minha] irmã (e mãe)”.
Na Oração geral, neste culto, é especialmente importante solicitar que a comunidade mencione o nome de pessoas adoentadas (também enlutadas, vítimas de catástrofes, vítimas de violência), para que se possa incluí-las na oração, lembrando também das cuidadoras e dos cuidadores.
Bibliografia
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1976. v. 1.
RIETH, Ricardo Willy. Cruz e cura na teologia e na poimênica de Lutero. Estudos Teológicos, São Leopoldo: IEPG, ano 43, n. 2, p. 7-19, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).